As crises estão para o capitalismo como os anos bissextos estão para o calendário ocidental. Tratam-se dos recorrentes períodos de turbulência que sacodem as forças produtivas ao final de cada ciclo econômico, provocando rearranjos, em maior ou menor escala, no seio das estruturas burguesas, a fim de que as engrenagens enferrujadas dos mecanismos de escravização dos povos voltem a funcionar com toda a truculência que lhes é peculiar.
Quem costuma ser castigado nestes períodos de convalescença do
capital é o povo trabalhador. São tempos nos quais se intensifica a
chantagem, que dispara na proporção em que aumenta a ameaça do
desemprego, e se agravam as condições de trabalho e de vida de toda a
gente. Enquanto isso, o patronato, os especuladores e os grandes
acionistas contam com os Estados corruptos para lhes socorrer ao
primeiro sinal de bancarrota.
Por outro lado, as crises
capitalistas são momentos que demandam mobilização redobrada por parte
das classes populares, seja porque os avanços do capital sobre as
massas se mostram ainda mais ferozes, seja porque constituem momentos
decisivos do ininterrupto enfrentamento de classes, sendo determinantes
para a definição dos rumos, estratégias e organização do processo
revolucionário encabeçado pelo proletariado.
Especialmente se a crise na qual o sistema se afunda não for apenas de
caráter parcial, mas sim um verdadeiro colapso das relações de produção
e dos fundamentos políticos que sustentam as ditaduras burguesas.
Ocorre que se agrava a olhos vistos a crise em que se afundou o sistema
financeiro do capitalismo monopolista em sua fase atual. No último dia
5 de setembro, uma sexta-feira, a atual administração ianque realizou
uma das maiores intervenções nos mercados financeiros da história,
mobilizando 200 bilhões de dólares em recursos públicos para resgatar
duas empresas de agiotagem hipotecária, a Fannie Mae e a Freddie Mac,
do lamaçal que se criou em todo o mundo por causa das altas taxas de
inadimplência no USA.
A administração Bush correu para salvar os executivos e investidores de
duas empresas picaretas que, quando a crise as pegou em cheio, passaram
a declarar os riscos menores do que realmente eram, a fim de
sobrevalorizar ilegalmente suas ações e manterem até onde fosse
possível os rendimentos milionários dos seus altos executivos. Tudo com
a conivência de deputados e senadores das comissões financeiras do
Congresso do USA, comprados com o dinheiro sujo da agiotagem
institucionalizada.
Por aqui, os que gerenciam os interesses das classes dominantes
concordaram com a mãozinha que Bush deu, com recursos do povo, àqueles
que roubam o povo. No dia oito de setembro a administração Luiz Inácio
promoveu em Brasília um seminário chamado "Desenvolvimento econômico:
crescimento e distribuição de renda", no qual atuais ministros e
ex-titulares da pasta da Fazenda se confraternizaram com elogios mútuos
e deboches direcionados aos cidadãos.
Muitos dos presentes foram responsáveis pelo Proer — o amplo programa
brasileiro de repasse de dinheiro público aos banqueiros, levado a cabo
durante a administração de Cardoso.
A economista do PT Maria da Conceição Tavares, uma das figuras adoradas
pelos esquerdistas de riso fácil, chegou a declarar ao jornal O Globo
que "é uma boa" o fato de nosso sistema bancário ainda não estar
comprometido pela crise atual. Pode-se supor que ela, uma das "estrelas
do PT", avaliza também a política de Luiz Inácio que opera o milagre da
duplicação dos lucros bancários a cada seis meses.
As várias faces da crise burguesa
Engana-se quem pensa que a Fannie Mae e a Freddie Mac fogem à regra
das grandes empresas, fracassadas ou não. Corrupção e maquilagem dos
números são inerentes ao mundo do Big Business, em condições normais de
temperatura e pressão. Nas crises então, nem se fala.
É cedo
para determinar ao certo a espécie de crise que ora abala as estruturas
do sistema capitalista global. Mas toda esta inadimplência, que vem
levando um banco atrás do outro ao colapso, é a manifestação do quanto
vem se tornando insustentável manter de pé um dos pilares das
estruturas burguesas: a escravidão em massa dos trabalhadores por
dívidas roladas indefinidamente a juros exorbitantes.
Grande parte da população assalariada de todo o mundo passa a vida
inteira tentando fugir das dívidas que contraiu sob um modelo de
negócios criminoso, junto a um setor de crédito marcado pelo
gangsterismo. Em geral, quanto mais desesperadas as pessoas ficam para
pagar o que devem, mais se complicam com novas dívidas impagáveis,
alimentando uma bola de neve na qual a opressão e a humilhação rolam
juntas ladeira abaixo.
Não se trata de nenhuma novidade. Ao contrário. Em todo o mundo é assim
que o capital financeiro faz a festa, a custa do suor do povo. O que há
de novo é o fato de que toda uma estrutura financeira internacional
montada sobre esta lógica de lucrar fortunas fabulosas em cima de
capital fictício, ou seja, das chamadas "operações de crédito de alto
risco", vê-se agora acossada por sua própria irracionalidade.
Somam-se a isto os altos preços do petróleo, a disparada dos preços dos
alimentos e das commodities, as sucessivas derrotas do imperialismo no
Oriente Médio, as recorrentes insurreições populares ao redor do mundo
— como as revoltas dos povos caribenhos contra a falta do que comer —,
as bolsas de valores em queda livre, os bancos quebrando às dezenas nos
dois lados do Oceano Atlântico. Tudo junto leva a crer que os
fundamentos não apenas econômicos, mas também políticos da ordem
vigente podem estar em dificuldades sem precedentes em épocas recentes.
No USA, pela primeira vez na história, todos os indicadores econômicos
estão no vermelho. Empresas, antes inabaláveis, dos mais variados
setores, estão acumulando um prejuízo atrás do outro. O banco de
investimentos Lehman Brothers, o quarto maior do USA, foi à falência em
meados de setembro, 160 anos depois de sua fundação. O terceiro maior,
o Merryll Lynch, teve que ser colocado à venda, à preço de saldo.
Na Europa, de acordo com um relatório divulgado recentemente pela
Comissão Européia, Grã-Bretanha, Alemanha e Espanha entrarão em
recessão ainda este ano, naquele que vem sendo considerado o momento de
maior vulnerabilidade do capital desde a Segunda Guerra Mundial.
Nos países semicoloniais, a crise se fará sentir mais cedo ou mais
tarde devido às amarras com os países ricos que as gerências nacionais
impuseram aos seus povos em parceria com o FMI, o Banco Mundial e a
Organização Mundial do Comércio.
Tempos de crise do modelo capitalista são tempos duros para o povo, que
via de regra é arrochado por uma burguesia acuada, sem ter muito para
onde correr. Mas por isso mesmo os tempos de crise são também momentos
especiais para as perspectivas revolucionárias.
São tempos de grilhões sob forte tensão, nos quais os trabalhadores
podem perceber de forma muito clara o papel histórico que lhes está
reservado, ou seja, o de acabar com o domínio do capital e marchar no
rumo de uma nova sociedade que supere em definitivo o que tem lançado a
humanidade às terríveis misérias e às guerras: a sociedade assentada na
propriedade privada dos meios de produção, dividida em classes
antagônicas e feita da exploração do homem pelo homem.