O eleitorado ucraniano perdeu a paciência
Volodymyr Zelensky, ator ucraniano e candidato na eleição presidencial de 31 de março, durante sua comédia-show em um teatro de Kiev, em 22 de fevereiro de 2019 (Arquivo: Reuters/Valentyn Ogirenko)
A Ucrânia está à beira de uma mais uma revolta. Desta vez, todavia, os ucranianos não levarão sua ira para as ruas como na revolta anterior; desta vez sua ira mostrará que estão tranquilamente se rebelando, nas cabines de votação, contra a elite política e sua corrupção, ao elegerem um presidente em 31 de março.
A cédula de votação será imensa, com os nomes de 39 candidatos ao todo - um recorde. Melhor ainda, o líder da corrida é o mais improvável dos candidatos: Volodymyr Zelensky, um comediante sem qualquer experiência política ou especialização no assunto.
Alguns dias antes da votação, Zelensky liderava as pesquisas com uma vantagem de 8 a 15% à frente do atual presidente Petro Poroshenko. Os dois provavelmente se encontrarão em um segundo turno, que se dará em 21 de abril próximo.
O papel mais famoso de Zelensky é na série de TV chamada O Escravo do Povo. Ele representa um professor pobre e honesto que se torna presidente por puro acaso. O comediante gosta de dizer que “compartilha os valores” de seu papel.
E, exatamente como em suas séries de TV, Zelensky considera a política na Ucrânia como uma tempestade. Foi guindado ao topo através de um canal popular de TV de propriedade de um dos maiores oligarcas ucranianos, Igor Kolomoisky, que atualmente vive entre a Suíça e Israel.
O canal dá grande espaço tanto para Zelensky, o candidato, quanto para Zelensky, o ator. O ator chegou a brilhar em uma série de programas de TV e documentários às vésperas da eleição, quando as campanhas eram proibidas por lei.
Tanto Kolomoisky quanto Zelensky negam qualquer ligação política, a despeito de o advogado do oligarca ser parte da equipe de campanha do comediante, e sua guarda o estar a acompanhá-lo na campanha.
Os pesquisadores dizem que a popularidade de Zelensky é resultado do reconhecimento do bom nome de que ele desfruta e do profundo desapontamento e desilusão com sua elite governante. Os eleitores estão prontos para uma nova face, mesmo quando estão cientes que ela pertence a um homem que quase não tem competência em política.
Profunda desilusão
Uma recente pesquisa do Gallup mostrou que a Ucrânia detém o recorde mundial de baixa confiança no governo pelo segundo ano consecutivo: somente 9% dos adultos têm confiança nele, abaixo da média regional das ex-repúblicas soviéticas de 48% e da média global de 56%.
Este é o preço que a elite política está a pagar ao não cumprir as promessas da Revolução pela Dignidade na Ucrânia, em 2013, em busca do crescimento econômico, prevalência da lei, transparência e padrão de vida mais elevado.
Nos últimos 5 anos, o desemprego e o subemprego têm levado um número estimado de 3,2 milhões de ucranianos (cerca de um em cada dez adultos) a buscar emprego fora do país de modo permanente, ao passo que muitos outros assumem empregos temporários fora do país todos os anos. As taxas de pobreza são altas, assim como é alta a desigualdade.
Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimentos (PNUD) detectou que cerca de 60% dos ucranianos estavam vivendo abaixo da linha da pobreza, em 2016, com a Ucrânia a permanecer como uma das nações mais pobres da Europa. Enquanto isso, seus oligarcas continuavam a se tornar cada vez mais ricos; em 2018, a mídia local registrou que a riqueza conjunta das 100 pessoas mais ricas do país cresceu 43% ou US$ 37 bilhões em apenas um ano.
Os negócios competitivos da Ucrânia também foram atingidos. “Nos meus piores pesadelos eu jamais poderia ter imaginado que estaríamos onde estamos agora” disse-me recentemente Yevgeniv Utkin, um empreendedor e pioneiro da indústria de tecnologia e informação na Ucrânia.
Ele não está chateado porque seu negócio de TI foi invadido algumas vezes por agentes policiais mascarados, procurando provas de crimes financeiros (e não fazendo qualquer acusação depois) – uma ocorrência comum na Ucrânia atual e que passou a ser chamado de “maski show”. Nem está aborrecido pela perda da maior parte de seus ativos russos depois que Moscou anexou a Crimeia e deu início a uma guerra no leste da Ucrânia em 2014.
Como muitos outros da área de negócios, Utkin simplesmente foi perdendo a esperança ao longo do tempo.
Ele me contou um incidente em especial que o tornou um desiludido logo de início. No verão de 2014, assim que Poroshenko assumiu o poder, Utkin foi a ele com uma ideia para a solução hi-tech para as radiocomunicações do exército. Ele era tido como um antigo quadro de administração e multimilionário, que estava mais interessado em convidar Utkin para, junto com ele, fazer uma viagem de iate até a Sardenha. Utkin ofegou - e recusou.
Algumas semanas mais tarde, em agosto, ocorreu uma das mais ferozes batalhas da guerra, na cidade ucraniana de Ilovaisk. Ao menos, 366 soldados ucranianos morreram, 429 saíram feridos e centenas foram capturados em uma emboscada. Muitos fatores levaram a essa tragédia, incluindo a significativa presença de tropas russas, conforme descobriu o governo mais tarde. Porém, Utkin foi alcançado pelo importante papel que a pobreza de comunicações desempenhou nessa tragédia, e tinha sido este exatamente o problema que quis resolver.
