256. Ao questionar-se sobre a incidência pública da religião, é preciso distinguir diferentes modos de a viver. Tanto os intelectuais como os jornalistas caem, frequentemente, em generalizações grosseiras e pouco académicas, quando falam dos defeitos das religiões e, muitas vezes, não são capazes de distinguir que nem todos os crentes – nem todos os líderes religiosos – são iguais. Alguns políticos aproveitam esta confusão para justificar acções discriminatórias. Outras vezes, desprezam-se os escritos que surgiram no âmbito duma convicção crente, esquecendo que os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora que abre sempre novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece a mente e a sensibilidade. São desprezados pela miopia dos racionalismos. Será razoável e inteligente relegá-los para a obscuridade, só porque nasceram no contexto duma crença religiosa? Contêm princípios profundamente humanistas que possuem um valor racional, apesar de estarem permeados de símbolos e doutrinas religiosos.
Fetichismo do dinheiro: economia sem rosto e sem objetivo verdadeiramente humano.
55. Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.
Pela alegria e contra a se-lamentação: “Quaresma sem Páscoa”
6. Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa. Reconheço, porém, que a alegria não se vive da mesma maneira em todas as etapas e circunstâncias da vida, por vezes muito duras. Adapta-se e transforma-se, mas sempre permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados. (...)
“Não há uma decisão ética”
7. A tentação apresenta-se, frequentemente, sob forma de desculpas e queixas, como se tivesse de haver inúmeras condições para ser possível a alegria. Habitualmente isto acontece, porque «a sociedade técnica teve a possibilidade de multiplicar as ocasiões de prazer; no entanto ela encontra dificuldades grandes no engendrar também a alegria».[2] (...) Não me cansarei de repetir estas palavras de Bento XVI (...): «Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo». [3]
“Um banquete apetecível”
14. (...) Todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. (...)
“A palavra”
22. A Palavra possui, em si mesma, uma tal potencialidade, que não a podemos prever. O Evangelho fala da semente que, uma vez lançada à terra, cresce por si mesma, inclusive quando o agricultor dorme (cf. Mc 4, 26-29). A Igreja deve aceitar esta liberdade incontrolável da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão variadas que muitas vezes nos escapam, superando as nossas previsões e quebrando os nossos esquemas.
“Primeirear”
24. A Igreja «em saída» é a comunidade de discípulos missionários que «primeireiam», que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa! A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4, 10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos.
30. A sua alegria de comunicar (...) exprime-se tanto na sua preocupação por anunciá-Lo noutros lugares mais necessitados, como numa constante saída para as periferias do seu território ou para os novos âmbitos socioculturais. [32]
“Era do conhecimento”
52. A humanidade vive, neste momento, uma viragem histórica, que podemos constatar nos progressos que se verificam em vários campos. São louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo, no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia não podemos esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos chamados países ricos.
“A alegria de viver se desvanece (ante um poder muitas vezes anônimo)”
A alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem a falta de respeito e a violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca dignidade. Esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no progresso científico, nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da natureza e da vida. Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de novas formas dum poder muitas vezes anónimo.
“A cultura global pode nos enfraquecer”
77. Apesar disso, como filhos desta época, todos estamos de algum modo sob o influxo da cultura globalizada actual, que, sem deixar de apresentar valores e novas possibilidades, pode também limitar-nos, condicionar-nos e até mesmo combalir-nos. (...)
“Não ao pessimismo estéril: é possível transformar água em vinho”
84. (...) Os males do nosso mundo – e os da Igreja – não deveriam servir como desculpa para reduzir a nossa entrega e o nosso ardor. Vejamo-los como desafios para crescer. Além disso, o olhar crente é capaz de reconhecer a luz que o Espírito Santo sempre irradia no meio da escuridão, sem esquecer que, «onde abundou o pecado, superabundou a graça» (Rm 5, 20). A nossa fé é desafiada a entrever o vinho em que a água pode ser transformada, e a descobrir o trigo que cresce no meio do joio. (...) Neste sentido, podemos voltar a ouvir as palavras pronunciadas pelo Beato João XXIII naquele memorável 11 de Outubro de 1962: «Chegam-nos aos ouvidos insinuações de almas, ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e moderação. Nos tempos actuais, não vêem senão prevaricações e ruínas. [...] Mas a nós parece-nos que devemos discordar desses profetas de desgraças, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo. Na ordem presente das coisas, a misericordiosa Providência está-nos levantando para uma ordem de relações humanas que, por obra dos homens e a maior parte das vezes para além do que eles esperam, se encaminham para o cumprimento dos seus desígnios superiores e inesperados (...) [65]
Sem perder a alegria
109. Os desafios existem para ser superados. Sejamos realistas, mas sem perder a alegria, a audácia e a dedicação cheia de esperança. Não deixemos que nos roubem a força missionária!
