O escritor e jornalista John Carlin inicia uma série em que explora o fenômeno Podemos
Encontro do Podemos em Valência, em 25 de janeiro. / Mónica Torres
Domingo, 12h, horário de missa. Faltam quatro dias para o Natal e o recinto está cheio; o ambiente, festivo; o entusiasmo pela iminente chegada do eleito, em alta. Gente de todas as idades, dos dois anos aos oitenta, a maioria de pé, com os olhos fixos em uma porta ao fundo da sala por onde sairá o homem chamado a apontar o caminho. Passam os minutos – 12h05, 12h10, 12h15 – e ainda não aparece. Mas a multidão não desanima. Deleita-se com a sensação de estar participando de um momento histórico e entoa em coro uma palavra de ordem atrás de outra, todos cheios de esperança, embora de origem diversa.
“Sim, podemos!”, eco do “Yes, we can” da campanha eleitoral do presidente dos Estados Unidos; “O povo, unido, jamais será vencido!”, importada da América Latina, das lutas contra o imperialismo ianque; “A por ellos, ¡oé!”, da liturgia das torcidas de futebol; e “Paaablooo! Paaablooo!”, ao ritmo que marcam os fiéis do vizinho Camp Nou -“Meeessiii! Meeessiii!”- quando aclamam seu ídolo..
“Não confio em políticos que fazem promessas”, disse o líder do Podemos
O lugar, o Palau Municipal d'Esports do Vall d'Hebron, bairro operário de Barcelona; a data, 21 de dezembro do ano recém-concluído.
Falta quase um ano para as eleições gerais espanholas mas já cheira a vitória aqui em Vall d'Hebron. É o primeiro grande ato do Podemos, o partido político líder nas pesquisas nacionais, em terras catalãs. Cerca de 2.500 pessoas dentro do pavilhão e outras mil fora aclamam Pablo Iglesias, professor de Ciências Políticas de 36 anos que, apenas um ano antes, com outros quatro catedráticos da Universidade Complutense de Madri, decidiu fundar Podemos. Agora é seu secretário-geral, primus inter pares e face pública da nova legenda, o líder da primavera espanhola que hoje agita a velha Europa.
Veste camisa branca, jeans azuis, sapatos esportivos pretos com listras brancas, marcando a diferença com a burguesia engravatada. Podemos representa mudança, futuro e modernidade, mas a cabeleira que ostenta dá a ele um ar de roqueiro dos anos setenta.
A simbologia é um tanto confusa, assim como as palavras de ordem e a fala do próprio Iglesias. É catedrático mas o prato principal de seu discurso é um conto para crianças, uma fábula sobre gatos e ratos de fácil digestão para todas as idades: os gatos são os maus, os representantes da casta dominante, e os ratos são o povo, os bons. Diz – em seu tom urgente, disparando palavras como balas – que nem ele, nem nenhum dos fundadores do Podemos são o Podemos: “O Podemos são vocês!”, para logo acrescentar: “Há centenas de milhares que dizem ‘o do cabelo sou eu”. Declara: “Eu sou de esquerda”, mas imediatamente considera: “O poder não teme a esquerda, mas as pessoas”. E afirma: “Não vim à Catalunha prometer nada a ninguém. Não confio em políticos que fazem promessas”.
O público no pavilhão de Vall d'Hebron não para de aplaudir, mas veremos se, na hora de votar, a maioria dos espanhóis estará disposta a confiar em um partido político que não faz promessas. Ficam muitas perguntas por responder. O que o Podemos fez para convencer tanta gente em tão pouco tempo? Como são seus dirigentes, seus militantes, os novos convertidos à causa? E, acima de tudo, o que quer o Podemos?
Na sede do partido, na praça da Espanha em Madrid, reina o ambiente escritório-garagem de uma start-up californiana. Uns dez jovens de jeans e camiseta trabalham intensamente em uma missão ambiciosa: conquistar os corações e as mentes do eleitorado espanhol. Suas armas, computadores portáteis e telefones celulares, as ferramentas digitais com as que o Podemos conseguiu amplificar a mensagem do partido com tão frenética efetividade.
Pablo Iglesias, candidato à presidência por Podemos em Barcelona, em dezembro. / Consuelo Bautista
Aqui não agrada o conceito de chefe, mas Miguel Ardanuy, de 25 anos, é o cérebro do setor do Podemos que em outros tempos seria chamado de “propaganda”, mas que eles chamam de “participação”.
“Sem as redes sociais não estaríamos onde estamos hoje nas pesquisas”, conta Ardanuy, que estudou Ciências Políticas na Complutense, fala como se tivesse pressa como Iglesias e usa dois longos dreadlocks. “Em outra época se transmitia uma mensagem indo de porta em porta”, diz. “Hoje tudo ocorre imediatamente”.
Graças à Internet os simpatizantes do Podemos, 300.000 deles inscritos no site Plaza Podemos, são vizinhos. Por meio dessa plataforma, do Twitter e de um aplicativo para celulares, chamado Appgree, foram criados fóruns de debate que contribuem com ideias para o processo de decisões do partido e que, ao mesmo tempo, funcionam como um serviço de dados, oferecendo a matéria prima com a qual a liderança afina as mensagens que têm maior ressonância na população.
