Estudantes em frente fábrica da Renault prestam apoio e solidariedade
aos operários que ocuparam a fabrica em uma enorme greve
Durante a ocupação estudantil que tomou de assalto a Universidade de Paris no final do mês de maio de 1968, quem passasse pelo Quartier Latin podia ver, nos muros da eminente instituição, cartazes e murais que enunciavam o que se passava na capital francesa.
O episódio da ocupação da universidade, na época apelidada de Sorbonne — hoje, o termo é usado para designar suas várias instituições —, foi apenas um entre tantos do turbilhão de luminosos acontecimentos daquele mês, e ficou conhecido como "Soviet" da Sorbonne. A forma como se deu a ocupação não costuma ser muito lembrada quando se fala do Maio de 68. Principalmente quando quem fala é a burguesia e seus porta-vozes, interessados em enterrar a memória genuína sobre o que de fato aconteceu naquele período, em Paris e no mundo.As exclamações exibidas nas ruas evidenciavam, para além de palavras de ordem, uma profunda consciência revolucionária: "Recusamos o papel que nos foi designado, não seremos treinados como cães policiais", "Com os estudantes, contra a ordem".
Houve o célebre cartaz que denunciava as tentativas de neutralizar a força das massas, comparando o reformismo a uma tentativa de sedar o povo com clorofórmio. Um outro, igualmente imortal, mostrava a palavra "capital" sendo esmagada por um martelo, símbolo do operariado.
Os estudantes de então atualizaram uma famosa frase do filósofo iluminista Voltaire — frase que se tornou uma espécie de lema das revoluções burguesas do século XVIII. Não se tratava mais de gritar que o mundo só seria livre quando o último rei fosse enforcado com as tripas do último padre. Naquele momento, a compreensão era aquela expressada nos murais e cartazes espalhados por Paris: "A humanidade só será livre quando o último capitalista for enforcado com as tripas do último burocrata".
O conteúdo desta criatividade politizada e combativa extravasada pelos estudantes parisienses revela que a série de acontecimentos que ficaram conhecidos como o Maio de 68 foi de natureza anti-capitalista. Mais do que isto, o Maio de 68 foi um momento histórico de encontro solidário e luta comum da juventude e do proletariado, unidos contra as instituições burguesas.
Além dos murais e cartazes políticos e agitacionais, naquele mês, naquele ano, dentro e fora dos muros da Universidade de Paris, foram fixados grandes painéis informativos sobre quais fábricas iam sendo ocupadas pelos operários franceses. Os estudantes compreendiam o protagonismo do proletariado na revolução que almejavam e, com entusiasmo, eram solidários às vitórias alcançadas pelos trabalhadores contra seus patrões.
Houve inclusive uma grande passeata que saiu da Universidade de Paris rumo à Renault, no subúrbio da cidade, a fim de cumprimentar os operários que haviam tomado as instalações daquela fábrica de automóveis. A idéia dos estudantes era prestar apoio à luta contra os capitalistas e contra a opressão do Estado burguês.
Em uma grande praça situada à frente da fábrica, os estudantes gritavam: "As fábricas aos trabalhadores!". Os trabalhadores respondiam: "A Sorbonne aos estudantes!".
A união de forças entre o proletariado e a juventude é algo fundamental para o processo revolucionário, e o exemplo dos braços dados entre os estudantes e os trabalhadores franceses no Maio de 68 é um dos legados mais importantes deixados pelos protagonistas daqueles movimentos de natureza anti-capitalista — e eminentemente comunistas.
A reação perdura, até hoje
Sim, o Maio de 68 foi de natureza eminentemente comunista, a despeito dos revisionismos picaretas, das mentiras da historiografia oficial e do trabalho de desqualificação de sua importância para a luta de classes empreendido pelo monopólio mundial dos meios de comunicação — inclusive por suas representações no Brasil.
Já em abril estudantes e trabalhadores franceses
protestavam contra a guerra imperialista no Vietnã
Um trabalho sujo de difamação, feito com a cumplicidade dos oportunistas de plantão. Literalmente de plantão: sempre prontos a atender aos pedidos dos jornais e emissoras de TV para ratificar mentiras, falsificar as memórias e adaptá-las à visão interessante para as classes dirigentes.
Segundo as tentativas de difundir a versão da reação, os acontecimentos do Maio de 68 não passaram de uma rebelião que alterou para sempre a etiqueta burguesa, encabeçada por jovens em busca de liberdade apenas sexual, e ávidos por independência apenas em relação aos seus pais e professores.
