Interconexões, biomimetismo e as lições de Da Vinci

O físico Fritjof Capra, teórico do pensamento sistêmico, esteve no Brasil para lançar seu livro "A Ciência de Leonardo da Vinci" na quarta-feira (12), em São Paulo. Autor de clássicos como "O Tao da Física", ele mostra neste seu novo trabalho como Leonardo da Vinci trouxe ao universo científico uma perspectiva única ao abordá-lo com seu olhar de artista. Com base no exame das mais de seis mil páginas e 100 mil desenhos que restam dos cadernos de anotações do gênio renascentista, Capra revela que ele foi, sob muitos aspectos, o verdadeiro pai da ciência moderna.

Leia a seguir a entrevista exclusiva em que ele fala sobre o livro, a crise mundial, ciência e ecologia. Confira.

Mercado Ético - Você considera a crise financeira um "ponto de mutação" para nossa sociedade?

Fritjof Capra - Bem, acredito que pode ser. O mercado financeiro global, assim como a economia global, tem sido desenvolvido sem regulamentação ética. Então, o sistema todo por muito tempo tem sido turbulento. No passado, houve pequenas turbulências, que aconteceram de repente, como a crise financeira no Brasil, acho que na década de 90, se não me engano, assim como a crise financeira na Rússia, depois no Sudeste Asiático e México. E tudo isso aconteceu não por causa da economia desses países, mas por conta da turbulência no sistema global. Agora temos uma turbulência no sistema global que está afetando o mundo e foi trazida em parte pela fraqueza do sistema, na forma como ele foi desenhado, e em parte pela ganância dos banqueiros de Wall Street, que foram verdadeiramente mesquinhos em fazer dinheiro de forma tão arriscada para todo o sistema.

O que vemos agora é que o sistema financeiro precisa ser limpo, as ferramentas tóxicas desse sistema falido devem ser eliminadas e todas as especulações arriscadas com essa quantidade gigantesca de dinheiro precisam de regulamentação. Vai ser doloroso, mas no final das contas, será muito bom.

Mercado Ético - E como a ciência e a ecologia ajudam nesse processo de mudança de paradigmas globais?

Fritjof Capra - Um dos mais importantes insights que você pode usar da ecologia é aquele que fala exatamente de sistemas. Nos sistemas vivos, as partes estão intimamente interconectadas, você não pode entender o todo, ao menos que você entenda as interconexões das partes. Isso se refere também aos problemas que temos no mundo. Precisamos entender que os assuntos ligados à energia, aquecimento global, segurança, finanças, economia não são assuntos isolados. Esses elementos todos estão interconectados. Isso é o que podemos aprender e as soluções não virão apenas dos bancos e economistas. A solução também virá da mudança de políticas energéticas, do desenvolvimento local, ao invés apenas do desenvolvimento global, por exemplo, não apenas distribuir comida barata para o mundo todo, mas produzir e consumir localmente os alimentos. A solução também virá por introduzir ética no sistema financeiro, que não é um problema técnico da economia, é um problema político, de valores e filosofia.

Então, vemos que os problemas mundiais só podem ser resolvidos com a contribuição de várias disciplinas. Outro ponto importante é que a crise é global e as soluções devem ser encaradas globalmente, no sentido de que as pessoas, ao redor do mundo, precisam participar. Não podemos esperar que Londres, Zurique ou Washington nos ofereça uma solução. Brasil também deve ter seu discurso. Precisa ser uma ação global e sistêmica.

Mercado Ético - Em sua opinião, a ciência já está democratizada ou ainda temos um caminho para isso?