“Os bispos da Oceania” (não os europeus)
118. Os Bispos da Oceania pediram que a Igreja neste continente «desenvolva uma compreensão e exposição da verdade de Cristo partindo das tradições e culturas locais», e instaram todos os missionários «a trabalhar de harmonia com os cristãos indígenas para garantir que a doutrina e a vida da Igreja sejam expressas em formas legítimas e apropriadas a cada cultura». [94] Não podemos pretender que todos os povos dos vários continentes, ao exprimir a fé cristã, imitem as modalidades adoptadas pelos povos europeus num determinado momento da história, porque a fé não se pode confinar dentro dos limites de compreensão e expressão duma cultura. [95]
“A primeira palavra é pessoal”
128. Nesta pregação, sempre respeitosa e amável, o primeiro momento é um diálogo pessoal, no qual a outra pessoa se exprime e partilha as suas alegrias, as suas esperanças, as preocupações com os seus entes queridos e muitas coisas que enchem o coração. Só depois desta conversa é que se pode apresentar-lhe a Palavra (...). É o anúncio que se partilha com uma atitude humilde e testemunhal de quem sempre sabe aprender, com a consciência de que esta mensagem é tão rica e profunda que sempre nos ultrapassa. Umas vezes exprime-se de maneira mais directa, outras através dum testemunho pessoal, uma história, um gesto, ou outra forma (...). Se parecer prudente e houver condições, é bom que este encontro fraterno e missionário conclua com uma breve oração que se relacione com as preocupações que a pessoa manifestou. Assim ela sentirá mais claramente que foi ouvida e interpretada, que a sua situação foi posta nas mãos de Deus, e reconhecerá que a palavra (...) fala realmente à sua própria vida.
“Recursos para falar com seu povo”
141. Ficamos admirados com os recursos empregues (...) para dialogar com o seu povo, revelar o seu mistério a todos, cativar a gente comum com ensinamentos tão elevados e exigentes. Creio que o segredo [de Jesus] esteja escondido naquele seu olhar o povo mais além das suas fraquezas e quedas: «Não temais, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino» (Lc 12, 32); Jesus prega com este espírito. Transbordando de alegria no Espírito, bendiz o Pai por Lhe atrair os pequeninos: «Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos pequeninos» (Lc 10, 21). O Senhor compraz-Se verdadeiramente em dialogar com o seu povo, e compete ao pregador fazer sentir este gosto do Senhor ao seu povo.
A preparação para falar: “Palavras que abrasam os corações”
142. Um diálogo é muito mais do que a comunicação duma verdade. Realiza-se pelo prazer de falar e pelo bem concreto que se comunica através das palavras entre aqueles que se amam. É um bem que não consiste em coisas, mas nas próprias pessoas que mutuamente se dão no diálogo. A pregação puramente moralista ou doutrinadora e também a que se transforma numa lição de exegese reduzem esta comunicação entre os corações (...)
“Onde está a tua síntese, ali está o teu coração”
143. O desafio duma pregação inculturada consiste em transmitir a síntese da mensagem (...), e não ideias ou valores soltos. Onde está a tua síntese, ali está o teu coração. A diferença entre fazer luz com sínteses e o fazê-lo com ideias soltas é a mesma que há entre o ardor do coração e o tédio. O pregador tem a belíssima e difícil missão de unir os corações que se amam (...). A palavra é, essencialmente, mediadora e necessita não só dos dois dialogantes mas também de um pregador que a represente como tal, convencido de que «não nos pregamos a nós mesmos».
144. Falar com o coração implica mantê-lo não só ardente, mas também iluminado pela integridade da Revelação e pelo caminho que essa Palavra percorreu no coração da Igreja e do nosso povo fiel ao longo da sua história. (...).
“III. A preparação da pregação” (o estudo)
145. A preparação da pregação é uma tarefa tão importante que convém dedicar-lhe um tempo longo de estudo, oração, reflexão e criatividade pastoral. Com muita amizade, quero deter-me a propor um itinerário de preparação da homilia. Trata-se de indicações que, para alguns, poderão parecer óbvias, mas considero oportuno sugeri-las para recordar a necessidade de dedicar um tempo privilegiado a este precioso ministério. Alguns párocos sustentam frequentemente que isto não é possível por causa de tantas incumbências que devem desempenhar; todavia atrevo-me a pedir que todas as semanas se dedique a esta tarefa um tempo pessoal e comunitário suficientemente longo, mesmo que se tenha de dar menos tempo a outras tarefas também importantes. (...) Um pregador que não se prepara não é «espiritual»: é desonesto e irresponsável quanto aos dons que recebeu.
