O próximo grande desastre humanitário está sendo preparado na China. Dessa vez, deveríamos agir antes que seja mui tarde.
Adoradores muçulmanos Uigures em uma sessão de orações da tarde numa mesquita de Kashgar Idgah, na província de Xinjiang. Foto tirada em 05/08/2008 (Nir Elias / Reuters)
Rwanda, Timor Leste e Myanmar. O mundo tem o hábito cruel de ignorar desastres humanitários até que este seja irreversível. Velhos hábitos demoram a morrer e as pessoas que são alvo de programas de limpeza étnica liderados por algum estado sofrem cada vez mais. Todavia, a existência de campos de concentração e a criminalização do Islamismo praticada contra muçulmanos Uigures na China deveria alertar a todos e cada um. Agora!
Em agosto, o Painel de Direitos Humanos da ONU relatou que cerca de um milhão de muçulmanos Uigures foi forçado a ir para instalações que se assemelham a campos de internação em massa, em Xinjiang – região autônoma no oeste da China, terra de cerca de 10 milhões de muçulmanos Uigures. Gay McDougall, integrante da Comissão da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial, afirmou que algo como dois milhões de Uigures e outras minorias islâmicas foram obrigadas a ir para “campos de doutrinação política”.
A escala de internações na China é incrível, chega a algo como um em cada dez muçulmanos Uigures que vivem em Xinjiang está “desaparecido em campos de internação”. O número é ainda mais incrível para aqueles que têm familiares ou amigos trancafiados por nenhum crime exceto a prática religiosa – do Islamismo – em uma região na qual essa religião é abertamente associada à subversão, ao separatismo e ao terrorismo.
Contudo, o internamento de um milhão de pessoas em Xinjiang é somente a ponta do odioso estado da arquitetura da limpeza étnica praticada contra os Muçulmanos Uigures. As próprias expressões “internamento” e campos de concentração” evocam instantaneamente as imagens do Holocausto ou o cerco aos nipo-americanos durante a Segunda Guerra Mundial. São fortes analogias que incentivaram o New York Times, o The Atlantic e o Intercpt a publicar matérias recentes documentando a classificação feita na China de o Islã ser uma “doença mental” e de seu implacável objetivo de aniquilá-lo por meio de um amplo sistema de limpeza étnica, no qual o internamento é somente uma parte.
Mesmo assim, a maior parte do mundo permanece desinformada sobre os horrores que se passam em Xinjiang. E ainda mais, completamente desfamiliarizada com um povo enjaulado no ventre de uma superpotência pronta para destruí-lo.
Quem são os Uigures?
Um retrato da história e da identidade dos muçulmanos Uigures lança luz sobre o porquê de a China, uma nação comunista, que consagra o ateísmo e privilegia sua população de maioria étnica Han, estar comprometida com a eliminação desse povo. Os Uigures são uma minoria estigmatizada em duas frentes: a etnia e a religião, aprisionada dentro da precária mira de um Estado policialesco Orwelliano que vê o Islã como uma afronta ao ateísmo patrocinado pelo Estado e a identidade Uigur como um obstáculo à supremacia étnica Han.
Os Uigures são indígenas em Xinjiang, uma região autônoma no noroeste da China que faz fronteira com a Mongólia a nordeste e uma miríade de nações de maioria muçulmana à sua esquerda. Após uma breve declaração de independência na alvorada do século XX, Xinjiang – e uma considerável população de muçulmanos Uigures – foi anexada pela China em 1949, e permanece sob seu controle autoritário até o dia de hoje.
Além da afinidade religiosa, a etnia Uigur se parece e coincide com a de seus vizinhos da Ásia Central, tais como o Cazaquistão, o Quirguistão e outros países de população predominantemente Turca. A região ainda é chamada de Turquestão Oriental pelos muçulmanos Uigures. Em consonância com esta imagem nacionalista, os Muçulmanos Uigures também têm a sua própria língua, o Uigur, anteriormente conhecida como Turki do Leste, que apenas é falada pelos Uigures que habitam Xinjiang e por populações na diáspora.
Alguns elementos em meio à população Uigur na China têm buscado recuperar sua independência, lembrando o caráter indígena de sua gente e a perseguição chinesa como bases para a separação da China. Em resposta, a China passou a promover movimentos de massa de chineses da etnia Han em direção ao interior do país, inclusive para Xinjiang, o que reduziu de forma efetiva os muçulmanos Uigures a uma minoria em sua terra natal, dificultando estrategicamente a possibilidade de independência.
