Nesta semana morreu um dos mais brutais e estúpidos assassinos do século 20, o ditador indonésio Suharto. Logo me veio à cabeça um comentário feito pelo professor João Quartim de Moraes. Em suas palestras, ele não se cansava de dizer que os mesmos órgãos da grande imprensa que gostavam de colocar o título de ditador na frente dos nomes de dirigentes comunistas, como Fidel Castro e Mao Tse-Tung, quando se referiam ao depravado Suharto chamavam-no simplesmente de presidente: presidente Suharto. Apenas recentemente, com o fim da guerra fria, a palavra ditador foi agregada aos seus inúmeros títulos. Isso mostra que a mídia tem lado e, geralmente, é o errado.
Os papas do neoliberalismo, Hayek e Friedman, também se apressaram em retirar ditaduras capitalistas do tipo de Suharto da lista de regimes totalitários. Para eles eram apenas governos autoritários. Necessários, por algum tempo, para garantir a liberdade de mercado ameaçada permanentemente pelo totalitarismo comunista. Esta, de fato, foi a única liberdade que Suharto garantiu. Foi ela que permitiu que os ricos, inclusive o presidente e sua família, ficassem cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Não é sem razão que os grandes empresários agradecem comovidos e choram sobre o seu túmulo.
Indonésia: no olho do furação
Em agosto de 1945 – logo após a rendição japonesa – Sukarno** declarou
a independência da Indonésia e se tornou um herói nacional. Poucos anos
depois, em 1948, os comunistas tentaram uma insurreição e foram
massacrados pelo coronel Nasution. Mais de 30 mil foram mortos, entre
eles os principais dirigentes do Partido Comunista da Indonésia. Este
seria o segundo grande massacre sofrido pelo partido e, infelizmente,
não seria o último e nem o maior deles.
Os colonialistas holandeses aproveitaram-se da guerra civil para
prender Sukarno e seus ministros. Os Estados Unidos, envolvidos na luta
contra a revolução chinesa, forçaram um acordo entre a Holanda e o
governo Sukarno, garantindo a independência do país. Em troca, a
exploração dos poços de petróleo, a principal riqueza da Indonésia, foi
entregue aos monopólios anglo-americanos.
Mas, pouco a pouco – por pressão dos setores nacionalistas – Sukarno
foi se afastando dos Estados Unidos. No final de 1950 ele seria vítima
de uma tentativa de golpe de Estado, planejada pelo então general
Nasution. Dois anos depois ocorreria outra tentativa golpista, efetuada
por militares de extrema-direita pró-americanos. No processo de
resistência que se seguiu, Sukarno contou com apoio do Partido
Comunista da Indonésia.
Diante dos sucessivos complôs, patrocinados pelo governo dos EUA, o
presidente mudou definitivamente sua política externa e se aproximou da
URSS e da jovem república socialista chinesa. A Indonésia teria um
papel destacado na Conferência Afro-asiática de Bandung (1965), um
marco no processo de afirmação do chamado Terceiro Mundo. Sukarno, ao
lado de Nehru e Chu En-Lai, se destacaria no cenário mundial.
No início da década de 1960, Sukarno implementaria o que ele chamou de
"socialismo à moda da Indonésia", nacionalizando empresas estrangeiras.
Optaria por uma maior aproximação com a China, então em conflito com a
URSS. Aliado ao governo nacionalista de Sukarno, o Partido Comunista
conheceria o auge do seu prestígio, chegando a ter mais de três milhões
de membros. Neste mesmo período ele romperia relações com o PCUS e se
ligaria ao PC da China. Seria um dos únicos grandes partidos comunistas
a fazer tal opção política. Essa nova situação acirrava o temor entre
os setores militares e a burguesia. Um conflito de graves proporções já
se anunciava no horizonte. O presidente Sukarno procurava inutilmente
se equilibrar entre forças díspares.
