Duas décadas depois do genocídio, jornalista ouve o depoimento de mulheres que foram estupradas, e dos filhos que nasceram em consequência disso
Levine Mukasakufu (à dir.) e sua filha, Josiane Nizumfura (à esq.). Hoje elas estão em paz.
Quando Josiane Nizomfur fez 12 anos, ela quis conhecer seu pai, por isso escapou da escola e foi ao julgamento público onde sua mãe estava depondo contra ele por estupro.
Levine Mukasakufu nunca havia contado a Josiane as circunstâncias de seu nascimento. “Eu não podia enfrentar isso, e ela ficou sabendo pelos vizinhos”, disse. Levine – uma mulher pequena e delicada, que parece um passarinho colorido em sua tradicional saia enrolada – é uma das 500 mil mulheres violentadas durante o genocídio em Ruanda em 1994, quando a etnia hutu do país, sob ordens de seus líderes, tentou eliminar a minoria tutsi.
Então com 21 anos, Levine e outras jovens de Kibilizi, a 130 quilômetros ao sul da capital, Kigali, foram obrigadas a se reunir no campo de futebol da cidade. Os Interahamwe, a milícia hutu que liderou os massacres dos tutsis, escolheram as que queriam, forçando-as até os campos de banana e milhete ao redor onde foram estupradas por grupos de homens. “O estupro era a recompensa que os líderes davam aos que matavam”, disse Levine. “É por isso que eu não amava minha filha – seu pai foi quem matou minha família. Eu também queria matá-la.”
Quando Levine descobriu que sua filha tinha visto seu depoimento, ela a espancou a noite toda. Foi um de muitos ataques. Depois que não conseguiu abortar o bebê, ela frequentemente batia em Josiane quando era criança. “Se ela fizesse qualquer travessura, eu dizia que era igual ao pai, uma Interahamwe. Eu a expulsava, dizendo: ‘Esta é uma casa tutsi, e você não pertence aqui’”, disse ela.
Esta semana, a Cúpula Global para o Fim da Violência Sexual em Conflitos, organizada pelo secretário das Relações Exteriores britânico, William Hague, e a atriz Angelina Jodie, pretende colocar vítimas como Levine e Josiane no centro das investigações de crimes de guerra. Os governos deverão assinar um novo protocolo para documentar ataques sexuais em tempo de guerra e adotar programas para ensinar a seus soldados que o estupro é um crime de guerra, e não uma consequência inevitável do conflito.
Apesar de o estupro ainda ocorrer em todas as guerras, ele foi especialmente disseminado em Ruanda e as consequências são sentidas até hoje. O Tribunal Penal Internacional para Ruanda concluiu que o estupro foi uma parte integral do genocídio. “A violência sexual foi um passo no processo de destruição do grupo tutsi… destruição do espírito, da vontade de viver e da própria vida”, disse o veredicto sobre os líderes hutus que organizaram o genocídio na região de Butare, que inclui Kibilizi.
A ONU estimou inicialmente que 5 mil crianças nasceram de estupros no genocídio de 1994, mas o Fundo de Sobreviventes – uma instituição de caridade britânica que trabalha em Ruanda – acredita que o número pode chegar a 20 mil.
Diferentemente dos órfãos de genocídio, os filhos do estupro não se qualificam para ajuda governamental e muitos vivem na pobreza. Os programas de ajuda geralmente se concentraram na dificuldade das mulheres violentadas, dando pouca atenção às crianças, que cresceram sentindo-se rejeitadas por suas mães e estigmatizadas pela comunidade. Em Ruanda, a etnia vem pela linhagem paterna, por isso as sobreviventes tutsis chamam as crianças Interahamwe de “filho de uma cobra”, enquanto os parentes dos estupradores hutus muitas vezes dizem às crianças que suas mães são malditas por deporem contra seus pais e colocá-los na cadeia.
Marie Josée Ukeye, uma terapeuta que aconselha 22 mulheres estupradas e 12 crianças em Kibilizi, diz que as crianças têm problemas de comportamento que só podem ser superados com anos de terapia em grupo. “As meninas adolescentes têm vergonha e muitas vezes assumem o sofrimento de suas mães, enquanto os meninos têm acessos de mau humor explosivos”, disse ela. Como uma sobrevivente do genocídio, Ukeye vem realizando reuniões duas vezes por semana com as mulheres e as crianças há sete anos, ajudando-as a expressar-se e a superar sua raiva e sua dor.
No costume de Ruanda, uma criança recebe um nome cristão e um kinyarwanda. Epiphane Mukamakombe, que fez várias tentativas de abortar, chamou seu filho de Olivier Utabazi, que significa “ele pertence a eles”. Ela se recusou a amamentá-lo e tentou matá-lo quando era bebê. De alguma forma ele sobreviveu.
Hoje com 19 anos, Olivier diz que compreende porque sua mãe era cruel com ele, mas continua assombrado pelo pai que não consegue odiar. “Por um lado eu o culpo porque ele estuprou minha mãe e não a ajudou a me criar”, disse ele. “Mas por outro não sei se era realmente um homem mau.”
