Os Estados Unidos assistirão passivamente a construção de um projeto que abre caminho a uma influência concreta da China na América Latina?
Passou desapercebida em quase todo o subcontinente a visita do chanceler chinês Wang Yi a Quito, na primeira semana de outubro. Entre encontros com o chanceler Ricardo Patiño e com o presidente Rafael Correa, além de ministros e representantes de grupos empresariais, Yi verificou os avanços de mais de 200 acordos assinados entre os dois países nos últimos anos, e assinou alguns novos, fortalecendo ainda mais a relação bilateral.
Também passou desapercebida uma frase do chanceler, e são estas palavras as que devem ser guardadas na memória, porque talvez o futuro da geopolítica do continente pode estar atrelado à possibilidade delas serem certas. Disse Wang Yi: “a China pretende ajudar o Equador a deixar de ser uma economia exportadora de matéria-prima e avançar em um projeto de industrialização voltado à produção de tecnologia de ponta”.
China e Equador vêm reforçando sua aliança há tempos, e quem afirmou o caráter estratégico da mesma foi o próprio presidente chinês Xi Jinping, em janeiro de 2015, em encontro com o presidente Correa em Pequim. Porém, o compromisso de agora é muito mais forte, pois estamos falando de um projeto que, se concretizado tal qual a descrição do chanceler Yi, faria do Equador o primeiro país latino-americano a ter suas exportações lideradas por produtos com valor agregado.
Durante a recente conferência “A Nova Fase da China: Implicações para a América Latina”, realizada há poucos dias em Santiago do Chile, as palavras do chanceler chinês e as possibilidades que elas inspiram estiveram entre os temas mais debatidos. Quem colocou a declaração em pauta foi o acadêmico uruguaio Ignacio Bartesagui, especialista em relações internacionais da Universidade Católica do Uruguai e coordenador do Observatório América Latina Ásia Pacífico. “O processo já está em andamento, as empresas chinesas já estão trabalhando em alguns investimentos inovadores no Equador, e a expectativa é que avance mais rápido com os novos acordos”, comentou Bartesagui, lembrando que as empresas chinesas já trabalham na construção de seis hidroelétricas no Equador, num esforço para transformar a matriz energética do país, e fazer como que 90% da eletricidade seja produzida através da água. “Claro que os resultados só serão percebidos a médio ou longo prazo, e então teríamos uma situação que poderia efetivamente transformar o panorama geopolítico da América Latina”, analisou o professor, se referindo à capacidade da China de exercer influência política na região.
A iniciativa chinesa em financiar a industrialização do Equador não tem sentido somente sob a ótica do interesse em estabelecer influência geopolítica, mas também está sintonizado com o tipo de economia que o novo plano quinquenal chinês pretende imprimir, transformando uma economia até então baseada na produção de manufaturas a uma voltada para o consumo e que visa a consolidação de uma classe média – ver artigo “Por que a China torna mais urgente o desafio da industrialização”: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Por-que-a-China-torna-mais-urgente-o-desafio-da-industrializacao/7/37044.
O acadêmico uruguaio aprofundou suas considerações sobre o avanço da potência asiática no continente: “atualmente, a América Latina convive com investimentos chineses importantes em quase todos os seus países, que vão desde a modernização da infraestrutura ferroviária na Argentina até a construção de um novo canal interoceânico na Nicarágua. Também havia conversações com Argentina, Brasil e Venezuela para acordos em favor de projetos de incentivo à indústria e à modernização da mesma, semelhantes aos oferecidos ao Equador. Porém, as mudanças e as tensões políticas nesses três países colocaram um freio nas intenções chinesas”.
Convivência com conflitos internos
Nos casos de Brasil e Argentina, os problemas começam com a prioridade que os novos governos dos dois países dão à relação com os Estados Unidos – e no caso venezuelano, o temor é que a crise política termine com a oposição retomando o poder e se adotando a mesma postura.
“Tenhamos claro que a China não é tão exigente ideologicamente, ou seja, não vai fazer ou deixar de fazer negócios com um país dependendo da corrente política que está no poder. O que ela quer é que os eventuais parceiros e seus atos não sejam contaminados pelos interesses de terceiros”, comentou Bartesagui.
Nesse sentido, surge outro caso a ser analisado: o Uruguai. O economista Gustavo Bittencourt, da Universidade da República do Uruguai, foi quem falou durante a conferência “Nova Fase da China” sobre os acordos de comércio e cooperação que estão prestes a serem assinados entre os dois países, e que incluem um intercâmbio entre empresas chinesas e pequenas empresas cisplatinas de tecnologia. “No começo será apenas troca de informações, com excursões de empresários uruguaios ao nordeste da China. E nem poderia ser diferente, já que a diferença em termos de avanço tecnológico é claramente gigantesca, mas o importante é verificar que existe vontade política transversal no Uruguai para se investir nessa parceria, e talvez em algo semelhante ao que a China ofereceu ao Equador”, opinou Bittencourt.
Logo, podemos imaginar que nenhum setor político uruguaio dispensaria uma oferta que visasse financiar a diversificação e a modernização da indústria a longo prazo. Porém, essa situação se dá porque a política no país não enfrenta um clima tão beligerante quanto o venezuelano, ou uma institucionalidade destroçada como no Brasil.
Voltando ao Equador
Assim sendo, o desafio equatoriano para se consolidar como o primeiro grande modelo de parceria com a China no continente será superar os obstáculos políticos que terá pelo caminho.
O primeiro deles será a eleição presidencial de fevereiro de 2017. Embora o governismo seja favorito para vencer o pleito, precisará lidar com o desafio de vencer pela primeira vez sem Rafael Correa como protagonista – o candidato que lutará por manter vivo o projeto de governo progressista será Lenín Moreno, que foi vice-presidente durante o primeiro mandato do correísmo –, além de saber evitar que a onda neoliberal, que vem se espalhando em todo o continente, também invada o país.
Será interessante observar se os projetos com a China e suas perspectivas serão parte do debate eleitoral, se os governistas se colocarão como únicos capazes de realizá-los e se os candidatos opositores se apresentarão como aliados ou detratores dos mesmos.
Também será o caso de verificar se os Estados Unidos assistirão passivamente a construção de um projeto que abre caminho a uma influência concreta da China na América Latina, ou se intervirá de alguma forma, seja apoiando eleitoralmente os opositores aos projetos, seja patrocinando algum outro tipo de iniciativa desestabilizadora, como as que tiveram sucesso em Honduras, no Paraguai e no Brasil, para ficar nos exemplos mais recentes. E claro, saber se a esquerda equatoriana está preparada para combater os ataques que vierem.
O sucesso de Correa e seus aliados em fazer essa aliança entre China e Equador funcionar poderia despertar uma nova era de hegemonia compartilhada na América Latina. A dúvida agora é saber se é essa situação pode se concretizar.