Soljenitsyn, sete vidas em um século

Se algum fato contribuiu de verdade para a queda do “comunismo de rótulo” implantado na URSS, este foi a denúncia constante do sistema feita por Alexander Soljenitsyn que viveu no intestino do modelo.

Conhecedor da obra de Alexander Soljenitsyn, Bertrand Le Meignen dedicou cinco anos ao trabalho sobre a biografia do célebre dissidente russo. Ao final, um total de 850 páginas que traçam uma existência que começou a partir da Primeira Guerra Mundial, em 11 de dezembro de 1918 (28 de novembro no calendário juliano), e terminou em 3 de agosto de 2008, quando se instalou o caos financeiro causado pela crise das subprimes.

Era necessária uma obra como essa para recuperar a vida excepcional deste homem animado por uma força interior fora do comum.

Esta biografia bem completa e bem documentada, fácil de ser lida e ilustrada por numerosos testemunhos diretos nos faz viver todas as provas transpostas por Soljenitsyn: (“aos 9 anos, decidi que seria escritor”), sua adolescência na União Soviética nascente, seus estudos científicos, a guerra durante a qual foi oficial, seu aprisionamento brutal antes da vitória, o gulag e seu câncer, sua vida de opositor caçado enquanto construía sua obra, seu exílio e sua volta à Rússia.

Sete vidas! Bertrand Le Meignen recorda as origens de Soljenitsyn que nos levam a seus ancestrais longínquos, agricultores proprietários, em conflito, desde 1698, com o Czar Pedro I que não admitia a instalação de Felipe Solojanitsyn (sic) nas terras da Coroa, e com este outro avô envolvido, em 1708, em uma revolta de agricultores; “o escritor fica profundamente marcado pelo poder do caráter de seus ascendentes maternos, por suas opiniões políticas e religiosas e por suas raízes em grande parte ucranianas.” (pág. 20). Isto será encontrado “nas páginas do 14 de agosto e do 16 de novembro (onde) se vê crescer a cólera do agricultor.”

Um século de uma existência excepcional

O pai de Soljenitsyn, um oficial subordinado, comandante de uma bateria de canhões, morreu estupidamente em 15 de junho de 1918 após um acidente de caça! Soljenitsyn ficou órfão de pai antes mesmo de nascer.

Nasceu na escravidão “russa por parte de sua família paterna e majoritariamente ucraniana por parte de sua família materna... mas conheceu bem a cicatriz que separava russos e ucranianos depois do bombardeio de Kiev (dos séculos IX ao XIII) e tinha noção exata da perigosa distância que separava a Ucrânia da Rússia.” (Pág. 43).

Sua juventude foi soviética, agitada pelas lutas intestinas e pela imposição desse regime, a coletivização, a gulaguização, a chegada de Stalin: “1929 foi o ano em que o Gulag começou a proliferar em metástase com a criação de novos campos”.

A cicatriz em sua fronte datava de 9 de setembro de 1930, sequela de uma queda provocada por um de seus camaradas que feriu sua mão com uma faca. Foi a companhia dos camaradas com os quais matava aulas de matemática para jogar futebol, que o fez ser expulso da escola. Apesar de tudo, conseguiu entrar para os Pioneiros (uma organização da juventude comunista).

1934 foi o ano das grandes repressões: “para todo lado surgiram montanhas de mentiras ... era como se toda uma nação tivesse sucumbido a uma obsessão de ventríloquo!” (Pág. 79) Foi também o ano da criação do NKVD (Comissariado do Povo para os Assuntos Internos) com o qual ele se veria logo envolvido. Essa sigla seria logo ridicularizada: Ne znayou Kagda Vernous Domoï (“Não sei quando voltarei para casa”).

Soljenitsyn terminou brilhantemente seus estudos secundários em 1936, o que lhe abriu as portas da universidade onde estudou matemática “o que lhe salvou duas vezes a vida”, na prisão de Marfino para engenheiros durante os quatro anos de sua pena e, em seguida, durante o seu rebaixamento, onde seria professor, recebendo um tratamento especial. Paralelamente a seus estudos científicos, ele fez cursos por correspondência no Instituto de Filosofia, de Literatura e de História de Moscou (IFLI).

Bravura em combate e “atividades criminais”

Em abril de 1940, casou-se. Em 22 de junho de 1941, chegou a Moscou para submeter-se aos exames no IFLI. Foi uma data funesta, já que marcou o início da operação Barbarossa. A Wermacht tinha invadido a URSS.