Os ataques terroristas de 11 de Setembro, nos Estados Unidos, deram novas possibilidades à China para reduzir sua população muçulmana Uigur além da engenharia demográfica. Pequim adotou a islamofobia americana consagrada pela administração Bush, e lançou uma “Guerra ao Terror” que associava o Islã ao terrorismo. Com a maior parte do mundo a suspeitar do Islã e a Guerra Global plenamente implantada, a China montou uma paisagem geopolítica amadurecida que permitiu uma repressão robusta e sem descanso contra os muçulmanos Uigures - tornando o Islã o melhor caminho para destruir um povo que se recusava a comercializar sua fé, idioma e costumes para as alternativas que lhe eram impostas por Pequim.
Assim, a escala de largura e a profundidade de perseguição chinesa contra os muçulmanos Uigures foi inteiramente revelada por seus objetivos genuínos: a transformação, a aniquilação e o não desmascaramento de terroristas.
Criminalizar e policiar de perto o Islã, o mais notável e sagrado sinal da identidade Uigur, foi o modo como Beijing agiu para alcançar seu objetivo. Em 2015, a China proibiu os estudantes, professores e outros servidores civis em Xinjiang de observarem o jejum durante o mês do Ramadã, que se estendia além da esfera pública por meio da intimidação policial e inspeção nas casas das famílias durante o mês sagrado para os muçulmanos. Esta proibição foi acompanhada, de acordo com o Human Rights Watch (Observatório de Direitos Humanos) pelo veto aos Imans Uigures, vigilância estrita das mesquitas, remoção de professores religiosos e estudantes das escolas, restrições aos muçulmanos Uigures de se comunicarem com a família ou amigos que vivessem fora do país e triagem da literatura destinada aos estudantes nas escolas de Xinjiang.
Embora Xinjiang tenha se transformado rapidamente em uma prisão a céu aberto para os muçulmanos Uigures nos últimos anos, a observância aberta do Islamismo levaria diretamente ao tipo mais vil de prisão chinesa: um campo de concentração projetado para "curar" uma pessoa do Islã e esmagar o Islamismo Uigur.
O internamento e a arquitetura da limpeza étnica
A supressão da observância do Ramadã enviou uma clara mensagem aos Uigures durante o mais emblemático período da vida de um muçulmano: essa forma de expressão do Islã seria punida com a impunidade. Por seu turno, a proibição estatal no Ramadã destruiu uma pedra angular da cultura e da vida Uigur, e além do mês sagrado, levou adiante a visão estatal de que o Islã é “uma doença ideológica” que deve não somente ser perseguida criminalmente, mas também tratada patologicamente.
Os campos de internamento, designados como “centros de reeducação” pelo Estado chinês, cresceram em tamanho e número a partir de 2013. No interior desses campos abarrotados, agentes do Estado recebem a missão de curar a doença (o Islã) por meio de uma ladainha de horrores que incluem obrigar os muçulmanos Uigures a comer carne de porco e beber álcool (ambos proibidos pelo Islã), decorar e cantar canções das festas comunistas, realizer trabalho estafante, se inscrevem em cursos do idioma Mandarim e treinamento abrangente visando remover deles sua religião e sua cultura.
Trancafiados, afastados de casa e da família, 10 a 20 porcento dos muçulmanos Uigures estão presentemente experimentando ou resistiram aos horrores da maior rede de campos de internamento desde a 2ª Guerra Mundial. Aqueles que resistem durante o internamento são torturados e há registros de mortes de membros das famílias e desaparecimentos completos amplamente documentados. A maior parte dos internados são homens e as autoridades chinesas têm complementado esse encarceramento desproporcional de homens com uma política de forçar as mulheres muçulmanas Uigures a se casarem com homens da etnia Han (não muçulmana). Trata-se de diluir ainda mais a população muçulmana Uigur e proteger a hegemonia Han.
