Eis o texto.
Vivemos numa
sociedade mundial do risco, não só no sentido de que tudo se transforma em
decisões cujas conseqüências se tornam imprevisíveis, ou no sentido das
sociedades de gestão do risco, ou naquele das sociedades do discurso sobre o
risco. Sociedade do risco significa, precisamente, uma constelação na qual a
idéia que guia a modernidade, isto é, a idéia da controlabilidade dos efeitos
colaterais e dos perigos produzidos pelas decisões tornou-se problemática, uma
constelação na qual o novo saber serve para transformar os riscos imprevisíveis
em riscos calculáveis, mas deste modo produz, por sua vez, novas
imprevisibilidades, o que constringe a reflexão sobre os riscos. Através desta
"reflexividade da incerteza", a indeterminabilidade do risco no presente se
torna, pela primeira vez, fundamental para toda a sociedade, de modo que devemos
redefinir nossa concepção da sociedade e nossos conceitos
sociológicos.
Ao mesmo tempo, a sociedade mundial do risco gera um
"impulso cosmopolita", por exemplo, no confronto histórico com o antigo
cosmopolitismo (Stoa), com o jus cosmopoliticum do iluminismo (Kant) ou com os
crimes contra a humanidade (Hannah Arendt, Karl Jaspers); os riscos globais
colocam-nos em confronto com "o outro", aparentemente excluído. Eles derrubam as
fronteiras nacionais e mesclam o indígena com o estrangeiro (...).
Ambas
as tendências: a reflexividade da incerteza e o impulso cosmopolita são
reconduzíveis a uma meta-mudança complexiva da "sociedade" no século
XXI:
a) Pondo-as em cena, as experiências e os conflitos do risco mundial
compenetram e modificam os fundamentos da convivência e do agir em todos os
âmbitos, em nível nacional e em nível global;
b) do risco mundial se pode
deduzir a nova forma de relação com as questões abertas, o modo pelo qual o
futuro é integrado no presente, que formas assumem as sociedades que efetuam a
interiorização do risco, como se transformam as instituições existentes e que
modelos organizacionais até agora desconhecidos são criados;
c) ora, de
um lado, estão em primeiro plano os grandes riscos (indesejados), como a
alteração climática; do outro, a antecipação das ameaças de novo tipo
provenientes dos ataques terroristas (desejados) cria uma constante expectativa
pública;
d) realiza-se uma mudança cultural geral. Nasce um novo modo de
entender a natureza e sua relação com a sociedade, mas também de entender a nós
e aos outros, a racionalidade social, a liberdade, a democracia e a legitimação
- e até mesmo o indivíduo. (...)
O significado compreensivo do risco
mundial tem conseqüências muito relevantes, já que se liga a ele todo um
repertório de novas representações, temores, medos, esperanças, normas de
comportamento e conflitos de fé. Estes medos têm um efeito colateral
particularmente fatal: as pessoas e os grupos que se tornam (ou são feitas
tornar-se) "pessoas em risco" ou "grupos em risco" são considerados como
não-pessoas, cujos direitos fundamentais estão ameaçados. O risco separa,
exclui, estigmatiza. Formam-se, assim, novos limites de percepção e de
comunicação? Mas, ao mesmo tempo são também realizados esforços que ultrapassam
os limites para resolver problemas submetidos, por primeira vez, a uma
influência pública. Conseqüentemente, o colocar em cena o risco mundial dá lugar
a uma produção e construção social da realidade. O risco se torna assim a causa
e o meio de reconfiguração da sociedade.. E está estreitamente conexo com as
novas formas de classificação, interpretação e organização de nossa vida
cotidiana, com o novo modo de pôr em cena e de organizar, de viver e de
configurar a sociedade em relação ao presente do futuro.
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O
salto da sociedade do risco à sociedade mundial pode ser esclarecido apelando a
dois testemunhos: Max Weber e John Maynard Keynes, os clássicos da sociologia e
da economia modernas. Em Max Weber a lógica do controle vence no moderno
confronto com o risco, e vence de modo tão irreversível que o otimismo cultural
(Kulturoptimismus) e o pessimismo cultural (Kulturpessimismus) são reconhecidos
como dois lados da mesma dinâmica. Por força do desdobramento e da radicalização
dos princípios basilares da modernidade, e, em particular pela radicalização da
racionalidade científica e econômica, impende um regime despótico como
conseqüência, de um lado, do desenvolvimento da democracia moderna e, do outro,
do triunfo do capitalismo orientado ao lucro. Esperança e preocupação se
condicionam reciprocamente: do momento em que as incertezas e os efeitos
colaterais imprevistos e indesejados, produzidos pela racionalidade do risco,
não cessam de ser enfrentados "otimisticamente", graças a um incremento da
racionalização e da lógica do mercado, a preocupação de Weber não considerava –
diversamente de Comte e Durkheim – a falta de ordem e integração social. Ele não
temia o "caos das incertezas" (como Comte). Ao contrário, ele via e afirmava que
a síntese entre ciência, burocracia e capitalismo transforma o Moderno numa
espécie de "prisão". Esta ameaça não emerge como um fenômeno marginal, mas, como
conseqüência lógica da racionalização exitosa do risco: se tudo vai bem, será
sempre pior. A racionalidade instrumental despolitiza a política e mina a
liberdade dos indivíduos.
Ao mesmo tempo, no modelo de Max Weber está
contida uma idéia que explica porque o risco se torna um fenômeno global, embora
ainda não explique porque isso dá lugar à sociedade mundial do risco. Segundo
Weber, a globalização do risco não está ligada ao colonialismo ou ao
imperialismo, Isto é, não é levada em frente com o fogo e com a espada. Ela
procede antes ao longo da via da coação não coagida do melhor argumento. A
marcha triunfal da racionalização baseia-se na promessa de benefício do risco e
na delimitação, por sua vez racional, dos efeitos colaterais, das incertezas e
dos perigos a isso coligados. É esta auto-aplicação do risco ao risco,
finalizada pelo aperfeiçoamento do autocontrole, que globaliza o
"universalismo". A idéia de que precisamente o imprevisto, o indesejado, o
incalculável, o inesperado, o incerto, tornados permanentes pelo risco, possa
tornar-se a fonte de possibilidades e perigos não antecipáveis, que põem
seriamente em questão a idéia-guia da racionalidade do controle, é uma idéia
impensável no modelo weberiano. Ela está na base da minha teoria da sociedade
mundial do risco. (...).
No inicio do século XXI vemos a sociedade
moderna com olhos diversos – e este nascimento de um "olhar cosmopolita" faz
parte do inesperado, do qual deriva uma sociedade mundial do risco ainda
indeterminada. De ora em diante, nada do que acontece é somente um evento local.
Todos os perigos essenciais se tornaram perigos mundiais, a situação de cada
nação, de cada etnia, de cada religião, de cada classe, de cada indivíduo em
particular é também o resultado e a origem da situação da humanidade. O ponto
decisivo é que, de agora em diante, a principal tarefa é a preocupação pelo
todo. Não se trata de uma opção, mas da própria condição. Ninguém jamais o
previu, desejou ou escolheu, mas brotou das decisões, da soma de suas
conseqüências, e se tornou conditio humana. Ninguém pode subtrair-se a ela.
Perfila-se, assim, uma mudança da sociedade, da política e da história, que até
agora permaneceu incompreendida e que já há algum tempo indico com o conceito de
"sociedade mundial do risco". O que agora conhecemos é apenas o
início.
(Envolverde/IHU - Instituto Humanitas Unisinos)