O Papa Francisco fez um discurso anticapitalista ontem na Bolívia, referindo-se ao sistema econômico como “ditadura sutil”.
Foi no Segundo Encontro Mundial de Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra.
“A distribuição justa dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera filantropia. É um dever moral”, afirmou.
Também disse que a concentração da mídia é instrumento de “colonialismo ideológico”, pois “a concentração monopólica dos meios de comunicação social pretende impor pautas alienantes de consumo e certa uniformidade cultural”.
O papa pregou “mudança de estruturas” e disse que mesmo entre a elite econômica que se beneficia do sistema “muitos esperam uma mudança que os libere dessa tristeza individualista que os escraviza”.
Para João Pedro Stédile, líder do Movimento dos Sem Terra, que estava presente, o discurso do papa foi “irretocável”, ao atacar a busca do lucro sem considerações sociais e ecológicas como um dos grandes problemas da atualidade.
O colunismo brasileiro preferiu focar no presente inusitado que o presidente da Bolívia, Evo Morales, deu a Francisco: um Cristo crucificado em foice e martelo.
Na Folha, Igor Gielow chamou de “aberração” sem explicar a origem do presente.
É a reprodução de uma escultura do sacerdote espanhol Luis Espinal, que tinha ligação com movimentos sociais bolivianos e foi assassinado por paramilitares em 1980.
Fez parte da programação do papa em solo boliviano uma homenagem a Espinal, que era jesuíta como o atual pontífice.
A “aberração” a que se referiu o colunista da Folha demonstra o quanto ele desconhece a História dos jesuítas no período colonial.
Na introdução de A República Guarani, de Clovis Lugon, Antônio Cechin descreve:
Na América Latina, entre o século 16 e o século 18, a expansão da Companhia de Jesus (jesuítas), exerceu um papel de contrapartida humanista e espiritual da conquista militar e da dominação política. A metodologia de ação dos padres consistiu em reagrupar os índios em cidades-paróquias autônomas, propícias ao ensino e à evangelização. Surgiram assim 33 “Reduções” da Província Jesuíta do Paraguai, edificadas e habitadas pelos Guarani. Graças às disposições metafísicas desses Índios, a suas afinidades espirituais e culturais com os Jesuítas, à ação ao mesmo tempo prudente e audaciosa desses últimos, aquilo que se chamou “República Comunista Cristã dos Guarani” iria ser, durante 150 anos (1610 a 1768), o teatro de uma experiência humana e religiosa única, portanto sem similar na história, permitindo aos índios aceder ao estatuto de cidadãos livres, em tudo semelhantes aos espanhóis e, em muitos aspectos, culturalmente superiores a esses.
No bairro que fica bem atrás do Palácio Miraflores, em Caracas, o 23 de Enero, um dos bastiões do chavismo, eu vi pessoalmente numa parede a imagem de Che Guevara retratado como Cristo, de metralhadora na mão.
Hugo Chávez era ao mesmo tempo socialista e católico fervoroso. Bebia na fonte de Enrique Dussel, o filósofo argentino radicado no México, autor dentre muitos outros de Filosofia da Libertação, Teologia da Libertação e Ética da Libertação, nascidos de reflexão sobre a história da Igreja Católica durante a colonização das Américas.
Nosso ponto é que o espanhol Luis Espinal não é maluco por ter juntado numa escultura Cristo, a foice e o martelo que, acima de tudo, são símbolos de camponeses e operários.
Independentemente de você concordar ou não com isso, existe uma longa tradição de cristianismo “de esquerda” ou de socialismo “cristão” na América Latina.
Obviamente, o jornalismo “ligeiro” desconhece isso.
O governo boliviano desmentiu oficialmente boatos disseminados pelas redes sociais segundo os quais o Papa teria manifestado desconforto ao receber o presente.
Francisco, segundo difundido por parte da mídia boliviana, teria dito “não se faz isso” ao receber o presente, quando o áudio deixa claro que ele afirma “não sabia disso” ao ouvir a explicação de Evo Morales sobre a escultura.
Em outras palavras, a direita midiática boliviana pirou com o progressismo de Francisco e, por extensão, a brasileira.