No desamparo que grassa na humanidade atual faz-se urgente resgatar o sentido libertador da utopia. Na verdade, vivemos no olho de uma crise civilizacional de proporções planetárias.
No desamparo que grassa na humanidade atual faz-se urgente resgatar o sentido libertador da utopia. Na verdade, vivemos no olho de uma crise civilizacional de proporções planetárias. Toda crise oferece chances de transformação bem como riscos de fracasso. Na crise, medo e esperança se mesclam, especialmente agora que estamos já dentro do aquecimento global. Precisamos de esperança. Ela se expressa na linguagem das utopias. Estas por sua natureza, nunca vão se realizar totalmente. Mas elas nos mantém caminhando. Bem disse o irlandês Oscar Wilde:"Um mapa do mundo que não inclua a utopia não é digno de se espiar, pois ignora o único território em que a humanidade sempre atraca, partindo em seguida, para uma terra ainda melhor". Entre nós acertadamente observou o poeta Mário Quintana: "Se as coisas são inatingíveis…ora!/Não é motivo para não querê-las/Que tristes os caminhos e se não fora/ A mágica presença das estrelas".
A utopia não se opõe à
realidade, antes pertence a ela, porque esta não é feita apenas por aquilo que é
dado, mas por aquilo que é potencial e que pode um dia se transformar em dado. A
utopia nasce deste transfundo de virtualidades presentes na história e em cada
pessoa. O filósofo Ernst Bloch cunhou a expressão principio-esperança. Por
princípio-esperança que é mais que a virtude da esperança, ele entende o
inesgotável potencial da exitência humana e da história que permite dizer não a
qualquer realidade concreta, às limitações espácio-temporais, aos modelos
políticos e às barreiras que cerceiam o viver, o saber, o querer e o
amar.
O ser humano diz não porque primeiro disse sim : sim à vida, ao
sentido, aos sonhos e à plenitude ansiada. Embora realisticamente não entreveja
a total plenitude no horizonte das concretizações históricas, nem por isso ele
deixa de ansiar por ela com uma esperança jamais arrefecida. Jó, quase nas
vascas da morte, podia gritar a Deus:"mesmo que Tu me mates, ainda assim espero
em Ti". O paraiso terrenal narrado no Gênesis 2-3 é um texto de esperança. Não
se trata do relato de um passado perdido e do qual guardamos saudades, mas é
antes uma promessa, uma esperança de futuro ao encontro do qual estamos
caminhando. Como comentava Bloch: "o verdadeiro Gênese não está no começo mas no
fim". Só no termo do processo da evolução serão verdadeiras as palavras das
Escrituras:"E Deus viu que tudo era bom". Enquando evoluimos nem tudo é bom, só
perfectível.
O essencial do Cristianismo não reside em afirmar a
encarnação de Deus. Outras religiões também o fizeram. Mas é afirmar que a
utopia (aquilo que não tem lugar) virou eutopia (um lugar bom). Em alguém, não
apenas a morte foi vencida, o que seria ainda pouco, mas todas virtualidades
escondidas no ser humano, explodiram e implodiram. Jesus é o "Adão novissimo" na
expressão de São Paulo, o homem abscôndito agora revelado. Mas ele é apenas o
primeiro dentre muitos irmãos e irmãs; nós seguiremos a ele, completa São
Paulo.
Anunciar tal esperança no atual contexto sombrio do mundo, não é
irrelevante. Transforma a eventual tragédia da Terra e da Humanidade devido às
ameaças sociais e ecológicas, numa crise purificadora. Vamos fazer uma travessia
perigosa, mas a vida será garantida e o Planeta ainda se regenerará.
Os
grupos portadores de sentido, as religiões e as Igrejas cristãs devem proclamar
de cima dos telhados semelhante esperança. A grama não cresceu sobre a sepultura
de Jesus. A partir da crise da sexta-feira da crucificação a vida triunfou. Por
isso a tragédia não pode ter a última palavra. Esta a tem a vida em seu
esplendor solar.
* Leonardo Boff é teólogo, escritor, professor emérito
de ética da UERJ e membro da Comissão da Carta da Terra.
(Envolverde/O
autor)