Fritjof Capra - Bem, parte está democratizada, mas acredito que tem que ser mais democrática. Por exemplo, em biologia. Na Universidade da Califórnia, onde eu moro, a maior parte dos fundos disponíveis é para engenharia genética, microbiologia, alimentos transgênicos e todos esses projetos. Existe muito pouco recurso disponível para ecologia ou agricultura sustentável. E isso não é uma decisão dos cidadãos, é uma decisão das grandes corporações que financiam aquilo que é de interesse delas dentro de suas áreas de atuação. Então, esse ponto eu acho que precisa ser democratizado porque quando você vai à universidade e se torna um pesquisador, você pode escolher seu campo de estudo, mas não está totalmente livre para escolher o tema das suas pesquisas, uma vez que isso está ligado ao recurso disponível. Isso precisa ser democratizado. Muita coisa boa não ganha força por falta de recurso, que nem sempre está nas mãos daqueles que desejam democratizar suas descobertas.

Mercado Ético - O senhor poderia nos contar um pouco mais sobre seu novo livro "A Ciência de Leonardo da Vinci" e a relação dessa obra com duas de suas publicações "O Tao da Física" e "Ponto de Mutação"?

Fritjof Capra - Este livro está ligado com meu primeiro livro, o "Tao da Física", no qual eu comparo a física moderna com as antigas filosofias e nessa obra pergunto, novamente, questões fundamentais que também perguntei no meu primeiro livro, de 30 anos atrás, mas questões como o que é ciência, o que é filosofia, o que é conhecimento, como podemos adquirir conhecimento, qual a correlação entre mente e matéria, enfim, questões básicas.

Nessa obra, novamente comparo duas diferentes linhas, a ciência moderna e o renascimento onde Leonardo Da Vinci, grande gênio renascentista, foi um importante cientista, que desenvolveu o método empírico que nós hoje conhecemos na ciência como método científico, 100 anos antes de Galileu e que desenvolveu uma ciência muito diferente de Galileu, pois não é mecanicista, mas está preocupada com as formas orgânicas, as formas vivas da natureza. Leonardo também era o que chamaríamos hoje de pensador sistêmico, independentemente do fenômeno que ele observava, ele relacionaria esse fenômeno em outras partes. Então, por exemplo, quando ele observou turbulência na água, ele relacionaria esse fenômeno à turbulência do ar.

Eu descobri que sua ciência é mais facilmente entendida se nós a compararmos com nossa teoria contemporânea de sistemas vivos, que é exatamente a conexão com meus outros livros. Mas, para minha surpresa, descobri um Leonardo muito ecológico nas minhas pesquisas. Leonardo tinha um respeito profundo pela natureza, tentando sempre aprender com a natureza, o máximo possível. Ele era um famoso engenheiro, e estava sempre tentando copiar a natureza em seus designer e projetos arquitetônicos. E isso é o que o design ecológico está fazendo agora. Leonardo prestava muita atenção nas pessoas, no comércio e na movimentação local em seus projetos. Para ele o "movimento livre" era fundamental e ia de encontro com as questões de saúde locais. Outro ponto que na atualidade é chamado, pela ONU, de "movimento por cidades mais saudáveis". Ele estava no século XV, observando a natureza e efetuando o que hoje chamamos de movimento biométrico.

Eu acredito que a ciência de Leonardo é muito relevante para nós. Não acho que podemos aprender qualquer coisa sobre suas descobertas, pois elas já foram redescobertas, em termos científicos, mas sem dúvida, podemos estar profundamente inspirados pela ciência que estuda a interconectividade dos fenômenos e respeitar natureza como um valor ético. Nós precisamos desses valores hoje em dia e Leonardo pode nos inspirar muito.

Mercado Ético - Como Leonardo observaria os processos sustentáveis hoje? Como o senhor acredita que ele administraria todas as questões sociais e ambientais da contemporaneidade?

Fritjof Capra - É muito difícil imaginar ou colocá-lo em outra era, acredito que ele estaria sensivelmente ligado aos processos sustentáveis e faria o que ele fez no século XV, ou seja, copiar boas soluções o mais extensivamente possível, o que chamamos hoje em dia de biomimetismo. Acredito que ele estaria dentro desse movimento.

Crédito de imagem: Letícia Freire


(Envolverde/Mercado Ético)
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