O Podemos representa mudança, futuro e modernidade, mas a cabeleira que Iglesias ostenta dá a ele um ar de roqueiro dos anos setenta
Assim o Podemos foi destilando as chaves de sua “narrativa” de vendas e daí também as frases feitas que Ardanuy e seus companheiros de escritório-militantes salpicam na conversação: “Nós representamos a esperança”; “o PP e o PSOE estão engessados”; “adeus à casta corrupta que nos governa” (casta é a palavra mais utilizada no léxico do Podemos), e a frase que repetem vez ou outra, “não somos nem de esquerda, nem de direita”.
Esta última é, ao mesmo tempo, a palavra de ordem que mais polêmica gera e a que mais alcance tem. Causa indignação à esquerda tradicional, da qual se distanciaram, mas ao mesmo tempo, apelando ao que o Podemos chama de “bom senso”, afasta medos e desperta entusiasmo em um amplo setor da população. É a fórmula para construir o que Pablo Iglesias chama “uma marca vencedora”.
Nem todos os rebeldes do Podemos são jovens. Jesús Montero, de 51 anos, é o recém-eleito secretário municipal do partido em Madri. Trabalha na Complutense (todos os caminhos do Podemos se originam aqui) em um alto cargo de administração.
“Sem as redes sociais não estaríamos onde estamos hoje nas pesquisas”, diz o encarregado da participação
De físico esguio, usa uma ligeira barba branca e uma pequena boina de couro, que lhe proporcionam um aspecto meio Quixote, meio Lenin. Mas, diferentemente de Iglesias e Ardanuy, fala de maneira medida e serena, certamente mais pausado que quando iniciou sua trajetória política aos 14 anos como organizador de uma greve no colégio. Influenciado por “padres politizados”, a tal ponto que durante algum tempo pensou que ele mesmo seria padre, incorporou-se à Juventude Comunista e foi eleito secretário-geral aos 20 anos. Desde então passou a ser um dos fundadores de Esquerda Unida em 1986, partido que deixou em 1997 depois de uma crise interna, mas no ano seguinte foi com entusiasmo a Chiapas, no México, observar de perto a revolução zapatista do subcomandante Marcos. “Aí surgiu a ideia de que outro mundo é possível, contra a globalização e a revolução conservadora de Reagan e Thatcher”, diz. Mas o zapatismo tampouco prosperou e a esquerda espanhola “naufragou por falta de audácia”. Em 2003 abandonou toda militância organizada.
Onze anos depois, a vida lhe ofereceu uma segunda oportunidade. “Recuperei a esperança. Devemos democratizar o poder e remoralizar a vida pública, tirar o discurso dos bares para as ruas, restaurar o vínculo entre a população e o governo, que tratou as pessoas como se fossem menores de idade”.
A frase que repetem vez ou outra é “não somos nem de esquerda, nem de direita”
Para restaurar o vínculo é preciso acabar com o paternalismo dos partidos tradicionais, diz. Em outro momento de sua vida possivelmente teria dito que era preciso acabar com o capitalismo também. Não mais.
“Nem todos os empresários são iguais”, afirma. “Há duas culturas empresariais. Uma é casta, outra quer contribuir para o bem-estar social, como a família Botín no Banco Santander”. Está falando sério? “Sim! Estou convencido de que há empresários de boa vontade. Há setores do capitalismo empreendedor que sabem que necessitam de um país com menos desigualdade social, que entendem que assim expandem seu mercado. Certamente Ana Botín [presidenta do Banco Santander] se encontraria com Pablo Iglesias e falariam destas coisas”.
Menos moderada foi a mensagem populista – praticamente a única mensagem – lançada durante um ato do Podemos presidido por Montero horas mais tarde em Lavapiés, bairro operário no centro de Madri. “Vamos tirar a máfia econômica e política, vamos tirar os pilantras, vamos recuperar Madri para os cidadãos”, “vamos acabar com o austericídio”, e “vamos acabar com a velha política e vamos criar uma democracia participativa” foram as palavras de ordem mais entoadas.
“Há duas culturas empresariais. Uma é casta, outra quer contribuir para bem-estar social, como a família Botín, do Banco Santander”, diz Jesús Montero, eleito secretário municipal do partido em Madri
A democracia participativa é mais possível hoje que nunca graças à revolução digital, diz Montero na sua vez de falar, e anuncia que o Podemos vai lançar uma campanha para que todos tenham acesso à Internet e possam, assim, ter um impacto direto sobre as políticas do Podemos. Como propôs Pablo Iglesias, “cada vez que terei de tomar uma decisão complexa e difícil no Podemos, proporemos que as pessoas votem”.