O culto da verdade
146. O primeiro passo, (...) é prestar toda a atenção ao texto [bíblico ou outro], que deve ser o fundamento da pregação. Quando alguém se detém procurando compreender qual é a mensagem dum texto, exerce o «culto da verdade».[113] É a humildade do coração que reconhece que a Palavra sempre nos transcende, que somos, «não os árbitros nem os proprietários, mas os depositários, os arautos e os servidores».[114] Esta atitude de humilde e deslumbrada veneração da Palavra exprime-se detendo-se a estudá-la com o máximo cuidado e com um santo temor de a manipular. Para se poder interpretar um texto (...), é preciso paciência, pôr de parte toda a ansiedade e atribuir-lhe tempo, interesse e dedicação gratuita. Há que pôr de lado qualquer preocupação que nos inquiete, para entrar noutro âmbito de serena atenção. Não vale a pena dedicar-se a ler um texto (...), se aquilo que se quer obter são resultados rápidos, fáceis ou imediatos. Por isso, a preparação da pregação requer amor. Uma pessoa só dedica um tempo gratuito e sem pressa às coisas ou às pessoas que ama (...). A partir deste amor, uma pessoa pode deter-se todo o tempo que for necessário, com a atitude dum discípulo: «Fala, Senhor; o teu servo escuta» (1 Sam 3, 9).
147. Em primeiro lugar, convém estarmos seguros de compreender adequadamente o significado das palavras que lemos. (...) São conhecidos os vários recursos que proporciona a análise literária: prestar atenção às palavras que se repetem ou evidenciam, reconhecer a estrutura e o dinamismo próprio dum texto, considerar o lugar que ocupam os personagens, etc. Mas o objectivo não é o de compreender todos os pequenos detalhes dum texto; o mais importante é descobrir qual é a mensagem principal, a mensagem que confere estrutura e unidade ao texto. Se o pregador não faz este esforço, é possível que também a sua pregação não tenha unidade nem ordem; o seu discurso será apenas uma súmula de várias ideias desarticuladas que não conseguirão mobilizar os outros.
Entender o que “o autor quis primariamente transmitir”
147. (segue) A mensagem central é aquela que o autor quis primariamente transmitir, o que implica identificar não só uma ideia mas também o efeito que esse autor quis produzir. Se um texto foi escrito para consolar, não deveria ser utilizado para corrigir erros; se foi escrito para exortar, não deveria ser utilizado para instruir; se foi escrito para ensinar algo (...), não deveria ser utilizado para explicar várias opiniões teológicas; se foi escrito para levar ao louvor ou ao serviço missionário, não o utilizemos para informar sobre as últimas notícias.
A personalização da Palavra
149. (...) É bom não esquecer que, «particularmente, a maior ou menor santidade do ministro influi sobre o anúncio da Palavra».[116] Como diz São Paulo, «falamos, não para agradar aos homens, mas a Deus que põe à prova os nossos corações» (1 Ts 2, 4). Se está vivo este desejo de, primeiro, ouvirmos nós a Palavra que temos de pregar, esta transmitir-se-á duma maneira ou doutra ao povo fiel de Deus: «A boca fala da abundância do coração» (Mt 12, 34). As leituras do domingo ressoarão com todo o seu esplendor no coração do povo, se primeiro ressoarem assim no coração do Pastor.
“Os pretensiosos mestres”
150. Jesus irritava-Se com pretensiosos mestres, muito exigentes com os outros, que ensinavam a Palavra de Deus mas não se deixavam iluminar por ela: «Atam fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos aos ombros dos outros, mas eles não põem nem um dedo para os deslocar» (Mt 23, 4). E o Apóstolo São Tiago exortava: «Meus irmãos, não haja muitos entre vós que pretendam ser mestres, sabendo que nós teremos um julgamento mais severo» (3, 1). Quem quiser pregar, deve primeiro estar disposto a deixar-se tocar pela Palavra e fazê-la carne na sua vida concreta. Assim, a pregação consistirá na actividade tão intensa e fecunda que é «comunicar aos outros o que foi contemplado».[117] Por tudo isto, antes de preparar concretamente o que vai dizer na pregação, o pregador tem que aceitar ser primeiro trespassado por essa Palavra que há-de trespassar os outros, porque é uma Palavra viva e eficaz, que, como uma espada, «penetra até à divisão da alma e do corpo, das articulações e das medulas, e discerne os sentimentos e intenções do coração» (Heb 4, 12). Isto tem um valor pastoral. Mesmo nesta época, a gente prefere escutar as testemunhas: «Tem sede de autenticidade (...), reclama evangelizadores que lhe falem de um Deus que eles conheçam e lhes seja familiar como se eles vissem o invisível».[118]
“O que isso mudará na minha vida”
153. (...) numa leitura tranquila do texto, é bom perguntar-se, por exemplo: «Senhor, a mim que me diz este texto? Com esta mensagem, que quereis mudar na minha vida? Que é que me dá fastídio neste texto? Por que isto não me interessa?»; ou então: «De que gosto? Em que me estimula esta Palavra? Que me atrai? E porque me atrai?». Quando se procura ouvir (...), é normal ter tentações. Uma delas é simplesmente sentir-se chateado e acabrunhado e dar tudo por encerrado; outra tentação muito comum é começar a pensar naquilo que o texto diz aos outros, para evitar de o aplicar à própria vida. Acontece também começar a procurar desculpas, que nos permitam diluir a mensagem específica do texto. Outras vezes pensamos que Deus nos exige uma decisão demasiado grande, que ainda não estamos em condições de tomar. Isto leva muitas pessoas a perderem a alegria do encontro com a Palavra. (...) Deus convida sempre a dar um passo mais, mas não exige uma resposta completa, se ainda não percorremos o caminho que a torna possível. Apenas quer que olhemos com sinceridade a nossa vida e a apresentemos sem fingimento diante dos seus olhos, que estejamos dispostos a continuar a crescer, e peçamos a Ele o que ainda não podemos conseguir.
