No momento em que o preço do barril de petróleo ultrapassa os U$ 90,00, uma outra onda, contínua e silenciosa, se espraia pelo mundo. Trata-se da alta dos preços agrícola, em especial dos gêneros alimentícos. A análise é de Francisco Carlos Teixeira.
"A explosão dos preços dos
cereais nos últimos meses e a ameaça que a situação vai prolongar-se no futuro
imediato levou ontem a UE a tomar medidas drásticas para aumentar seu cultivo e
favorecer sua importação". EL PAÍS, 27/09/2007, p. 48.
O avanço
silencioso da fome
No momento – novembro de 2007 - em que o preço do
barril de petróleo ultrapassa os U$ 90,00, uma outra vaga, contínua e
silenciosa, se espraia pelo mundo. Trata-se dos preços agrícolas, em especial
dos gêneros alimentícios. Desde 2005 os preços do milho duplicaram e o "bushel"
– medida standard de 24.5 quilos - de trigo aumentou mais de 60% ( no mercado
americano atingiu, em outubro de 2007, o preço recorde de U$ 9.16 em face da
média histórica de U$ 6,00 ). As razões para tais aumentos poderiam ser
atribuídas a duas ordens de fatores: de um lado, existiriam causas conjunturais
e, portanto, aperiódicas e de difícil previsão e controle. Entre estas razões
estão as variações climáticas globais. Secas extraordinárias ocorreram em vários
paises produtores, tais como Argentina, Austrália, Ucrânia e Cazaquistão. Ao
mesmo tempo, chuvas intensas e pesadas abateram-se sobre a América do Norte e
Europa, grandes centros produtores, acentuando a perda de colheitas de
grãos.
A colheita de 2006 nos 27 países da União Européia ficou abaixo da
previsão ( cerca de 226 milhões de toneladas ). A conseqüência imediata foi a
passagem, espetacular, da União Européia da condição de exportador para
importador bruto de cereais e grãos. Por outro lado, razões estruturais,
portanto constantes, surgiram com forte intensidade, mesmo antes de
2006.
Entre as razoes estruturais que alteraram em profundidade o mercado
mundial de alimentos está a entrada maciça no mercado da China Popular e da
Índia como grandes compradores. Também o Oriente Médio, na vaga do aumento dos
preços do petróleo, tornaram-se grandes compradores de alimentos. Com a
incorporação de ambas as nações aos circuitos globais de comércio puderam
acumular imensas reservas e utilizá-las para a compra de alimentos para a
população, melhorando e intensificando o padrão-alimentar
interno.
Uma crise global
De qualquer forma, em ambos os
países deram-se, também, fortes alterações nas práticas agrícolas, com o
surgimento de vastos campos de cultivos voltados para a produção de biomassa
para combustíveis – cana-de-açúcar na Índia e milho na China Popular – incidiu
diretamente na área agrícola voltada para a produção de grãos e cereais. Assim,
em vastos conjuntos geográficos – centros tradicionais de agricultura de
alimentos, como a América do Norte, Europa, China Popular e Índia – deu-se um
notável decréscimo da produção de milho, trigo, sorgo. Com a diminuição dos
grãos, e seu conseqüente aumento, também a produção mundial de leite entrou em
declínio (milho e farelos são utilizados comumente para a alimentação do gado
leiteiro). Assim, desde 2005 o preço do leite – vendido em pó no comércio
mundial – duplicou. Em alguns estados da Federação Americana, como o Wisconsin,
o preço do leite já é superior ao preço da gasolina.
Nos Estados Unidos a
transformação de amplos campos de cultivo em produção de milho e o uso de tais
colheitas na produção de etanol – como a imensa produção de Iowa no Middle West
– impactou fortemente o mercado de alimentos. Com uma demanda crescente –
incluindo aí a indústria de alimentos, a suinocultura, a avicultura e a produção
leiteira mais poderosa do mundo – os Estados Unidos passaram a comprar. Assim,
desde 2005, os Estados Unidos passaram a realizar compras maciças no mercado
mundial e valendo-se dos mecanismos de livre-comércio no interior do NAFTA ,
passou a adquirir uma grande quantidade de milho mexicano. O resultado imediato
sobre o mercado mexicano foi o brutal aumento dos preços no México. O preço da
"tortilla" mexicana refletiu de imediato as conseqüências, no âmbito do NAFTA,
das opções americanas. O livre mercado de combustíveis nos Estados Unidos – com
as alterações de preços chegando diretamente ao consumidor – incide, assim, de
forma imediata na segurança alimentar do país-sócio.
Crise
estrutural?
Ora, ao contrário dos fatores aperiódicos, na maioria das
vezes de caráter climático, os chamados "fatores estruturais" são persistentes,
permanentes, e, tendencialmente, crescentes. É de crer que as compras chinesas e
indianas, além da presença norte-americana nos mercados, não só aumentem, mas,
aumentem em ritmo acelerado. Da mesma forma, a conversão de campos de cultivos
para fins alimentares em cultivos de fins energéticos nos Estados Unidos deverá
se manter e, mesmo, se acentuar.