A ideia é bonita, mas surgem um par de dúvidas. Primeiro, partem da ideia de que as grandes maiorias compartilham ou podem chegar a compartilhar a paixão pela política dos cientistas políticos e sociólogos que criaram o Podemos, quando talvez a realidade seja que na Espanha, como em todos os lados, a política é um esporte minoritário. Segundo, opera-se de acordo com a premissa, alimentada hoje pelo fenômeno de referendos virtuais permanentes oferecidos pelas redes sociais, de que a opinião do povo deve ser escutada. Mas, como se viu na Alemanha em sua época, a sabedoria das massas é um conceito questionável, muitas vezes baseado na ignorância ou na histeria coletiva. Em temas delicados e complexos de economia, ou de política estrangeira, as ideias trazidas pela massa tuiteira para as grandes questões do dia podem ser de valor um pouco maior do que a dos passageiros ao piloto quando um avião atravessa turbulências.
A sabedoria das massas é um conceito questionável, muitas vezes apoiado na ignorância ou na histeria coletiva
Íñigo Errejón é alguém que conversa sobre política com a desenvoltura e paixão de um fanático torcedor do Real Madrid. Assinalado por alguns como o verdadeiro gênio do Podemos, tem o aspecto de um rapaz de 16 anos, ainda que tenha 31. Como os outros cinco fundadores do Podemos, Errejón é professor na Universidade Complutense.
Seus óculos lhe dão um ar de Harry Potter, motivação adicional para ser questionado pelo truque mágico que transformou militantes de esquerda como ele em políticos pragmáticos com boa capacidade de adaptação.
“A maior parte das pessoas não se vê representada hoje pelos partidos políticos dominantes, e nem pela velha esquerda”, responde. “Esquerda e direita são metáforas, nada além de nomes, e não são eternos. Nós representamos o senso comum contido em uma identidade transversal e popular, contra a oligarquia”.
Errejón emana uma enorme confiança em si mesmo unida a uma quase esgotante hiperatividade mental. Mas essa palavra, oligarquia, destoa um pouco em alguém que pretende distanciar-se dos tópicos da velha esquerda, como também destoa a associação do Podemos com a Venezuela de Hugo Chávez, segundo Pablo Iglesias, “uma das democracias mais saudáveis do mundo”.
Como a admiração pelo chavismo venezuelano, que após 15 anos de governo levou o país latino-americano à beira da ruína, encaixa com o ecumenismo professado pelo Podemos? Errejón não responde – Vene... o que? – mas quase. Desqualifica qualquer noção de que o Podemos pense em imitar o modelo da Venezuela. “A Espanha não é um país como a Venezuela, com petróleo. É outra coisa. O Estado funciona, o PIB é muito mais alto, os pobres não vivem sem luz na montanha”.
O secretário de Política de Podemos, Íñigo Errejón, em novembro, em Madri. / Hugo Ortuño (EFE)
Mas, então, qual é o programa? É a pergunta feita por todos os setores opositores ao Podemos, mas Errejón insiste que o partido é um recém-nascido e é prematuro exigir “amanhã mesmo” muitos detalhes a respeito.
O que o Podemos tem é o que um partido que pretende ganhar eleições mais precisa: uma narrativa identificadora ao alcance de todas. Para o imaginário coletivo, apresentam-se como os cavaleiros da Távola Redonda que, junto com o povo excitado, pretendem atacar, desocupar e ocupar o castelo negro onde a desapiedada casta se entrincheira. Errejón não discorda da metáfora, mas diz que “ainda falta muito para chegar às muralhas”.
No caso de chegarem, Errejón não menospreza a enormidade do desafio que o Podemos enfrentaria. Sonha, mas com os olhos abertos. “Se ganharmos as eleições, aí o partido começará verdadeiramente. Estaremos competindo na Liga dos Campeões e a mudança revolucionária que desejamos não vai acontecer sem que a Europa, ou pelo menos a parte sul da Europa, esteja conosco. Isso não é apologia da utopia. Vamos empurrar um pouco, mas o quanto dependerá também dos outros na Europa”.
“Se desaparecermos amanhã, teremos dado uma boa lição aos poderosos. Terão sentido medo”, afirma Íñigo Errejón
Ou seja, em uma Europa na qual a soberania nacional é limitada, em um mundo mais economicamente interdependente do que nunca, um Governo como o espanhol pouco pode fazer sozinho para, por exemplo, aumentar o gasto público ou reduzir o desemprego. Como disse pouco tempo atrás o presidente em fim de mandato do Uruguai e ídolo do Podemos, José Mujica, em uma entrevista para a BBC: “O problema é a realidade porque não fazemos o que queremos, fazemos o que podemos dentro da margem da realidade”.
O que aconteceria se o Podemos desaparecesse do mapa tão rapidamente como surgiu? Terá servido para alguma coisa?
Errejón é esperto e sabe disso mas possui humildade suficiente para não descartar essa possibilidade. “Se desaparecermos amanhã, teremos dado uma boa lição nos poderosos. Terão sentido medo. Somente com sua existência o Podemos demonstrou o desejo das pessoas na regeneração democrática, mostrou como nunca a necessidade de que os governantes prestem contas”.