“À escuta do povo”
154. O pregador deve também pôr-se à escuta do povo, para descobrir aquilo que os fiéis precisam de ouvir. Um pregador é um contemplativo da Palavra e também um contemplativo do povo. Desta forma, descobre «as aspirações, as riquezas e as limitações, as maneiras de orar, de amar, de encarar a vida e o mundo, que caracterizam este ou aquele aglomerado humano», prestando atenção «ao povo concreto com os seus sinais e símbolos e respondendo aos problemas que apresenta». [120] Trata-se de relacionar a mensagem do texto (...) com uma situação humana, com algo que as pessoas vivem, com uma experiência que precisa da luz da Palavra.
Esta preocupação não é ditada por uma atitude oportunista ou diplomática, mas é profundamente religiosa e pastoral. No fundo, é uma «sensibilidade espiritual para saber ler nos acontecimentos a mensagem de Deus», [121] e isto é muito mais do que encontrar algo interessante para dizer. Procura-se descobrir «o que o Senhor tem a dizer nessas circunstâncias». [122] Então a preparação da pregação transforma-se num exercício de discernimento evangélico, no qual se procura reconhecer – à luz do Espírito – «um “apelo” que Deus faz ressoar na própria situação histórica: também nele e através dele, Deus chama o crente». [123]
“Nada de crônica de eventos. Para isso, já existem os programas de televisão”
155. Nesta busca, é possível recorrer apenas a alguma experiência humana frequente, como, por exemplo, a alegria dum reencontro, as desilusões, o medo da solidão, a compaixão pela dor alheia, a incerteza perante o futuro, a preocupação com um ser querido, etc.; mas faz falta intensificar a sensibilidade para se reconhecer o que isso realmente tem a ver com a vida das pessoas. Recordemos que nunca se deve responder a perguntas que ninguém se põe, nem convém fazer a crónica da actualidade para despertar interesse; para isso, já existem os programas televisivos. Em todo o caso, é possível partir de algum facto para que a Palavra possa repercutir fortemente no seu apelo (...) porque acontece, às vezes, que algumas pessoas gostam de ouvir comentários sobre a realidade na pregação, mas nem por isso se deixam interpelar pessoalmente.
“A forma adequada de apresentar a mensagem”
Recursos pedagógicos
156. Alguns acreditam que podem ser bons pregadores por saber o que devem dizer, mas descuidam o como, a forma concreta de desenvolver uma pregação. Zangam-se quando os outros não os ouvem ou não os apreciam, mas talvez não se tenham empenhado por encontrar a forma adequada de apresentar a mensagem. Lembremo-nos de que «a evidente importância do conteúdo da evangelização não deve esconder a importância dos métodos e dos meios da mesma evangelização». [124] A preocupação com a forma de pregar também é uma atitude profundamente espiritual. (...) Mas também é um exímio exercício de amor ao próximo, porque não queremos oferecer aos outros algo de má qualidade. Na Bíblia, por exemplo, aparece a recomendação para se preparar a pregação de modo a garantir uma apropriada extensão: «Sê conciso no teu falar: muitas coisas em poucas palavras» (Sir 32, 8).
“Uma ideia, um sentimento, uma imagem”
157. Apenas, para exemplificar, recordemos alguns recursos práticos que podem enriquecer uma pregação e torná-la mais atraente. Um dos esforços mais necessários é aprender a usar imagens na pregação, isto é, a falar por imagens. Às vezes usam-se exemplos para tornar mais compreensível algo que se quer explicar, mas estes exemplos frequentemente dirigem-se apenas ao entendimento, enquanto as imagens ajudam a apreciar e acolher a mensagem que se quer transmitir. Uma imagem fascinante faz com que se sinta a mensagem como algo familiar, próximo, possível, relacionado com a própria vida. Uma imagem apropriada pode levar a saborear a mensagem que se quer transmitir, desperta um desejo e motiva a vontade na direcção do Evangelho. Uma boa homilia, como me dizia um antigo professor, deve conter «uma ideia, um sentimento, uma imagem».
