O mundo está mais permissível à tortura. A afirmação é unanimidade entre os pesquisadores norte-americanos e australianos que participam do Seminário Internacional sobre Tortura, promovido pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Segundo os especialistas, a situação se agravou a partir dos atentados terroristas ao World Trade Center, em 2001.
Os motivos são o medo de novos ataques, uma
postura mais profissional e asséptica em interrogatórios que envolvam tortura,
principalmente nos Estados Unidos, e uma linguagem mais sutil para se referir a
estas práticas.
Nomes como tortura light passaram a ser utilizados para
caracterizar práticas que não promovem agressões físicas diretas ao prisioneiro,
segundo a especialista em Ética Militar da Melbourne University, Jessica
Wolfendale. Ao contrário da tortura tradicional, em que geralmente ocorrem
mutilações e espancamentos, no método leve o torturado é "seguidamente privado
do sono, da alimentação, mantido em isolamento permanente e exposto às condições
extremas de calor e frio", explica a especialista.
Para Jessica, o
conceito criou uma falsa dicotomia na opinião pública nos Estados Unidos, e um
tipo de tortura mais leve passou a ser aceitável por não deixar marcas. "Mas
qualquer tipo de tortura deixa seqüelas psicológicas, além de problemas físicos
internos. Imagine o que um afogamento causa aos pulmões de um torturado",
lembra. Ela afirma que a Convenção de Genebra não faz distinção entre diferentes
tipos de tortura.
Quando o Estado norte-americano decidiu aceitar a
tortura como parte dos interrogatórios para terroristas, ele precisou
legitimá-la e daí veio a "profissionalização", sublinha a co-fundadora da
Internacional Intelligence Ethics Association, Jean Maria Arrigo. "A prática não
pode ser violenta, ela tem que ser executada por técnicos treinados e
equilibrados psicologicamente", afirma Arrigo, lembrando que o torturador não
pode odiar seu torturado.
"Pessoalmente, acho um erro de interpretação
pensar que a violência trará a obediência e a cooperação dos terroristas. Na
verdade, você cria uma aparente submissão, mas alimenta um sentimento de
vingança e as rotas de comunicação se fecham. É o tipo de colaboração que pode
trazer informações e confissões falsas apenas para que a tortura pare", assinala
a especialista Arrigo.
A pesquisadora do Human Rights Watch, Dinah
PoKempner, afirma que é comum encontrar interrogadores que trabalhavam no
sistema prisional norte-americano. "Fizemos um estudo em uma prisão de Chicago e
chegamos à conclusão de que há agentes penitenciários que foram convocados para
a Guerra do Iraque, e eles levam as práticas da tortura para os interrogatórios
que praticam no período de guerra", diz ela. "Em prisões, até pouco tempo atrás,
era comum o uso de cães e de afogamentos para conseguir confissões". Para Dinah,
o "grau de invisibilidade e dissimulação da tortura" nos Estados Unidos assumiu
níveis alarmantes. "Como os torturados geralmente são suspeitos de terrorismo, a
opinião pública não demonstra simpatia", diz.
Uma pesquisa conduzida pelo
doutor em Ética Fritz Allhoff, da Western Michigan University, entrevistou 1.030
universitários norte-americanos e australianos para avaliar se eles seriam
favoráveis ou contrários ao uso de tortura em interrogatórios de supostos
terroristas para obter informações em um caso-limite - uma bomba, por exemplo.
Foram quatro perguntas, que incluíam a possibilidade de torturar os filhos dos
terroristas, comprovadamente inocentes, mas cientes da localização do pai.
Proporcionalmente, os australianos se mostraram mais propensos a aceitar a
tortura do que os norte-americanos. "É um resultado curioso, que coloca em cena
uma idealização que não corresponde ao real: a da situação-limite, um conceito
chamado usualmente de 'bomba-relógio', afirma Allhoff.
O conceito
"bomba-relógio" é o de que existem certas situações-limite em que a tortura é a
única saída para salvar milhares de vidas, que podem ser vítimas de um atentado
suicida, por exemplo. "Essa hipótese, usada para justificar a tortura, quase
nunca corresponde aos casos reais – é uma idealização que apela ao lado
emocional", afirma Jessica Wolfendale.
(Envolverde/Aprendiz)