Enquanto boicotam a informação sobre qualquer luta do povo no Brasil e no mundo (e quando abordam é para desinformar e caluniar a justa luta do povo), os histéricos protestos da turba de pequenos-burgueses descontentes usados como bucha de canhão pelas oligarquias destronadas na Venezuela são tratados como “movimentos democráticos violentamente reprimidos”.
Enquanto estudantes no Brasil — que têm ocupado as reitorias das universidades públicas contra as políticas criminosas ditadas pelo Banco Mundial e rigorosamente aplicadas pelo gerente de turno Luiz Inácio, são tratados por vândalos e baderneiros — os filhinhos de papai da Venezuela são exaltados como abnegados democratas.
Quando Chávez anunciou as reformas da constituição através do referendum, a reação elevou o berreiro à enésima potência, protestando contra a eternização do mandato do “ditador” e contra seu “socialismo”. De forma que sua derrota soou como verdadeiro alívio para as camadas e círculos reacionários, que sob a batuta de Bush e da embaixada ianque em Caracas, já calculam novas possibilidades para apeá-lo do poder de Estado e pôr fim à sua “revolução Bolivariana” e “socialismo do século XXI”.
Concretamente, para que tem servido a experiência de Chávez senão que para açular a reação em sua venenosa propaganda contra a verdadeira luta antiimperialista e pelo socialismo? Ao desfraldar uma caricatura de socialismo e um antiimperialismo de fraseologia, Chávez não só engana as massas — desarmando-as para um verdadeiro combate de classes pela revolução de nova democracia e pelo socialismo científico na Venezuela e ilude não poucas forças progressistas no continente e mundo afora desorientadas pela ofensiva contra-revolucionária mundial — como termina por jogar água no moinho da reação.
A presente análise revela o caráter de classe burguês burocrático do governo e o projeto de Chávez buscando refletir sobre seus impasses e rumos.
A derrota de Chávez no plebiscito do início de dezembro põe em compasso
de espera seu projeto burocrático. Porém, o presidente venezuelano já
demonstrou estar disposto insistir nas tentativas de aprovação das
reformas propostas.
A proposta de mudança constitucional marcaria uma viragem para a
reestruturação estatal da Venezuela, pois Chávez e o Partido Socialista
Unido da Venezuela (PSUV) retomaram — remoçadas — as velhas bandeiras
do capitalismo de Estado dos idos da década de 1980, para desta maneira
dar novo impulso ao capitalismo burocrático na Venezuela como
alternativa ao fracassado modelo neoliberal, que ainda vive seu ocaso
na América Latina.
As medidas de Chávez não se restringiram ao âmbito local e se
projetaram cada vez mais com maior nitidez na cena latino-americana e
mundial. Sem dúvida, esta situação abriu frentes de oposição ao governo
Chávez tanto dentro do território venezuelano como fora, situação que
será matéria de nossa reflexão.
Do neoliberalismo ao neoestatismo
No início do século XXI, com
as reformas constitucionais de 1999, a Venezuela foi o país onde se
mostraram os primeiros vislumbres de uma guinada para um novo modelo
também funcional ao capitalismo, que se pode denominar neoestatismo, ou
regime burocrático, pois tem sua inspiração no capitalismo de Estado
latino-americano da década de 1950, um arremedo do welfare state
(estado de bem-estar) dos países do Norte, aplicado nas economias de
enclave latino-americanas, que farão os devidos ajustes de acordo com o
novo contexto mundial, mas mantendo a característica de uma maior
intervenção do Estado na economia, o fortalecimento da organização
estatal e de organismos comunais, como entes corporativos não-estatais
que agigantam sub-repticiamente a presença do Estado no interior das
organizações populares.
Deve ser lembrado que os nacionalismos latino-americanos da década de
1950 foram possíveis pelo debilitamento dos países imperialistas depois
dos desgastes que estes sofreram pela Segunda Guerra Mundial, que
permitiu a aplicação na América Latina do modelo proposto pela CEPAL1, baseado na industrialização e substituição de importações (ISI).
Ainda que os tempos atuais correspondam a um contexto econômico,
político e social distinto do momento do pós-guerra, a coincidência se
estriba na crise que atravessa o capitalismo mundial, assinalada pela
queda paulatina do dólar norte-americano, o fracasso da bolha
financeira e imobiliária, que representa uma situação crítica dessa
transfiguração do capital, que Marx chamou de “fetichismo da
mercadoria”, a militarização e as agressões imperialistas em zonas
estratégicas de produção energética como o Iraque, assim como a crise
do petróleo, que tem permitido maiores ingressos econômicos aos países
membros da OPEP2.
Mesmo com os “panelaços antiimperialistas” de Chávez, as exportações da
Venezuela para o USA saltaram de 15 bilhões de dólares em 2001 para 34
bilhões de dólares em 2005. Um fator chave para explicar este aumento é
a subida do preço do petróleo. Em 2006, a Venezuela foi o terceiro
maior provedor de petróleo para o USA, fornecendo um total de 1,5
milhão de barris diários, de uma produção total de 2,4 milhões, tirando
desta posição a Arábia Saudita, como afirma o Departamento de Comércio
do USA.