“Mensagem simples, clara, directa, adaptada”
158. Já dizia Paulo VI que os fiéis «esperam muito desta pregação e dela poderão tirar fruto, contanto que ela seja simples, clara, directa, adaptada». [125] A simplicidade tem a ver com a linguagem utilizada. Deve ser linguagem que os destinatários compreendam, para não correr o risco de falar ao vento. Acontece frequentemente que os pregadores usam palavras que aprenderam nos seus estudos e em certos ambientes, mas que não fazem parte da linguagem comum das pessoas que os ouvem. Há palavras próprias da teologia ou da catequese, cujo significado não é compreensível para a maioria dos cristãos. O maior risco dum pregador é habituar-se à sua própria linguagem e pensar que todos os outros a usam e compreendem espontaneamente. Se se quer adaptar à linguagem dos outros, para poder chegar até eles com a Palavra, deve-se escutar muito, é preciso partilhar a vida das pessoas e prestar-lhes benévola atenção. A simplicidade e a clareza são duas coisas diferentes. A linguagem pode ser muito simples, mas pouco clara a pregação. Pode-se tornar incompreensível pela desordem, pela sua falta de lógica, ou porque trata vários temas ao mesmo tempo. Por isso, outro cuidado necessário é procurar que a pregação tenha unidade temática, uma ordem clara e ligação entre as frases, de modo que as pessoas possam facilmente seguir o pregador e captar a lógica do que lhes diz.
“Linguagem positiva”
159. Outra característica é a linguagem positiva. Não diz tanto o que não se deve fazer, como sobretudo propõe o que podemos fazer melhor. E, se aponta algo negativo, sempre procura mostrar também um valor positivo que atraia, para não se ficar pela queixa, o lamento, a crítica ou o remorso. Além disso, uma pregação positiva oferece sempre esperança, orienta para o futuro, não nos deixa prisioneiros da negatividade. Como é bom que sacerdotes, diáconos e leigos se reúnam periodicamente para encontrarem, juntos, os recursos que tornem mais atraente a pregação!
“O primeiro anúncio deve desencadear também um caminho de formação e de amadurecimento”
160. (...) Daqui se vê claramente que o primeiro anúncio deve desencadear também um caminho de formação e de amadurecimento. A evangelização procura também o crescimento, o que implica tomar muito a sério em cada pessoa o projecto que Deus tem para ela. Cada ser humano precisa sempre mais de Cristo, e a evangelização não deveria deixar que alguém se contente com pouco (...).
Para convencer o próximo é preciso amar o próximo
161. Não seria correcto que este apelo ao crescimento fosse interpretado, exclusiva ou prioritariamente, como formação doutrinal. Trata-se de «cumprir» aquilo que o Senhor nos indicou como resposta ao seu amor, sobressaindo, junto com todas as virtudes, aquele mandamento novo que é o primeiro, o maior, o que melhor nos identifica como discípulos: «É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12). É evidente que, quando os autores do Novo Testamento querem reduzir a mensagem moral cristã a uma última síntese, ao mais essencial, apresentam-nos a exigência irrenunciável do amor ao próximo: «Quem ama o próximo cumpre plenamente a lei. (…) É no amor que está o pleno cumprimento da lei» (Rm 13, 8.10). De igual modo, para São Paulo, o mandamento do amor não só resume a lei mas constitui o centro e a razão de ser da mesma: «Toda a lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gal 5, 14). E, às suas comunidades, apresenta a vida cristã como um caminho de crescimento no amor: «O Senhor vos faça crescer e superabundar de caridade uns para com os outros e para com todos» (1 Ts 3, 12). Também São Tiago exorta os cristãos a cumprir «a lei do Reino, de acordo com a Escritura: Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (2, 8), acabando por não citar nenhum preceito.
“Civilização paradoxalmente ofendida pelo anonimato, mas ao mesmo tempo doentiamente bisbilhoteira”
169. Numa civilização paradoxalmente ferida pelo anonimato e, simultaneamente, obcecada com os detalhes da vida alheia, descaradamente doente de morbosa curiosidade, a Igreja tem necessidade de um olhar solidário para contemplar, comover-se e parar diante do outro, tantas vezes quantas forem necessárias.
