A guerra contra a guerra às drogas é a única guerra que importa. A postura do Uruguai levam a ONU e os EUA à vergonha.
O Uruguai não somente legalizou o consumo da maconha, mas corajosamente também sua
|
Eu pensava que as Nações Unidas fossem um lugar inofensivo de conversa oca, com empregos livres de impostos para burocratas que, de outra maneira, estariam desempregados. Agora eu percebo que é uma força do mal. Sua resposta para uma tentativa verdadeiramente significativa para combater uma ameaça global – o novo regime de drogas do Uruguai – foi declarar que ele “viola leis internacionais”.
Ver a maré mudar quanto às drogas é como tentar detectar um movimento de uma geleira. Mas ela está se movendo. O estatuto de quarta-feira foi introduzido pelo presidente uruguaio, José Mujica, “para livrar as futuras gerações desta praga”. A praga não são as drogas em si, mas a guerra a elas, que coloca a juventude do mundo à mercê de traficantes criminosos e à prisão arbitrária. Mujica declarou-se um legalizador relutante, mas determinado a “tirar os usuários dos negócios clandestinos. Nós não defendemos a maconha ou qualquer outro vício, mas pior que qualquer droga é o tráfico”.
Uruguai vai legalizar não só o consumo de maconha, mas crucialmente, sua produção e venda. Os usuários devem ser maiores de 18 anos e uruguaios registrados. Enquanto pequenas quantidades podem ser cultivadas privadamente, empresas vão produzir cânhamo sob licença estatal e os preços serão estabelecidos para minar traficantes. O país não tem um problema na escala da Colômbia ou México – apenas 10% dos adultos admitem usar maconha – e reforçam que a medida é experimental.
Esta abordagem comedida está muito à frente mesmo de estados americanos como Colorado e Washington, que legalizaram tanto o uso recreativo como o consumo medicinal da maconha, mas não a produção. Apesar da lei uruguaia não cobrir outras drogas, ao negar aos traficantes uns 90% estimados de seu mercado, a esperança é tanto minar o grosso do mercado criminoso e diminuir a efeito de porta de entrada a outras drogas pelos traficantes.
A coragem de Mujica não deveria ser menosprezada.
José Mujica, Presidente do Uruguai |
Seu país é um país levemente antiquado, e dois terços dos entrevistados se opuseram à medida, apesar disto ser acima de 3% uma década atrás. Além disso, alguns lobbies pró-legalização se opõem à nacionalização de facto. Uma questão em aberto é se um cartel estatal será tão eficaz como o livre mercado regulado. Mas o secretário de drogas, Julio Calzada, é contundente: “Há 50 anos nós estamos tentando tratar o problema das drogas apenas com uma ferramenta – penalização – e isso fracassou. Como resultado, temos mais consumidores, organizações criminosas maiores, lavagem de dinheiro, tráfico de armas e danos colaterais”.
A resposta do Painel Internacional de Controle de Narcóticos da ONU (International Narcotics Control Board) foi entoar clichês fúteis. “A medida”, disse o diretor Raymond Yans, “colocaria em perigo os jovens e contribuiria para um prematuro início de dependência”. Ela também estaria rompendo com “um tratado universalmente aceito e aprovado”. Apesar disso, a ONU admite que meio século de tentativa de supressão levou a 162 milhões de usuários de maconha no mundo todo, ou 4% da população adulta total.
Mujica, com seus 78 anos, nota a ironia que muitos de seus contemporâneos sul-americanos concordam com ele, mas só após deixarem o governo. Fernando Henrique Cardoso, do Brasil; Ernesto Zedillo, do México; e César Gaviria, da Colômbia, todos eles propõem a descriminalização do mercado de drogas para que possam começar a regular um comércio cujos operadores rivais estão matando milhares de pessoas todos os anos.
O valor do tráfico de drogas só é menor que o do tráfico de armas . Mesmo assim, os EUA resistem à descriminalização para que possam continuar a combater a produção de cocaína e ópio na América Latina e Afeganistão, para evitar enfrentar o verdadeiro inimigo: o consumo doméstico, que está fora de controle.
Por tudo isso, a futilidade da supressão está levando a leis decadentes no ocidente. Vinte estados norte-americanos legalizaram o uso medicinal da maconha. A Califórnia rejeitou por pouca margem taxar o consumo (recusando algo em torno de 1,3 bilhão de dólares em receita anual) e ainda pode voltar atrás. O uso de drogas é aceito em boa parte da América Latina e, de fato, na Europa. Mesmo na Inglaterra, onde a posse pode ser punida com cinco anos de prisão, apenas 0,2% dos casos julgados resultam em tal sentença. Os usuários de drogas mais intensos estão nas próprias prisões do estado. A lei efetivamente desabou.
A dificuldade agora é resolver a inconsistência de autoridades “fazendo vista grossa” ao consumo enquanto deixam a oferta (e assim, o marketing) não taxado e não regulado nas mãos dos traficantes de drogas. Isto é quase um subsídio estatal ao crime organizado. A indulgência pode salvar a polícia e os tribunais do custo da aplicação da lei, mas deixa todas as ruas abertas a um enorme risco, da maconha ao uso de drogas pesadas.
Acabar com esta inconsistência requer ação dos legisladores. Mas eles continuam reféns de uma combinação legal de tabu, tribalismo e medo da mídia. A política britânica quanto a todos os entorpecentes e narcóticos (do álcool ao benzodiazepam) é caótica e perigosa. O governo (inglês) admitiu na quinta-feira sua “incapacidade controlar as “drogas legais”, novas, inventadas toda semana. Eles estão correndo com laboratórios ambulantes mostrando mandados de prisão e proibição como os Keystone Cops, a seguir:
A catástrofe de morte e anarquia que a fracassada supressão de drogas levou ao México e a outros narcoestados faz a obsessão ocidental com a guerra às drogas parecer uma atração secundária insignificante. O caminho para fora desta escuridão está sendo mapeado não no velho, mas no novo mundo, cujos heroicos legisladores merecem receber um prêmio Nobel da Paz. Foram eles que assumiram o desafio de combater a guerra que realmente importa – a guerra contra a guerra às drogas. É significativo que os países mais corajosos são os menores. Graças a Deus pelos países menores.
_______________
13/12/2013, [*] Simon Jenkins, The Guardian, UK
“Heroic Uruguay deserves a Nobel peace prize for legalising cannabis”
Traduzido por João Aroldo
[*] Simon Jenkins é jornalista e escritor. Escreve artigos para o The Guardian e para rádio e TV da BBC. Foi editor do Times e do London Evening Standard. Atualmente também dirige o National Trust. Seu último livro é England's Hundred Best Views.
http://redecastorphoto.blogspot.com.br