Primeiro o pão, depois o voto

Carachi, 15/01/2008 – Enquanto as classes média e alta do Paquistão se debatem em especulações sobre quem matou a ex-primeira-ministra Benazir Bhutto e se as eleições de fevereiro serão livres e justas, os mais pobres, na realidade, estão preocupados em como conseguir seu alimento diário. Enquanto disparam os preços dos artigos essenciais, multiplicam-se as filas nas portas dos estabelecimentos comerciais subsidiados pelo governo. Todos esperam levar essa cobiçada cesta de 10 quilos de farinha de trigo.

 


"Ou voto ou fico nesta fila", disse um descontente Mohammed Moin, que espera desde as 7 horas da manhã na porta de uma loja tendo tomado como desjejum "apenas uma rápida xícara de chá". Pouco antes das 11 horas, ainda não há sinal do caminhão que traz a farinha. A fila aumenta e a paciência acaba. Um saco de 10 quilos de farinha é vendido nestas lojas subsidiadas a cerca de US$ 2,00, enquanto nos demais estabelecimentos comerciais custa, em media US$ 2,8. a farinha de trigo, conhecida como "aata", é usada para fazer "rotis" (pão sem fermento", que constitui o alimento básico dos paquistaneses.

Durante o último mês houve intermináveis filas diante dessas lojas em todo o país. Os preços da farinha aumentaram de dois centavos de dólar o quilo para ate 4,5 centavos o quilo. O governo fixou o preço máximo em 27 centavos de dólar e começou a multar os comerciantes que vendessem a preços mais altos. O resultado foi que a farinha sumiu dos mercados. Moin, que trabalha no setor das telecomunicações em Carachi, teve de pedir uma mudança de horário em seu emprego para poder ficar na fila.

Porém, não há garantias de que quando chegar sua vez conseguirá comprar a farinha. A fila é muito longa. Cerca de 40 pessoas aguardam pacientemente, e é quase certo que muitas irão embora de mãos vazias. Ao lado de Moin, Rafique (desempregado desde que ficou doente trabalhando em uma empresa marítima) se une á fila. "É a terceira vez que venho esta semana. Até agora, sem sucesso", conta. Por sua vez, Assim Mehdi, empregado em uma fábrica têxtil, já pegou a fila por cinco vezes e nunca conseguiu comprar farinha. "É difícil. Tenho de pedir o dia livre ou mudar meu turno, e mesmo assim acabo comprando um saco de 10 quilos por 250 rúpias (US$ 4,00) no mercado aberto", afirma. "Nem os governantes nem os partidos políticos merecem meu voto. Não quero gastar meu voto nem meu tempo com eles", afirma com raiva.

As eleições no Paquistão estavam previstas para o último dia 8, mas foram adiadas para 18 de fevereiro após o assassinato de Benazir, principal figura da oposição. Apenas Mohammad Nadeem, de 13 anos, parece feliz em estar na fila, já que isso significa que pode faltar na escola. "Sou o mais velho, e como meu pai trabalha na ferrovia não pode vir e, então, me manda, pois minha mãe tem de cuidar dos meus irmãos menores e da casa", conta. Nadeem conseguir levar um saco de farinha cada vez que vem.
Na fila as pessoas passam o tempo falando sobre a crise da farinha, e muitos acusam o governo de conspirar com os ricos proprietários dos moinhos para provocar uma escassez artificial e aumentar a demanda. "É uma escassez criada pelo governo. A farinha é contrabandeada para o Afeganistão e por isso sofremos esta crise", disse um integrante da fila. "Os donos dos moinhos estão estocando farinha e criando uma escassez artificial", acrescentou. No começo deste mês, houve notícias de que alguns políticos estavam ligados com esse acúmulo de farinha, mas o governo se negou a tomar medidas, temendo causar problemas à Liga Muçulmana Paquistanesa, ex-partido governante que apóia o presidente Pervez Musharraf nas eleições.

Os cortes no fornecimento de energia freqüentes e prolongados afetaram o trabalho dos moinhos, dizem outros. Há, também, que critique o governo por ter aplicado muito tarde um imposto às exportações de farinha, quando os estoques já haviam diminuído significativamente. Os partidos de oposição condenaram o governo por não ter agido a tempo. Maulana Fazlu Rehman, do partido religioso Jamiat Ulema-i-Islam, acusou o governo de criar deliberadamente uma escassez de farinha, petróleo e energia para desviar a atenção pública do assassinato de Benazir. Uma pesquisa do instituto Gallup Paquistão indica que a maioria dos habitantes deste país da Ásia meridional acredita que as agências do governo e os políticos próximos a Musharraf são os responsáveis pelo atentado ocorrido na localidade de Rawalpindi, perto de Islamabad.

Explicando a origem da crise do trigo, o economista Asad Sayeed disse que "a principal razão foi o governo ter anunciado entre maio e junho uma extraordinária colheita de trigo, de 23 milhões de toneladas. Mas, na realidade, a colheita foi de apenas 19 milhões de toneladas. Nunca houve uma divergência tão grande entre as estimativas e a produção real".

Mas, essas explicações não servem para quem está na fila para conseguir comida. "Não me importo de passar todo o dia aqui, mas, se disserem que acabou quando chegar a minha vez, quebrarão meu coração", afirma uma mulher chamada Shamin. Os 16 membros de sua família consomem cinco quilos de farinha pro dia. "E, mesmo assim, a maioria de nós nunca dormimos de estômago cheio", lamenta.

"Não há escassez de farinha. Vejo muita nas lojas próximas de minha casa. O que falta é dinheiro para comprar", disse Rubi Ibrahim. Esta mulher diz que ouviu Musharraf exortando a população em seus discursos a não comprar artigos caros. "Se nem podemos comprar farinha, o que nos resta para comer. Já eliminamos vários itens da cozinha: verduras, leite, manteiga... O que sobra para uma pessoa comer? Apenas pó?", acrescenta. (IPS/Envolverde)

(Envolverde/ IPS)

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