“Descalçar as sandálias, na terra sagrada dos outros”
169 (segue) Neste mundo, os ministros ordenados e os outros agentes de pastoral podem tornar presente a fragrância da presença solidária de Jesus e o seu olhar pessoal. A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta «arte do acompanhamento», para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3, 5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã.
“Defender as ovelhas”
171. Hoje mais do que nunca precisamos de homens e mulheres que conheçam, a partir da sua experiência de acompanhamento, o modo de proceder onde reine a prudência, a capacidade de compreensão, a arte de esperar, a docilidade ao Espírito, para no meio de todos defender as ovelhas a nós confiadas dos lobos que tentam desgarrar o rebanho. Precisamos de nos exercitar na arte de escutar, que é mais do que ouvir. Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro espiritual.
“Sair da cômoda posição de espectadores”
Escutar ajuda-nos a individuar o gesto e a palavra oportunos que nos desinstalam da cómoda condição de espectadores. Só a partir desta escuta respeitosa e compassiva é que se pode encontrar os caminhos para um crescimento genuíno, despertar o desejo do ideal cristão, o anseio de corresponder plenamente ao amor de Deus e o anelo de desenvolver o melhor de quanto Deus semeou na nossa própria vida. Mas sempre com a paciência de quem está ciente daquilo que ensinava São Tomás de Aquino: alguém pode ter a graça e a caridade, mas não praticar bem nenhuma das virtudes «por causa de algumas inclinações contrárias» que persistem. [133] Por outras palavras, as virtudes organizam-se sempre e necessariamente «in habitu», embora os condicionamentos possam dificultar as operações desses hábitos virtuosos. Por isso, faz falta «uma pedagogia que introduza a pessoa passo a passo até chegar à plena apropriação do mistério».[134] Para se chegar a um estado de maturidade, isto é, para que as pessoas sejam capazes de decisões verdadeiramente livres e responsáveis, é preciso dar tempo ao tempo, com uma paciência imensa. Como dizia o Beato Pedro Fabro: «O tempo é o mensageiro de Deus».
Nada de “caridade por receita”
180. Ao lermos as Escrituras, fica bem claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. E a nossa resposta de amor também não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados, o que poderia constituir uma «caridade por receita», uma série de acções destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais. Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo» (Mt 6, 33). O projecto de Jesus é instaurar o Reino de seu Pai; por isso, pede aos seus discípulos: «Proclamai que o Reino do Céu está perto» (Mt 10, 7).
Extrair as consequências práticas das situações sociais
182. Os ensinamentos da Igreja acerca de situações contingentes estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos e podem ser objecto de discussão, mas não podemos evitar de ser concretos – sem pretender entrar em detalhes – para que os grandes princípios sociais não fiquem meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar as suas consequências práticas, para que «possam incidir com eficácia também nas complexas situações hodiernas».[148]
183. Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos. Quem ousaria encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que nunca é cómoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A terra é a nossa casa comum, e todos somos irmãos.
Embora «a justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça». [150] Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e construtivo, orienta uma acção transformadora e, neste sentido, não deixa de ser um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, «une o próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e Comunidades eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática». [151]
“A inclusão social dos pobres”
186. Deriva da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se aproximou dos pobres e marginalizados, a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade.
“Olhai o salário que não pagastes aos trabalhadores”
E Ele mostra-Se solícito com as suas necessidades: «Os filhos de Israel clamaram, então, ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador» (Jz 3, 15). Ficar surdo a este clamor, quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o pobre, coloca-nos fora da vontade do Pai e do seu projecto, porque esse pobre «clamaria ao Senhor contra ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado» (Dt 15, 9). E a falta de solidariedade, nas suas necessidades, influi directamente sobre a nossa relação com Deus: «Se te amaldiçoa na amargura da sua alma, Aquele que o criou ouvirá a sua oração» (Sir 4, 6). Sempre retorna a antiga pergunta: «Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 3, 17). Lembremos também com quanta convicção o Apóstolo São Tiago retomava a imagem do clamor dos oprimidos: «Olhai que o salário que não pagastes, aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo» (5, 4).
“A função social da propriedade”
189. A solidariedade é uma reacção espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade, quando se fazem carne, abrem caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes.
“Trabalho livre, criativo, participativo e solidário”
192. Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais alto. Não se fala apenas de garantir a comida ou um decoroso «sustento» para todos, mas «prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos».[159] Isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho, porque, no trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros bens que estão destinados ao uso comum.
“A opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e lança fora”
195. Quando São Paulo foi ter com os Apóstolos a Jerusalém para discernir «se estava a correr ou tinha corrido em vão» (Gal 2, 2), o critério-chave de autenticidade que lhe indicaram foi que não se esquecesse dos pobres (cf. Gal 2, 10). Este critério, importante para que as comunidades paulinas não se deixassem arrastar pelo estilo de vida individualista dos pagãos, tem uma grande actualidade no contexto actual em que tende a desenvolver-se um novo paganismo individualista. A própria beleza do Evangelho nem sempre a conseguimos manifestar adequadamente, mas há um sinal que nunca deve faltar: a opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e lança fora.