Buscando unificar os militares, de maneira temerária, Sukarno indica o
general golpista Nasution para o comando do Exército. Os comunistas
propõem então armar os camponeses e operários para formar uma força
militar auxiliar de apoio ao governo e contra o golpe que já se
anunciava. A proposta é rechaçada por Sukarno e pelo alto comando
militar. Desarmados os setores populares teriam poucas condições de
resistir à reação que avançava.
Em setembro de 1965, diante de boatos de um novo golpe militar
patrocinado pelos Estados Unidos, um setor de esquerda das forças
armadas se mobilizou, prendeu e executou vários generais direitistas.
Formou-se um frágil "Conselho Revolucionário". O próprio Nausion,
cabeça da reação, escapou da execução por um triz. O Partido Comunista
apanhado completamente de surpresa, afirmou que nada tinha a ver com o
movimento armado, embora o apoiasse. Diante da confusão das informações
Sukarno se calou e esperou o desenrolar dos acontecimentos.
A correlação de forças, no entanto, era extremamente desfavorável às
correntes progressistas no interior das forças armadas. A maioria dos
oficiais estava ligada aos golpistas patrocinados pela CIA. Foi nesse
quadro confuso que o inexpressivo general Suharto***, contra a vontade
do presidente, assumiu o comando do Exército e iniciou a repressão
contra os "insurgentes". Aproveitou-se da situação para acusar os
comunistas indonésios e os chineses étnicos pela tentativa de golpe e
execução dos seis generais. Acusações infundadas.
Unindo o anticomunismo raivoso - e o preconceito religioso e étnico
contra os chineses - lançou-se ao massacre indiscriminado. Entre
quinhentos mil e um milhão de pessoas foram barbaramente assassinadas
em poucos dias. Famílias inteiras foram trancadas e incendiadas em
casas. Todos os dirigentes comunistas que se encontravam no país foram
executados, sem julgamento. Os assassinatos continuaram por todo o
período ditatorial.
Em 1969, salva a civilização ocidental, o presidente estadunidense
Richard Nixon pode visitar a Indonésia. Poucos anos depois, em 1975,
foi a vez de Gerald Ford fazer a sua peregrinação ao país amigo.
Coincidentemente, alguns meses após a partida de Ford, a ditadura
fascista ordenaria a brutal invasão da jovem República Democrática de
Timor-Leste, que buscava trilhar o caminho do socialismo. Durante a
ocupação foram assassinadas mais de 300 mil pessoas, numa população
estimada em 600 mil habitantes. Tudo isso foi realizado sob o silêncio
- e, em muitos casos, com o apoio - das democracias liberais ocidentais.
Um dos maiores assassinos do século 20, apeado do poder pelo povo em
1999, não sofreu nenhum tipo de punição. Nenhum tribunal internacional
foi lhe imposto ou ao menos sugerido. Pelo contrário, na sua tumba
foram prestar homenagens sinceras a elite política, empresarial e
militar da Indonésia. Para escárnio da humanidade, declarou o atual
presidente Susilo Bamang Yudhoyono: "Convido todo povo da Indonésia a
rezar para que as boas ações do falecido e sua dedicação à pátria
possam ser aceitas por Deus, todo poderoso". Eu, que não creio, peço
apenas que Suharto queime no mais profundo dos infernos.
*Augusto Buonicore é historiador, mestre em ciência política pela Unicamp Notas do Vermelho: **Sukarno (6 de junho de 1901 — 21 de junho de 1970) foi o presidente nacionalista que governou a Indonésia entre 1945 e 1966 e chegou a ter apoio dos comunistas. Assim como muitos javaneses, Sukarno não tinha sobrenome. ***Hadji Mohamed Suharto (Kemusuk, Yogyakarta, 8 de Junho de 1921 — Jacarta, 27 de janeiro de 2008) foi o general fascista que deu o golpe de Estado em 1965 e ocupou o Timor Leste em 1975. A Indonésia ficou submetida à ditadura de Suharto entre 1967 e 1998.