Jovens Uigures
A ameaça de internamento que ronda Xinjiang como uma nuvem escura agiganta-se de forma pesada na mente de cada muçulmano Uigur. Na verdade, as detenções e o medo da detenção se tornaram um fato inevitável na vida diária. “Esse temor é uma arma que o governo Chinês tem usado para deter e intimidar os Uigures no exercício de sua fé, arma esta reforçada pela polícia onipresente nas comunidades muçulmanas Uigures, ameaçando os vizinhos e colegas de Uigures para que sirvam como coletores de dados e espiões e talvez até mesmo recrutando crianças Uigures para monitorar e implicar seus próprios pais”. O “Big Brother” seria um eufemismo severo, dado que as autoridades Chinesas em Xinjiang alistaram virtualmente tudo e todos nas comunidades muçulmanas Uigures a fim de participarem do projeto de desenraizamento do Islã.
O núcleo da limpeza étnica: a lavagem cerebral das crianças
Na semana passada, Sigal Samuel escreveu no The Atlantic, “a repressão na China mostra alguns Uigures em Xinjiang preocupados que seus próprios filhos possam incriminá-los acidentalmente ou porque os professores encorajam os pequenos a espionarem seus pais.” O trabalho de Samuel ajudou a impulsionar a discussão a respeito dos horrores que têm ocorrido em Xinjiang além dos campos de internamento e que criaram uma abertura para aprender acerca dos outros tentáculos do programa de limpeza étnica na China, nomeadamente aqueles que envolvem as crianças Uigures.
O projeto chinês para quebrar a unidade da família, o bloqueio da construção da sociedade muçulmana Uigur em Xinjiang tem sido conseguido através do programa de rotinas de organização das crianças para relatar as atividades religiosas de seus pais (controladas pelo Estado) feitos pelos professores. E também pela instituição formal de orfanatos operados pelo Estado, nos quais filhos e filhas de Uigures internados nos campos recebem um programa de lavagem cerebral cultural e de assimilação adequado para crianças.
Dentro das paredes desse orfanatos, onde “(crianças) de 6 meses a 12 anos de idade ficam trancadas como animais”, as autoridades Chinesas executam o que é talvez o núcleo de seu programa de lavagem cerebral: uma espécie de engenharia para que uma geração inteira de muçulmanos Uigures vire as costas a seus pais, sua religião, sua cultura na direção do ateísmo, do idioma Mandarim e dos hábitos dos Han, privilegiados por Beijing. Beijing obterá em troca, ao retirar o povo Uigur e suas crianças de seu modo de vida e ao pavimentar o caminho na direção da dizimação completa de 10 milhões de muçulmanos Uigures a extinção de uma nação que já existia antes da criação do moderno Estado Chinês.
Esperando pelo mundo
Na terça-feira, 4 de setembro de 2018, enviei um tweet sobre o internamento de um milhão de muçulmanos Uigures que viralizou, porém o mais importante: chamou a atenção de muçulmanos Uigures na diáspora. Um graduado estudante Uigur (cujo nome não posso revelar porque a China pode querer se vingar dele ou de sua família) na Inglaterra me contactou, compartilhando histórias íntimas sobre os julgamentos que membros de sua família e amigos suportaram nos campos de internamento. Como muitos outros, fiquei sabendo da crise por causa da sequência de manchetes documentando o internamento de um milhão de muçulmanos Uigures. Fiquei alarmado com a escassez da cobertura sobre estes fatos na “grande mídia” – e como o mundo não era apenas preguiçoso para responder, mas também altamente desinformado.
“Estamos esperando pelo mundo”, disse-me o estudante no Twitter, prefaciando uma declaração que revelaria a gravidade do estado de violência que se desencadeou sobre seu povo, sua gente: “estamos esperando que o mundo saiba quem somos nós”, concluiu ele. Este é um argumento básico que a China procura eficientemente manter escondido enquanto sistematicamente policia e pune todos os que apresentam vestígios da vida muçulmana Uighur. Para compreender o projeto de extermínio que a China preparou para os muçulmanos Uigures, precisamos antes saber quem eles são como povo. São pessoas orgulhosas, cujos únicos crimes são viver em uma terra que sempre foi sua e que expressa uma fé e cultura profundamente enraizadas nesse solo.
Reconhecer sua existência, como uma comunidade global, frustra a essência do programa de limpeza étnica chinês que consiste em rejeitar a identidade muçulmana Uigur e removê-la da memória. Ainda não é tarde para nós, todos nós, para sabermos quem são os Uigures e, em seguida, evitar o próximo desastre humanitário.
As opiniões expressas neste artigo são do próprio autor e não refletem necessariamente a posição editorial de Al Jazeera.
Tradução do Inglês: A. Pertence
- Khaled A Beydoun