Alimentação: Carências da abundância na América do Sul
Montevidéu, 17/10/2007 – A fome continua pelas pradarias sul-americanas, apenas contida por redes civis e planos oficiais de atenção com os indigentes, com maior ou menor eficácia. A arraigada desigualdade segue alimentando refeitórios públicos apesar da bonança econômica. Muitas vezes, o bom desempenho da economia afeta a população mais vulnerável, como agora, com os altos preços internacionais de carnes, lácteos e grãos, que se transferem para o consumo interno.
Um exemplo é o Brasil, maior exportador mundial de carne
e um dos principais produtores de alimentos, que não consegue saciar a fome de
14 milhões de seus 188 milhões de habitantes, e com mais de 72 milhões sem
acesso regular a alimentos, segundo um estudo de 2006 do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). A fome hoje não ocorre por falta de alimento,
mas pela escassa renda para comprá-los na quantidade e qualidade adequadas. A
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estima
que o Brasil dispõe de alimentos para fornecer até 2.960 quilocalorias diárias
por pessoas, quando são recomendadas 1.900 quilocalorias.
O mesmo ocorre
na Argentina, celeiro do mundo, e no Uruguai, que exporta grande parte da carne
e lácteos e quase todo o arroz que produz, enquanto os preços internos desses
alimentos não são para o bolso dos trabalhadores. O principal problema que
enfrentam os dois países é a volta da inflação. Por outro lado, "a pobreza e a
indigência viram cultura, e resolver esses problemas demora anos e exige
políticas especificas", disse à IPS Luis Àlvarez, assessor do Instituto Nacional
de Alimentação (Inda) do Uruguai. 'O que temos de atacar é a transformação da
cultura que nos gerou a crise" e a desigualdade estrutural.
Para
enfrentar a brecha entre ricos e pobres, tradicional no Brasil, na Venezuela e
em outros países, mas catapultada com o colapso argentino do final de 2001 e
suas sacudidas no Uruguai, os governos começaram a implementar planos de
urgência contra a indigência e a fome. Dessa forma nasceram – alguns em meio ao
caos – os planos Fome Zero, no Brasil; Nacional de Segurança Alimentar, na
Argentina; de Emergência, no Uruguai, e Alimentares Nacionais, no Chile, bem
como as Casas de Alimentação na Venezuela.
Emergência
O Fome Zero
lançado pelo governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2001 "busca a
inclusão social e a conquista da cidadania por parte da população mais
vulnerável", segundo Mauro de Miranda Siqueiro, técnico da iniciativa.
Coordena-se a ação dos ministérios na implementação de políticas, programas e
ações ligadas a quatro eixos: acesso à alimentação, geração de renda,
fortalecimento da agricultura familiar, e articulação, mobilização e controle
social. Para siqueiro, o quarto eixo distingue o Fome Zero, pois não só garante
o acesso à alimentação como também "a expansão da produção e o consumo de
alimentos, a geração de renda e trabalho, melhoria da escolaridade, saúde,
abastecimento de água, tudo isto sob a ótica dos direitos da cidadania'. O plano
recolhe iniciativas nacionais, estaduais, municipais e da sociedade civil.
Os Restaurantes Populares são uma dessas variantes no Estado do Rio de
Janeiro, onde são fornecidas refeições ao preço de R$ 1, principalmente para
trabalhadores que fazem sua primeira refeição do dia fora de casa. Célia de
Souza, de 53 anos, não se queixa. Trabalhando a vida toda como empregada
doméstica, ela é cliente de um destes restaurantes. "A comida é boa e a um preço
que o pobre pode pagar", afirmou à IPS. Os netos de Célia se alimentam
diariamente nas escolas do município carioca, também parte do Fome
Zero.
Na Argentina, que no final de 2001 estava em uma crise que levou à
pobreza 57% de seus 37 milhões de habitantes, viu-se impelida a unificar seus
planos alimentares, centralizando no Ministério de Desenvolvimento Social e
articulando com as províncias, municípios e organizações civis. Assim foi criado
o Plano Nacional de Segurança Alimentar, depois chamado de "A fome mais
urgente", que contempla a assistência direta através de restaurantes públicos,
escolas, locais atendidos por organizações não-governamentais, hortas familiares
e comunitárias.