Muitas vezes, as páginas publicadas na imprensa ou o tempo de televisão dedicado à memória daqueles acontecimentos se assemelham à cobertura jornalística dos carnavais fora de época dos dias de hoje. Tenta-se apresentar o Maio de 68 como uma baderna bem-vinda à sociedade capitalista, como tumultos desvinculados das questões de classe. Ou seja: algo realizado por anarquistas, existencialistas e libertinos, que deve ser lembrado como um simpático rebuliço comportamental, e nada mais.
Ardilosamente, quando agora se celebram os 40 anos do Maio de 68, a reação tenta minimizar os grandes feitos que os cerca de dez milhões de trabalhadores franceses — dois terços da força de trabalho do país — protagonizaram naquele ano, assim como na época a reação voltou contra o povo toda a fúria do seu ódio de classe, com calúnias, cacetetes e bombas de gás.
Ao mesmo tempo, as falsas memórias denigrem a imagem dos outros protagonistas do Maio, os estudantes. Seus difusores apresentam os combativos e politizados jovens parisienses como românticos ansiosos por reinventar os costumes burgueses, a fim de cair na farra.
Mais do que isso: tentam transformar em mera festa uma revolta de classe, anti-capitalista, e violentamente reprimida pela polícia do general Charles De Gaulle. O general, aliás — e não obstante as mentiras contadas e as verdades sabotadas — foi encurralado pelo povo naquele Maio, obrigado a colocar o rabo entre as pernas, e se esconder em uma base militar alemã.
Indo além, o revisionismo sobre o Maio quer levar a crer que aqueles acontecimentos começaram no dia 1º e se encerram tão logo começou o mês de junho, como se tudo tivesse transcorrido de forma previamente marcada, com início, meio e fim, tal e qual um grande evento da cultura pop. Ilusões bem de acordo com a maneira através das quais os meios de comunicação burgueses desvirtuam o Maio de 68 perante o distinto público.
Operários da Citröem ocupam fábrica, tomam a frente
e seus portões e exibem cartazes combativos
Longe disso. O que aconteceu em 1968 em Paris, em particular, e em outras partes do mundo, mais do que uma reviravolta comportamental, foi um capítulo no desdobramento do processo revolucionário que se iniciou com a Comuna de Paris, em 1871, que instituiu o primeiro governo operário da história no mesmo palco onde um século mais tarde aconteceria o Maio. Há que se ressaltar que o mundo todo vivia a efervescência da Grande Revolução Cultural Proletária na China, sendo Mao Tsetung muito lembrado nas manifestação de Paris, ao lado dos demais líderes do proletariado internacional.
Um processo que teve no meio do caminho seu acontecimento de viragem histórica que abriu uma nova Era: as vitórias dos operários e camponeses na Rússia revolucionária, na Revolução de Outubro de 1917. Um longo processo de resistência, conquistas e politização das massas.
Mas acima de tudo é um processo revolucionário que persiste, e que transcorre debaixo de nossos olhos, em nosso tempo. Entre vitórias e retrocessos, enfrentando a traição, o oportunismo e a truculência da reação das classes dominantes, o povo trabalhador segue firme no seu ideal de emancipação frente ao capital, com a consciência de seu papel de condutor da humanidade rumo à liberdade.
Maio de 68 contou ainda, em seu epicentro, com a longa história do movimento estudantil na França, que remonta às greves que paralisaram a mesma Universidade de Paris ainda no século XV. Marcou uma luminosa época na qual se criou vínculos entre a universidade e a fábrica. Um legado de suma importância e um exemplo de força, solidariedade e organização para as classes populares dos dias atuais.
Na verdade, naquele Maio, os estudantes da Universidade de Paris e de outras partes do mundo se valeram de um instrumental simbólico inspirado no exemplo das lutas operárias, com manifestações, reuniões e ocupações. Um encontro no tempo e no espaço de duas longas tradições de enfrentamentos em defesa das causas democráticas.
O 'Soviet' da Sorbonne
(Trecho do depoimento atribuído a um cidadão
britânico que esteve em Paris durante os acontecimentos de maio de
1968. Foi publicado pela primeira vez em junho daquele ano, no calor
dos acontecimentos, pelo grupo marxista inglês Solidarity. O texto foi
publicado no Brasil pela editora Conrad).
No Sábado, 21 de maio, pouco antes da meia-noite, o primeiro-ministro
da França, Pompidou, passou por cima do ministro do Interior e do
ministro da Educação e emitiu ordens ao "independente" Poder
Judiciário. Ele declarou que a polícia seria retirada do Quartier
Latin, que as faculdades reabririam na segunda-feira, dia 13 de maio, e
que a lei "reconsideraria" o caso dos estudantes presos na semana
anterior. Este foi o maior recuo político de sua carreira. Para os
estudantes, e para muitos outros, era a prova viva da eficiência da
ação direta das massas. As concessões tinham sido conquistadas através
da luta, e não teriam sido conseguidas por nenhum outro meio.