Em 18 de outubro de 1941, foi mobilizado na cavalaria como simples soldado. Foi nessa época que começou de fato a escrever. Após seis meses, ele se juntou à artilharia onde se tornou chefe de uma bateria de rastreamento de som, graças à sua excelência em matemática.

Mesmo participando da guerra, ele escrevia e se correspondia com seus amigos com os quais “tinha elaborado por escrito um projeto político alternativo, a Resolução nº 1”. Por praticar atos de bravura em combate, recebeu diversas condecorações. Porém, investigado desde a primavera de 1944, foi detido em 2 de fevereiro de 1945 em razão de suas “atividades criminais”. Assim, ele não assistiria a vitória.

Entrou, então, no “Arquipélago Gulag” que não parava de crescer: 179.000 detentos em 1930, 1,7 milhão no início de 1946 e 2,5 milhões no período 1940-1953 para uma população total de 150 a 180 milhões habitantes, “Anne Applebaum estimou que 18 milhões de pessoas, pelo menos, passaram pelos campos do Gulag entre 1929 e 1953.” (Pág. 149) Soljenitsyn estima, referindo-se a um período mais longo, e compatibilizando todas as situações, que entre 40 e 50 milhões de pessoas foram alcançadas por esse sistema de concentração e de repressão.

Soljenitsyn não via este aprisionamento de maneira totalmente negativa: por um lado, o sistema o perseguiu e por outro, o sistema tratou seu câncer e suas recidivas. Foi assim que ele reviveu sua fé ortodoxa.

Com efeito, durante o stalinismo, as diferentes religiões continuaram vivas, inclusive o Islã, a segunda religião de país. Esse período foi também propício à criação: ele inventou poesias e guardou no coração milhares de versos já que não lhe era permitido escrever.

A dissidência e depois o exílio

“Sua libertação foi uma libertação enganosa e não uma verdadeira.” (Pág. 305) Ele voltou a Moscou no fim de junho de 1956 e cumpriu passos para uma reabilitação complicada, posto que não tinha sido beneficiado pela anistia geral para aos políticos.

Seguiu-se depois o período de dissidência (1963-1974), com o prosseguimento de seus escritos, os múltiplos artifícios para disfarçá-los, relê-los, duplicá-los (graças a pessoas que ele chamava de “os invisíveis”), fazê-los sair da União Soviética. Era a época dos Samizdat, a difusão clandestina dos escritos dos dissidentes, as relações “difíceis” com a União dos Escritores. Toda uma luta surda contra o regime enganador da União Soviética que será “reconhecida” em outubro de 1970 com a atribuição a ele do Prêmio Nobel de literatura.

Em agosto de 1971, foi vítima de uma tentativa de assassinato. Foi vítima também de violentas campanhas da imprensa que visavam desconsiderá-lo. Foi finalmente privado de sua nacionalidade e expulso da URSS em 13 de fevereiro de 1974.

Seu exílio de 20 anos na Europa e mais tarde nos EUA não foi um período de repouso. Embora apreciasse o conforto material que lhe permitia retomar seus escritos e viajar, ele descobriu também a realidade do mundo livre. Seus discursos no Reino Unido e nos EUA bem como suas conferências de imprensa mostraram até que ponto ele continuava crítico do mundo, ele que não suportava a mentira.

Visceralmente ligado à Rússia e a seu povo, ele voltou à sua terra natal em maio de 1994, porém pela parte leste do país, por Vladivostok e Magadan, portos que tinham visto passar centenas de milhares de condenados ao Gulag. Ele continuava a escrever, sempre com uma visão crítica sobre os acontecimentos que agitavam a Rússia e o mundo.  

Embora a Rússia procurasse destruí-lo, essa mesma Rússia prestou-lhe uma homenagem nacional em sua morte. Apesar de os editores franceses terem contribuído muito para a difusão de suas obras por todo o mundo, nenhum representante oficial da França esteve presente em suas exéquias.

O interesse por esta biografia residiu naquelas idas e vindas permanentes entre a vida cronológica real de Soljenitsyn e os escritos que relatam essa vida, comparando pessoas reais e personagens de seus textos, aqueles que o inspiraram. Tudo isto lembrando a evolução da URSS, as revoltas nos campos do Gulag em 1954 e a luta dos dissidentes.

Esta biografia revelou uma energia sem fim e a inventividade que Soljenitsyn se utilizou para denunciar o regime soviético e seu sistema concentrador.

L’Herodote, 10 de dezembro de 2018

Christian Guyard

Tradução do Francês: A. Pertence

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