Privilegia-se os menores de 14 anos, grávidas, idosos,
desnutridos e deficientes, explicaram técnicos da área. Também se busca promover
a produção de alimentos, mediante o fornecimento de ferramentas, sementes e
máquinas. Em poucos casos há entrega de alimentos e na maioria das vezes se
transfere recursos para adquiri-los, incluindo mecanismos de controle sanitário
e nutricional aos beneficiados. Agora, apela-se ao uso de cartões magnéticos
para que os destinatários da ajuda serem realmente os compradores de seus
alimentos.
Com os indígenas, prefere-se continuar fornecendo alimentos,
apesar de persistirem focos de fome extrema em lugares como o nordeste
argentino. Embora exista um esforço do governo, os alimentos que chegam para
cada pessoa muitas vezes são menos do que o necessário, dizem ativistas. Porém,
houve avanço, se considerarmos que chegou-se a distribuir cerca de 150 mil
cestas de alimentos em Buenos Aires e agora são distribuídas entre 30 mil e 40
mil, diz uma assistente social do governo distrital. Mônica Carranza, fundadora
de um famoso restaurante público de Buenos Aires chamado "Carasuscias", disse à
IPS de sua conformidade com a ajuda governamental.
Quando em 2001
"eclodiu a crise fazíamos turno de refeições com grupos de 250 pessoas e
tínhamos de seguir madrugada adentro sem parar, eram milhares, nosso espaço não
era suficiente e a muitos entregávamos o alimento para comerem na praça", lembra
Carranza. As coisas melhoraram. "Não tenho compromisso político com ninguém, mas
esta gente é a que mais me ajudou, eu os chamo se tem pouca quantidade de algum
alimento e me dizem para ficar tranqüila que enviarão, e enviam", disse. A
pobreza atinge 26,9% dos argentinos e a indigência chega a 8,7%.
O
Uruguai tampouco escapou da fome. O Plano de Emergência, agora transformado em
Plano de Igualdade, e uma azeitada rede de 715 organizações civis permitiram
atender bocas famélicas. O encarregado de coordenar a missão é ao Inda, bem como
de executar a política alimentar, a partir de espaços etários como o
materno-infantil, adolescentes, adultos, idosos e deficientes. "Conseguiu-se
sanear quanto ao volume de assistência, conseguiu-se economias que permitiram
atuar sobre a qualidade dos alimentos".
Assim, se passou de entregar
cestas com óleo de soja para um de girassol ou de melhor qualidade ainda, e de
arroz de grão quebrado para grão inteiro", explicou Alvarez. Também se ataca "a
anemia das crianças acrescentando trigo fortificado com ferro, bem como leite
fortificado", acrescentou. Registra-se "uma queda da indigência de 50%¨nos
últimos dois anos", afirmou o representante do governo esquerdista do Presidente
Tabaré Vázquez.
O petróleo não se come
O governo da Venezuela,
inundado de fundos petroleiros, iniciou em 2004 o programa de Casas de
Alimentação, onde se cozinha para cinco ou seis dias na semana 150 almoços e
merendas para grávidas, crianças e idosos, selecionados por organismos da
própria comunidade. A rede de mercados populares do governo fornece os
alimentos. Os menus são feitos segundo orientações do estatal Instituto Nacional
de Nutrição, e incluem carne bovina, feijão, arroz, banana cozida ou frita,
arroz com frango, algum vegetal e fruta. "Também se fornece aveia, doce de arroz
com leite e um suco de fruta", contou à IPS Coromoto Alvarez, presidente da Casa
de Alimentação de Escalera ao Ávila, um bairro pobre do leste de
Caracas.
O Ministério de Alimentação reivindica a existência de seis mil
dessas casas, que dão serviço a 900 mil pessoas, 3,2% dos habitantes da
Venezuela, 33,9% dos quais vivem na pobreza e 10,6% na pobreza extrema, segundo
dados oficiais de 2006. a elas se agregam iniciativas privadas, como a da
Fundação Polar, o maior grupo empresarial do país.
Tampouco o Chile, país
que apresenta os melhores indicadores da América do sul, pode deixar de lado
planos como os Programas Alimentares Nacionais, dirigidos a grávidas, crianças e
idosos e alguns grupos específicos de alto risco, que hoje somam 300 mil
pessoas. A isso se somam os programas através das escolas, que desde 1990 até
2000 multiplicaram o orçamento e as bolsas de alimentação. O Programa Mundial de
alimentos reconheceu em 2002 o plano escolar chileno como um dos cinco melhores
do mundo, que atende 1,6 milhão de crianças.
(Envolverde/ IPS)