Assim como na época do pós-guerra mundial, que facilitou a implantação
do ISI, as classes dominantes latino-americanas, e em particular a nova
fração burocrática venezuelana se encontra em uma posição privilegiada
para a negociação e regateio de seu petróleo, pois a dinâmica do
capitalismo mundial elevou os preços desta matéria-prima, cuja
exploração e necessidade foi o símbolo característico de toda história
do imperialismo ianque3.
Os recursos naturais, em particular os energéticos tem importância
capital na época atual, a ponto de — como dado inédito — os países
imperialistas pretenderem eludir a insuficiência de hidrocarbonetos e a
postura regateadora das oligarquias petroleiras do terceiro mundo,
fomentando a produção de etanol em territórios de países com menor
capacidade de regateio e mais dóceis aos ditames imperialistas; sem se
importar com o atentado que está sendo perpetrado contra a segurança
alimentar de milhões de pessoas no planeta, porque as plantações de
milho e de cana-de-açúcar estão sendo destinadas para a criação do
mencionado biocombustível e não para a alimentação; assim como o
desgaste de vastas extensões de terra que são empregadas intensivamente
nos cultivos com a consequente deterioração dos solos agrícolas.
As reformas constitucionais de Chávez
O que Chávez pretendia
com as reformas constitucionais era reimpulsionar o capitalismo
burocrático e desmontar o modelo neoliberal, decadente pelo seu caráter
impopular e a hiper-corrupção dos governos de Carlos Andrés Pérez,
Ramón Velásquez e Rafael Caldera. Lembre-se que quem implantou medidas
neoliberais a sangue e fogo para sufocar o protesto popular
venezuelano, no chamado “caracazo” de 28 de fevereiro de 1989, foi
Carlos Andrés Pérez.
No que tange ao fortalecimento da estrutura organizativa burocrática do
Estado venezuelano, Chávez propunha a criação do chamado Poder público,
exercido através de comunas cujo aglutinamento conformaria comunidades,
que por sua vez tomariam parte na estrutura estatal ao se converterem
em Conselhos de Poder Comunal (conselhos de poder popular).
Esta instância da estrutura administrativa da organização estatal
venezuelana seria a célula da estrutura estatal, a mesma que tenderia a
debilitar os governos municipais e, por sua vez, permitiria maior
contato entre o governo central e estas organizações de talante
corporativo, formadas por organizações adeptas a Chávez, com o que o
presidente vafiançaria seu centralismo absoluto, através de uma fórmula
aparentemente democrática — deslumbrando inclusive os membros da
esquerda caviar latino-americana — que catalogam esta medida como um
passo decisivo para o “socialismo do século XXI”.
Os Conselhos de Poder Popular surgiriam a partir do recorte das
atribuições políticas e de nomeações dos prepostos dos municípios, o
que ocasionou pronunciamentos de diversas prefeituras venezuelanas,
jornalistas e a Igreja Católica — com um furibundo pronunciamento dos
arcebispos e bispos da Venezuela — que, mesmo assim, não conseguiram
inquietar o governo de Chávez.
As atribuições e orçamentos das instâncias comunais, locais, estaduais
e provinciais seriam articuladas em um Plano de Desenvolvimento
Integral da Nação, avaliado e passado pelo crivo da observação de um
Conselho de Governo Nacional, encabeçado pelo presidente da Venezuela,
situação que evidencia o caráter de centralismo absoluto dessas medidas
descentralizadoras no administrativo, mas que tendem a concentrar
politicamente o poder em uma estrutura estatal presidencialista, de
acordo com o legado histórico da velha tradição do caudilhismo
latino-americano .
A prorrogação do mandato presidencial de 6 para 7 anos, assim como a
suspensão da restrição à reeleição presidencial sucessiva são uma
mostra da forma caudilhesca como Chávez atua; ele modificou todas as
regras do jogo eleitoral para convertê-las em instrumentos que
satisfaçam interesses pessoais que lhe permitiriam a perpetuação no
governo venezuelano; mostrando uma grande sagacidade para fazer
coincidir os processos eleitorais com o estabelecimento de uma
república bananeira, mostrado sem o menor pudor nas velhas eleições,
arranjadas pelos círculos dirigentes latino-americanos para se
alternarem no poder sob um verniz pseudo-democrático.
No econômico, Chávez declarou guerra aberta contra as transnacionais
petroleiras, aumentando impostos, restringindo suas ações e reservando
o monopólio do petróleo para o Estado. Porém, não deixou de se aliar às
potências imperialistas, que recebem cada vez mais petróleo de Chávez.
As medidas econômicas, que para alguns ingênuos aparentam ser medidas
antiimperialistas, na verdade expressam a voracidade do presidente
venezuelano, que as implementa com o controle absoluto do Banco Central
da Venezuela, que sem dúvida será utilizado como uma caja chica4, com ampla margem para aplicar e manipular as variáveis macroeconômicas venezuelanas.