Segunda-feira de manhã cedo, os pelotões da CRS [tropa de choque da
polícia francesa] que guardavam a entrada da Sorbonne foram
discretamente retirados. Os estudantes entraram, primeiro em pequenos
grupos, depois em centenas, depois em milhares. Lá pelo meio-dia a
ocupação foi concluída. Cada tricolore [bandeira da França] foi
prontamente trazida abaixo, todos os auditórios foram ocupados.
Bandeiras vermelhas foram hasteadas nos mastros oficiais e em mastros
improvisados em várias janelas, algumas tremulando sobre as ruas,
outras tremulando sobre o grande pátio interno. Dezenas de metros acima
do burburinho de estudantes, enormes bandeiras vermelhas e pretas se
agitavam lado a lado na cúpula da capela.
O que aconteceu nos dias que se seguiram deixará uma marca permanente
no sistema educacional francês, na estrutura da sociedade francesa e —
mais importante de tudo — na cabeça das pessoas que viveram e fizeram
história durante os agitados primeiros quinze dias. A Sorbonne foi
repentinamente transformada de um antiquado recinto onde o capitalismo
francês selecionava e moldava seus hierarcas, seus tecnocratas e sua
burocracia administrativa, em um vulcão revolucionário em plena
erupção, cuja lava se espalharia longe e amplamente, cauterizando a
estrutura social da França moderna.
(...)
Os períodos mais dramáticos da ocupação foram sem dúvida as Assembles Générales 40,
ou sessões plenárias, realizadas todas as noites no maior anfiteatro.
Este era o soviete, o local de origem supremo de todas as decisões, a
fonte e a origem da democracia direta. No anfiteatro cabiam 5 mil
pessoas sentadas em seu enorme semicírculo e em três séries de galerias
sobre ele. Visto que frequentemente nem todos os assentos eram
ocupados, a multidão podia circular entre eles e ir até o palco. Uma
bandeira preta e uma vermelha pairavam sobre uma singela mesa de
madeira na qual ficava sentado quem presidia a sessão. Tendo visto
reuniões de cinquenta pessoas virarem um caos, foi uma experiência
surpreendente ver uma reunião com 5 mil pessoas conseguir tratar de
assuntos práticos. Os acontecimentos reais determinavam os temas e
asseguravam que a maioria das discussões tivessem os pés no chão.
Uma vez que os tópicos eram decididos, todos tinham direito de falar. A
maioria das falas eram feitas do palco, mas algumas eram feitas do meio
do público ou das galerias. O equipamento de som normalmente
funcionava, mas às vezes não. Alguns oradores prendiam imediatamente a
atenção sem precisarem falar alto. Outros provocavam uma reação hostil
por causa de sua voz estridente, de sua falta de sinceridade, ou de sua
mais ou menos óbvia tentativa de manipular a Assembléia. Qualquer um
que enchesse linguiça, ficasse falando do passado, viesse recitar uma
obra, ou falasse com palavras de ordem, logo era posto para correr pelo
público, que era, politicamente, o mais sofisticado que eu já havia
visto. Todos que apresentavam idéias práticas eram ouvidos
atenciosamente. E da mesma forma aqueles que procuravam interpretar o
movimento através de suas experiências pessoais, ou que procuravam
mostrar o caminho a seguir.
À maioria dos oradores foram concedidos três minutos. Alguns foram
deixados falar durante muito mais tempo devido à aclamação popular. A
própria multidão exercia um controle tremendo sobre a plataforma
política e os oradores. Uma relação de mão dupla emergiu muito
rapidamente. A maturidade política da Assembléia foi mostrada de forma
ainda mais impressionante: ela rapidamente percebeu que vaias e
aplausos durante as falas atrapalhavam o rápido andamento das decisões
da Assembléia. Boas falas eram muito aplaudidas — no final. Discursos
demagógicos ou desnecessários eram imediatamente postos de lado. As
conscientes minorias revolucionárias desempenharam um importante papel
catalítico nessas deliberações, mas nunca procuravam — pelo menos as
mais inteligentes — impor suas vontades à massa. Embora nos seus
primeiros estágios a Assembléia tivesse uma boa quantidade de
exibicionistas, provocadores e loucos, o preço da democracia direta não
era tão pesado quanto se poderia esperar.