Promessas quebradas
Poroshenko surfou na presidência sobre a onda da revolução e da guerra e na promessa de mudanças. Disse que encerraria a guerra em uma questão de dias, iria atrás dos poderosos oligarcas e "supervisionaria pessoalmente" a luta contra a corrupção.
Quatro anos mais tarde, Poroshenko teve que se desculpar por ter feito uma declaração precipitada e arrogante sobre o fim da guerra.
Ele tinha feito muito mais alavancagem para cumprir suas outras promessas - lutar contra a oligarquia e a corrupção, mas fez igualmente mal em ambos.
Os oligarcas ainda controlam grandes espaços da economia: energia, agricultura, mídia e o acesso aos monopólios estatais e aos recursos naturais. É difícil controla-los porque é difícil encontrar o estado de direito na Ucrânia.
A Associação Comercial Europeia, que executa uma investigação regular dos CEOs (Diretores Executivos de grandes corporações) para ter uma noção do clima de investimento na Ucrânia, descobriu que 78% dos que responderam à pesquisa estavam criticamente insatisfeitos com o nível de corrupção no país, 74% não acreditavam no Judiciário e 65% reclamavam da economia subterrânea na Ucrânia.
Há menos de um mês atrás, uma série de investigações jornalísticas revelou que Oleh Hladkovsky, vice-diretor do Conselho de Segurança Nacional e Defesa, além de amigo de Poroshenko e anterior parceiro de negócios e seu filho, estavam supostamente envolvidos relacionada com acordos de compra de sistemas de defesa.
No rescaldo do escândalo, o presidente ucraniano afirmou que os funcionários corruptos "devolveriam todos os kopeck (moeda ucraniana) que roubaram com os dentes".
Isto infelizmente é improvável, dado que a reforma do Poder Judiciário Ucraniano está indo “para o brejo”.
Em uma recente ilustração dessa falha espetacular, a comissão especial encarregada de indicar juízes para a Corte Suprema da Ucrânia indicou um bom número de juízes com folhas de serviços questionáveis, incluindo alguns que permitiram que dúzias de violadores da lei seca saíssem livres ou portassem dois passaportes (o que é ilegal na Ucrânia) no que são apoiados por outros juízes – dentre outras coisas. Ao mesmo tempo, o juiz ucraniano Pavlo Parkhomenko, que tem tanto o reconhecimento doméstico quanto o internacional, por seu trabalho a favor dos direitos humanos, foi o único candidato rejeitado.
Pressão por mudanças vindas de fora
Para ser completamente justa, tem havido alguma mudança na Ucrânia desde 2013. Seu produto interno bruto (PIB) cresceu 3,3% no último ano, o mais alto nível desde 2011. O setor bancário ucraniano foi quase que inteiramente eliminado, com quase 100% dos bancos suspeitos fechados e o Banco Nacional completamente reformado.
A holding estatal do gás Naftogas experimentou uma transformação quase milagrosa e saiu de um prejuízo líquido de 18 bilhões de hryvnia, a nova moeda ucraniana (2 bilhões de kopeck), em 2013, para um lucro recorde de 39,4 bilhões de hryvnia (1,5 bilhão de kopeck, em 2017).
Um sistema nacional de compras eletrônicas, o Prozorro, foi lançado para garantir que todo o dinheiro público fosse gasto de forma eficiente e transparente. Ele economizou cerca de US$ 2,76 bilhões a menos em cinco anos e ganhou inúmeros prêmios internacionais por inovação e excelência.
Ademais, reformas significativas foram iniciadas nos sistemas de saúde e de educação.
E o mais importante para a média dos ucranianos: o país agora participa de um sistema “livre de vistos” com seus vizinhos da União Europeia.
Entretanto, a maior parte dessas reformas foi tornada possível por meio da pressão exercida pela sociedade civil ucraniana (a qual tem muito a ver com o apoio do Ocidente) e doadores e parceiros internacionais, tais como a União Europeia, os EUA, o Canadá e outros.
Cada uma dessas reformas teve um líder do estilo kamikaze, tipicamente oriundo de fora do sistema existente, que temporariamente adentrou no setor de negócios ou outras áreas do dia-a-dia para dar um impulso ao país através de uma causa específica.
Depois de cumprir a tarefa, muitos deles se foram ou foram levados a sair; outros estarão lá até as eleições e ainda outros foram sabotados e seus esforços foram, com frequência, anulados pelos jogadores políticos mais perspicazes que ocupam os mais altos cargos do governo.
Assim, durante os anos, a elite política da Ucrânia tem provado por diferentes maneiras que ela própria é incapaz de realizar a mudança na escala e na profundidade esperadas pelo eleitorado.
Em um episódio do “Escravo do Povo”, Zelensky, em seu papel diz ao parlamento que “a sociedade está mudada e não irá mais esperar e perdoar”. Então, ele começa a fuzilar todos os membros do parlamento com uma arma automática.
A sociedade ucraniana, de fato, está mudada e claramente não quer mais esperar e perdoar. Em 31 de março, provavelmente irá "fuzilar" sua elite política fracassada através das urnas. Depois, que forma irá ter sua ira crescente, fica a cargo de cada um conjeturar.
As opiniões expressas neste artigo são do próprio autor e não refletem necessariamente a visão editorial de Al Jazeera.
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Sobre a autora:
Katya Gorchinskaya é uma jornalista ucraniana, gerente de mídia e ex-CEO da Hromadske Televisão.
@ kgorchinskaya
Tradução do inglês: A. Pertence