A burguesia compradora venezuelana, através de sua organização
FEDECAMARAS, botou a boca no mundo com essas medidas, que fortalecem e
agigantam a capacidade de manipulação política e enriquecimento pessoal
de Chávez e sua burocracia, assim como marginaliza este setor da
partilha do poder e por consequência do maior acesso ao capital.
Paralelamente, fiel a seu estilo demagógico, propõe a redução da
jornada de trabalho para 6 horas, sem desarticular as estruturas
flexíveis do mundo do trabalho na Venezuela, que obrigam os
trabalhadores venezuelanos a desenvolver atividades extras para
reproduzir as mínimas condições de existência para eles e seus
familiares, ou trabalhar por conta própria, como gostam de denominar o
“trabalho a domicílio”, que teve seu funcionamento detalhado por Marx
na Europa do século XIX.
Da mesma maneira em evidente populismo, longe de romper a
flexibilização a que aludimos, Chávez propõe outorgar benefícios
sociais aos numerosos trabalhadores “por conta própria”, medida com a
qual consolida constitucionalmente, ainda que de maneira tácita, a
submissão do trabalho ao capital. À margem das especulações que podemos
fazer sobre a insuficiência ou pertinência dos benefícios sociais para
quem os recebe.
A nova “geopolítica” venezuelana
A habilidade mostrada para
neutralizar seus opositores, seja meios de comunicação, burgueses
intermediários venezuelanos, sindicalistas e, mais recentemente,
colaboradores dos primeiros anos de seu governo, como Raúl Baduel e seu
mentor, o octogenário Luis Miquilena, ex-“comunista” venezuelano;
Chávez também tem se colocado em lugares preferenciais da cena
latino-americana e mundial, através de uma astuta mescla de seu
infinito histrionismo e sua capacidade de manipulação dos mercados,
graças à alta do petróleo.
Na América Latina conseguiu a incondicionalidade do presidente
equatoriano Rafael Correa e na Bolívia do presidente Evo Morales. Com
este último assinou a chamada Alternativa Bolivariana para os Povos de
Nossa América (AL BA), a qual aderiu Fidel Castro, de Cuba. Acordo mais
propagandístico que verídico, pois o montante que mobiliza e
intercambia a ALBA não deixa de ser irrisório.
Por outro lado, Chávez estreitou frequentes e íntimas relações com o
mandatário iraniano Mahmud Ahmadinejad, com quem assinou convênios
bilaterais em matéria agrícola, pesqueira e alimentar, a construção de
uma fábrica de cimento e intercâmbio tecnológico em matéria de
mineração, a construção de casas, assim como a conformação de uma
empresa petroleira com capitais da PD VSA5
e da empresa iraniana PETROPARS, assim como muito habilmente se valeu
de seu aliado iraniano para tensionar os termos da negociação com o
imperialismo ianque, a ponto de ameaçar a subida para US$ 200 o barril
de petróleo em caso de uma eventual invasão ianque ao Irã. As reformas
constitucionais de Chávez, abrangem, também, o reclame da soberania
marítima venezuelana superposta às águas da República Dominicana, com
quem já se iniciou a disputa pela exploração pesqueira.
Sem dúvida o fascínio que sente pelo poder converteu o mandatário
venezuelano em um audaz e temerário negociador com as potências
imperialistas, deslumbrador das esquerdas caviar latino-americanas,
sedutor das massas venezuelanas através de pequenas dádivas e outros
cantos de sereia como a instalação de Conselhos Populares Comunais,
eficiente articulador de eixos regionais de negociação e regateio, como
o conformado com Bolívia e Cuba, ao qual deve se somar o Equador; e
veemente membro das organizações chave na cena mundial: a OPEP.
As características de inegável liderança de Chávez concitam e
concitarão nossa atenção para o futuro imediato, pois é muito possível
que cedo ou tarde se rompa o tênue fio que mantém sua estratégia de
conluio e pugna com os países imperialistas para desenvolver e afirmar
somente a pugna. Vale a pena acompanhar a corrida armamentista na qual
está imerso o Estado venezuelano, pois quiçá os choques verbais deste
presidente com a Casa Branca e o rei da Espanha deixem de ser meramente
fatos anedóticos.
1 - CEPAL - Comissão econômica para a América Latina
2 - Organização que reúne os países produtores de petróleo, entre eles os países árabes e latino-americanos, como Venezuela e Equador.
3 - Note-se que a passagem da hegemonia imperialista britânica para a ianque, as estradas de ferro, os trilhos de aço e o carvão foram substituídos pelos automóveis, estradas asfaltadas e a gasol.ina como derivado do petróleo.
4 - Caja chica - Soma de dinheiro vivo destinado a gastos menores de uma empresa ou repartição, que fica sob a responsabilidade de uma pessoa encarregada de utilizá-la quando houver necessidade.
5 - PDVSA - Petróleo de Venezuela Sociedade Anônima.