Quando criança ele era retraído e agressivo. No ano passado sua mãe juntou todo o seu dinheiro para mandá-lo estudar construção. Ele sonha em ser engenheiro e tem esperanças de uma vida melhor, mas sua atitude em relação ao estupro é confusa. “Talvez eles fossem matar minha mãe e então meu pai disse: ‘se você nos deixar fazer sexo com você, não mataremos’, por isso mamãe teve de concordar”, disse o jovem. O estupro é errado, diz Olivier, mas ele parece mais perturbado por sua própria identidade confusa, dizendo que sente vergonha e raiva toda vez que tem de preencher um formulário que pede o nome do pai.
Para sua mãe, os últimos 20 anos foram uma batalha simplesmente para aceitar a existência de Olivier. “Eu sentia que ele era um Interahamwe”, disse Epiphane. Mas com o tempo ela percebeu que, como toda a sua família foi morta no genocídio, o menino era tudo o que ela tinha. Ela ainda teme os parentes do homem que a estuprou, acusando-os de atirar pedras contra sua casa e de envenenar sua vaca. Olivier fornece uma espécie de proteção, apesar de passar a maior parte do tempo na escola. “O amor veio depois, quando eu percebi que Deus me deu esse filho e ele é a única família que tenho”, disse ela. “Não posso acusá-lo pelo modo como ele nasceu.”
Uma vez por semana as mulheres se juntam para trabalhar em mutirão nos pequenos campos à beira da aldeia. Inclinadas para recolher os grãos para secar, elas riem enquanto trabalham, achando conforto na companhia das outras e no conhecimento de que não estão sozinhas. Como agricultoras de subsistência extremamente pobres, poucas podem pagar por mão-de-obra, e mesmo que pudessem elas dizem que os trabalhadores podem ser parentes dos estupradores presos e não querem interagir com eles. O estigma do estupro nunca desaparece, e elas dizem que seus vizinhos hutus às vezes ainda as chamam de prostitutas.
Algumas mulheres enlouqueceram com o sofrimento e passaram o trauma para seus filhos. Epiphanie Kanziga foi estuprada mais vezes do que ela consegue se lembrar e teve uma filha, Adeline Uwasi – nome que significa “do pai dela”. As duas vivem em uma casa de um cômodo. O piso de terra fica alagado quando chove e um banco de ônibus velho, com as molas saltando através do plástico, serve de sofá. Quando Adeline tinha 3 anos, Epiphanie a deixou na floresta, acreditando que o genocídio continuava e ela precisava ser escondida. Em outra ocasião ela bateu em sua cabeça com um pau, ferindo-a tanto que a criança teve de ser hospitalizada. Frágil e chorosa, hoje Epiphanie conta com Adeline para cuidar dela durante a temporada anual de comemoração, quando os ruandenses marcam os cem dias de genocídio, a partir de 7 de abril.
Vestida em seu uniforme escolar azul-real, Adeline tem sonhos de ir à Europa ou de conseguir um emprego em um banco, mas está atrasada na escola e fala em monossílabos, tão baixo que quase não é escutada. Muito consciente de sua posição como forasteira, ela certa vez disse a sua mãe que não tinha importância que ela não tivesse mais filhos, pois ninguém da comunidade lhes traria presentes quando nasce um bebê, à maneira tradicional. Ela acha difícil confiar nos homens e os considera mentirosos. “Eu não acho que eles têm amor”, disse, olhando para os pés.
Na última quinta-feira perto do escritório distrital de Kibilizi, onde 20 anos atrás líderes locais hutus e Interahamwe se reuniram para planejar o genocídio, os aldeões se preparavam para reenterrar os ossos dos que foram chacinados. Mais de 3 mil foram mortos nessa área, e todo o ano mais corpos são encontrados em covas coletivas e em fossas. Levine Mukasakufu estava no comando, usando luvas brancas de borracha para colocar cadáveres mumificados em caixões de madeira rústica pintados de branco, todos decorados com cruzes. Ela puxou uma lona azul e revelou dezenas de cadáveres, congelados na posição do momento da morte, um deles com as mãos para cima como se suplicasse por piedade. Um homem delicadamente puxou os restos de uma criança que devia ter 6 anos, com os joelhos dobrados como se ele ou ela estivesse dormindo.
Uma das mulheres não aguentou e começou a chorar, mas Levine se manteve forte, decidida a que os membros de sua família tivessem um enterro decente. Ao contrário de outras mulheres, ela teve mais cinco filhos. Josiane, que ela atacou por ter ido ver seu pai, tornou-se uma mulher truculenta e autoconfiante, duas vezes maior que sua mãe. Elas alcançaram um acordo, uma maneira de se tolerarem. Os dias de gritos e brigas terminaram.
“A violência sexual é um crime como nenhum outro”, disse Marie Josée. “Ele afeta todos os aspectos da vida de uma pessoa – mental, físico, social. Destrói tudo.” No entanto, ela acredita que as crianças têm uma chance de forjar suas próprias vidas se completarem os estudos. “Eu vi que grande tristeza é ser um filho do estupro”, disse ela. “Mas também vi que os seres humanos, não importa pelo que eles tenham passado, podem progredir e melhorar.”
Assombradas pela morte e o estupro, condenadas à pobreza, as mulheres têm pouca esperança de felicidade. Só os filhos têm alguma chance de deixar o passado para trás.
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* Publicado originalmente pelo The Observer e retirado do site da revista Carta Capital.