A dependência dos Estados Unidos do
combustível abundante e barato – um traço civilizacional norte-americano – em
meio a uma conjuntura amplamente conflitiva no Oriente Médio/Golfo Pérsico e com
adversidades na Venezuela, implicará, continuamente, na busca de combustíveis
alternativos. Assim, a nova aliança entre Washington e Brasília teria seu centro
de gravidade na busca de formas alternativas, de preferência limpas, como
substituição parcial ao combustível fóssil.
Da mesma forma, a aliança
Caracas/La Paz, valorizada por um longo artigo de Fidel castro no Gramna –
contra os biocombustíveis – atende aos mesmos objetivos. Como detentores das
maiores reservas de combustível fóssil no continente – ao lado do equador – um
projeto alternativo de bionergia limpa patrocinado por dois megaconsumidores
(Estados Unidos+Brasil) só poderia gerar temor em Caracas e La
Paz.
Particularmente os investimentos maciços do Brasil em energia
elétrica – as usinas do Rio Madeira – e a opção emergencial pelo gás liquefeito,
apontariam para uma forte perda de poder de pressão/negociação por parte de La
Paz.
Comestíveis ou combustíveis: um dilema?
Da mesma forma,
as críticas no âmbito da União Européia possuem a mesma lógica – de um lado, a
presença do mercado e, de outra, a construção da geopolítica alternativa de
combustíveis. Como os maiores produtores de biomassa para uso energético – a
Alemanha à frente com a colza – a chegada de novos concorrentes, em especial o
Brasil com seus abundantes fatores de produção, baratos, e ampla tecnologia
autônoma – seria um desastre.
Neste sentido, a crítica "europeísta" –
ecoada pelo eixo Havana+Caracas+La Paz – apontaria para uma forte oposição entre
segurança energética e segurança alimentar.
As criticas apontariam para
dois elementos centrais desestruturantes do mercado de alimentos a partir da
produção de biomassa para uso energético:
i. "Queimar comestíveis para
produzir combustíveis" é a máxima dos críticos europeus, apontando à alta – real
– dos preços dos alimentos como uma conseqüência da opção energética;
ii.
A ampliação de cultivos tais como milho, cana-de-açúcar ou soja, para a produção
de energia geraria uma nova forma de poluição ( águas, terras, agrotóxicos,
etc.. ) anulando qualquer ganho do ponto de vista de energia
limpa.
Contudo, a própria conjuntura de crise do mercado de grãos
desmente os argumentos "europeístas". A diminuição real das áreas de cultivos de
alimentos foi, durante bom tempo, um política tipicamente européia, visando
viabilizar os altíssimos subsídios pagos à agricultura europeía ( em especial na
para o açúcar de beterraba, carnes e laticínios ). Por outro lado, a troca de
campos de alimentos por cultivos exclusivamente voltados para a produção de
biocombustiveis é tipicamente americana , onde a produção de biomassa estava
centrada na produção de etanol de milho. No caso de outros cultivos –
cana-de-açúcar, mamona, com seus biomas específicos e já claramente
diferenciados dos cultivos alimentares – não haveria qualquer "concorrência
predatória" entre comestíveis e combustíveis.
Da mesma forma, a expansão
de tais cultivos – cana, mamona – se daria sobre áreas de pousio – "bush fellow"
– não atingindo as grandes áreas florestais – o "forest fellow". Somar-se-ia a
isso a incorporação de vastos setores do proletariado rural e sub-proletariado,
bem como as franjas demográficas da expansão da pequena produção camponesa ( no
sentido que Chayanov dá ao termo )aos mecanismos de mercado.
Assim, a
expansão da "energia verde" seria capaz de gerar emprego e renda no meio rural
em países como Brasil, da América Central, da África e da Ásia das
Monções.
A crise atual na produção de alimentos, contudo, acentuou, no
atual momento, as disfunções do mercado mundial. Assim, em outubro de 2007 a
Ucrânia – o maior celeiro da Europa - anunciou a sua retirada do mercado
fornecedor de alimentos, no mesmo momento em que as safras na Austrália e na
Argentina ainda não podiam ser avaliadas para 2008.
União Européia e
os subsídios:
Tais acontecimentos fizeram soar o sinal de alerta na União
Européia. A Itália e a Espanha, com suas grandes populações e seu clima seco,
foram os primeiros países da UE a sentir a crise. Assim, os preços da farinha de
trigo – e portanto da "pasta" – sofreram aumentos substantivos, gerando
mal-estar em grandes cidades italianas.
A crise provocou, ainda, um
imediato "racha" na principal política da União Européia: a política agrícola
comunitária ou PAC. Espanha e Itália, com apoio dos demais paises mediterrâneos,
exigiram respostas imediatas para a crise, que foram definidas pela Comissão
Européia em dois sentidos:
i. o abandono imediato da política de pousio
forçado – "bush fellow" – com a colocação em cultivo de amplos campos deixados
regularmente sem cultivos – cerca de 3,8 milhões de hectares -, atingindo cerca
de 10% da área agrícola da U.E e que poderiam resultar em um aumento de 10
milhões de toneladas adicionais;
ii. autorização de cultivo em amplas
reservas ambientais, com vasto impacto sobre a política de preservação ambiental
no âmbito da U.E.;
iii. cessação dos subsídios à produção de açúcar de
beterraba, retirando do mercado cerca de 2,2 milhões de toneladas de açúcar (
das cinco milhões de toneladas produzidas ). Da mesma forma, a União decidiu
pagar um subsídio de 237,5 euros por tonelada que for convertida em produção de
cereais ou grãos.
Tal conjunto de medidas, contudo, não alteraram
substancialmente, a crise. Tal constatação forçou a tomada de decisões quase
revolucionários no âmbito da PAC. Fez-se, então, a suspensão de dois impostos de
importação sobre grãos e cereais, atingindo inicialmente o milho, trigo e
sorgo.
Os países centrais na formulação da PAC – França, Holanda,
Dinamarca – alertaram, com azedume, para o precedente aberto em 2007 com a
suspensão dos impostos de importação. Tais impostos, ao lado da política de
subsídios e das barreiras fito-sanitárias, seriam, exatamente, o conteúdo
central da PAC. A quebra de um de seus pilares – os impostos – abriria uma
imensa brecha sistêmica na PAC ( no exato momento em que esta está sob fogo
cerrado como uma das causas centrais do fracasso da Rodada de Doha da OMC ). O
governo francês advertiu, então, sobre a imensa dificuldade em restabelecer o
sistema protetor ao final do período crítico. Uma virtual baixa dos preços para
além de 2008 – uma abordagem hipoteticamente otimista – levaria a uma situação
de enorme crise de toda a agricultura européia.
Ora, a possibilidade de
uma baixa geral dos preços agrícolas em 2008 é apenas hipotética. Tal cenário
teria que contar com duas contra-tendências, a saber:
i. a presença da
China Popular de da índia enquanto compradores no mercado mundial deveria
diminuir;
ii. a presença dos Estados Unidos no mercado de biocombustíveis
seria moderada.
Há uma saída?
O aumento dos preços e da
superfície plantada aponta para a possibilidade de uma colheita recorde em 2008:
seriam cerca de 640 milhões de toneladas em 225 milhões de hectares e um
rendimento de cerca de 2.8 toneladas por hectar – caso o fator clima não aja de
forma negativa mais uma vez. Na verdade, não há razões suficientes para
acreditar que tais indicadores serão reais e capazes de mudar tendencialmente o
comportamento atual do mercado mundial de alimentos, principalmente em razão das
compras chinesas e indianas. O curso dos acontecimentos, na realidade, aponta
para a manutenção das tendências atuais e, mesmo, sua acentuação.
Mesmo a
análise de que os fatores desencadeantes da crise alimentar em 2006/7 são
conjunturais merece melhor atenção. Considerados aperiódicos – climáticos – os
fatores desencadeantes poderiam não incidir sobre as colheitas futuras. Contudo,
podemos pensar que a forte aperiodicidade climática seria bem mais um fenômeno
estrutural do que um fator aleatorio. Na verdade o fator climático assumiria um
forte caráter estrutural recorrente e agravante enquanto parte direta do
fenômeno do aquecimento global. Este, mostrar-se-ia muito mais intenso nas
regiões temperadas boreal e austral – grandes celeriros cerealíferos –
anunciando uma nova geografia agrária mundial.
A observação cuidadosa do
mercado agrícola mundial nos próximos anos – mesmo num horizonte curto de cinco
anos – deverá apontar , com mais exatidão, as tendências futuras.
De
qualquer forma, a segurança alimentar deverá ser um tema central nas relações
internacionais doravante. Particularmente a vitória do Partido Democrata
americano nas eleições de 2008 ( com ou sem Al Gore ) deverá levar a preocupação
ambiental ao nível de política de segurança do Estado, em possível substituição
à "Guerra contra o Terrorismo" dos Republicanos de George Bush.
O Brasil,
como grande centro produtor e consumidor ( trigo ), membro-líder do G-20 e no
Grupo de Cairns deverá desempenhar um papel central no debate em torno da
estruturação de um mercado (livre) de alimentos em âmbito mundial. Isso ao lado
do estabelecimento de um mercado regulado de comodities bioenergéticas. Para tal
estruturação as opções européias sobre o futuro da PAC, bem como o apoio de uma
nova administração americana e a superação do imobilismo do Japão ( as grandes
potências subsidiadors do setor agrícola mundial ) deverão ceder no âmbito de
uma desejada retomada da Rodada de Doha.
* Francisco Carlos Teixeira
é professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ).
(Envolverde/Agência Carta Maior)