O perigo de afogar-se no “mar de palavras” da sociedade da comunicação
199. (...) Isto implica apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo de ser, com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor autêntico é sempre contemplativo, permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou vaidade, mas porque ele é belo, independentemente da sua aparência: «Do amor, pelo qual uma pessoa é agradável a outra, depende que lhe dê algo de graça». [167]
Quando amado, o pobre «é estimado como de alto valor», [168] e isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos. Unicamente a partir desta proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los adequadamente no seu caminho de libertação. Só isto tornará possível que «os pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como “em casa”. Não seria, este estilo, a maior e mais eficaz apresentação da boa nova do Reino?» [169]
Sem a opção preferencial pelos pobres, «o anúncio do Evangelho – e este anúncio é a primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido ou de afogar-se naquele mar de palavras que a actual sociedade da comunicação diariamente nos apresenta».
“Economia e distribuição das rendas: A desigualdade é a raiz de todos os males”
202. A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar duma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias.
“Atacar as causas estruturais da desigualdade”
202. (segue) Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres,
“Renunciar à autônoma absoluta dos mercados”
202. (segue) renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, [173] não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.
“Discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral”
203. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política económica, mas às vezes parecem somente apêndices adicionados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram molestas para este sistema!
Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objecto duma manipulação oportunista que as desonra. A cómoda indiferença diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado.
“Não podemos mais confiar na mão invisível do mercado, nem recorrer a um novo veneno”
204. Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento económico, embora o pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição das entradas, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos.
206. A economia – como indica o próprio termo – deveria ser a arte de alcançar uma adequada administração da casa comum, que é o mundo inteiro. Todo o acto económico duma certa envergadura, que se realiza em qualquer parte do planeta, repercute-se no mundo inteiro, pelo que nenhum Governo pode agir à margem duma responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada vez mais difícil encontrar soluções a nível local para as enormes contradições globais, pelo que a política local se satura de problemas por resolver. Se realmente queremos alcançar uma economia global saudável, precisamos, neste momento da história, de um modo mais eficiente de interacção que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure o bem-estar económico a todos os países e não apenas a alguns.
Contra o “modelo do êxito individualista”
209. (...) Mas, no modelo «do êxito» e «individualista» em vigor, parece que não faz sentido investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na vida.
A Igreja não mudará sua posição sobre o aborto
214. E precisamente porque é uma questão que mexe com a coerência interna da nossa mensagem sobre o valor da pessoa humana, não se deve esperar que a Igreja altere a sua posição sobre esta questão. A propósito, quero ser completamente honesto. Este não é um assunto sujeito a supostas reformas ou «modernizações». Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana. Mas é verdade também que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma solução rápida para as suas profundas angústias, particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu como resultado duma violência ou num contexto de extrema pobreza. Quem pode deixar de compreender estas situações de tamanho sofrimento?
“Paz social” não é “irenismo” [alegriísmo]
218. A paz social não pode ser entendida como irenismo ou como mera ausência de violência obtida pela imposição de uma parte sobre as outras. Também seria uma paz falsa aquela que servisse como desculpa para justificar uma organização social que silencie ou tranquilize os mais pobres, de modo que aqueles que gozam dos maiores benefícios possam manter o seu estilo de vida sem sobressaltos, enquanto os outros sobrevivem como podem.
Reivindicações sociais têm a ver com distribuição de renda
218. (segue) As reivindicações sociais, que têm a ver com a distribuição das entradas, a inclusão social dos pobres e os direitos humanos não podem ser sufocados com o pretexto de construir um consenso de escritório ou uma paz efémera para uma minoria feliz. A dignidade da pessoa humana e o bem comum estão por cima da tranquilidade de alguns que não querem renunciar aos seus privilégios. Quando estes valores são afectados, é necessária uma voz profética.
Quatro princípios (do discurso)
1) “O tempo é superior ao espaço” (contra a obsessão por resultados imediatos)
222. Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite. A plenitude gera a vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que nos aparece pela frente. O «tempo», considerado em sentido amplo, faz referimento à plenitude como expressão do horizonte que se abre diante de nós, e o momento é expressão do limite que se vive num espaço circunscrito. Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai. Daqui surge um primeiro princípio para progredir na construção de um povo: o tempo é superior ao espaço.
2) “A unidade prevalece sobre o conflito”
226. O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado; deve ser aceitado. Mas, se ficamos encurralados nele, perdemos a perspectiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada. Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade.
227. Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e passam adiante como se nada fosse, lavam-se as mãos para poder continuar com a sua vida. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o horizonte, projectam nas instituições as suas próprias confusões e insatisfações e, assim, a unidade torna-se impossível. Mas há uma terceira forma, a mais adequada, de enfrentar o conflito: é aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo. «Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9)!
“Comunhão nas diferenças”
228. (...) Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste.
3) “A realidade é mais importante do que a ideia” (“contra os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projectos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria”).
231. Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma.
Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade é superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projectos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria.
4) “O todo é superior à parte”
Contra “os fogos de artifício do mundo de outros, com a boca aberta e aplausos programados”
234. Entre a globalização e a localização também se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra.
“Não é a esfera global que aniquila, nem a parte isolada que esteriliza”.
As duas coisas unidas impedem de cair em algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos vivam num universalismo abstracto e globalizante, miméticos passageiros do carro de apoio, admirando os fogos de artifício do mundo, que é de outros, com a boca aberta e aplausos programados; o outro extremo é que se transformem num museu folclórico de eremitas localistas, condenados a repetir sempre as mesmas coisas, incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que Deus espalha fora das suas fronteiras.
IV. O diálogo social como contribuição para a paz
238. A evangelização implica também um caminho de diálogo. Neste momento, existem sobretudo três campos de diálogo onde a Igreja deve estar presente, cumprindo um serviço a favor do pleno desenvolvimento do ser humano e procurando o bem comum: o diálogo com os Estados, com a sociedade – que inclui o diálogo com as culturas e as ciências – e com os outros crentes que não fazem parte da Igreja Católica. Em todos os casos, «a Igreja fala a partir da luz que a fé lhe dá», [186] oferece a sua experiência de dois mil anos e conserva sempre na memória as vidas e sofrimentos dos seres humanos. Isto ultrapassa a razão humana, mas também tem um significado que pode enriquecer a quantos não crêem e convida a razão a alargar as suas perspectivas.
“O evangelho da paz”
239. (...) Não precisamos de um projecto de poucos para poucos, ou de uma minoria esclarecida ou testemunhal que se aproprie de um sentimento colectivo. Trata-se de um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural.
Relações com o Islã
252. Neste tempo, adquire grande importância a relação com os crentes do Islão, hoje particularmente presentes em muitos países de tradição cristã, onde podem celebrar livremente o seu culto e viver integrados na sociedade. Não se deve jamais esquecer que eles «professam seguir a fé de Abraão, e connosco adoram o Deus único e misericordioso, que há-de julgar os homens no último dia». [198] Os escritos sagrados do Islão conservam parte dos ensinamentos cristãos; Jesus Cristo e Maria são objecto de profunda veneração e é admirável ver como jovens e idosos, mulheres e homens do Islão são capazes de dedicar diariamente tempo à oração e participar fielmente nos seus ritos religiosos. Ao mesmo tempo, muitos deles têm uma profunda convicção de que a própria vida, na sua totalidade, é de Deus e para Deus. Reconhecem também a necessidade de Lhe responder com um compromisso ético e com a misericórdia para com os mais pobres.
253. Para sustentar o diálogo com o Islã é indispensável a adequada formação dos interlocutores, não só para que estejam sólida e jubilosamente radicados na sua identidade, mas também para que sejam capazes de reconhecer os valores dos outros, compreender as preocupações que subjazem às suas reivindicações e fazer aparecer as convicções comuns.
Colher com afeto e respeito os imigrantes do Islã
Nós, cristãos, deveríamos acolher com afecto e respeito os imigrantes do Islão que chegam aos nossos países, tal como esperamos e pedimos para ser acolhidos e respeitados nos países de tradição islâmica. Rogo, imploro humildemente a esses países que assegurem liberdade aos cristãos para poderem celebrar o seu culto e viver a sua fé, tendo em conta a liberdade que os crentes do Islão gozam nos países ocidentais. Frente a episódios de fundamentalismo violento que nos preocupam, o afecto pelos verdadeiros crentes do Islão deve levar-nos a evitar odiosas generalizações, porque o verdadeiro Islão e uma interpretação adequada do Alcorão opõem-se a toda a violência.
Viver, não como inimigo que aponta o dedo: “fazê-lo com mansidão e respeito”
271. É verdade que, na nossa relação com o mundo, somos convidados a dar razão da nossa esperança, mas não como inimigos que apontam o dedo e condenam. A advertência é muito clara: fazei-o «com mansidão e respeito» (1 Pd 3, 16) e «tanto quanto for possível e de vós dependa, vivei em paz com todos os homens» (Rm 12, 18). E somos incentivados também a vencer «o mal com o bem» (Rm 12, 21), sem nos cansarmos de «fazer o bem» (Gal 6, 9) e sem pretendermos aparecer como superiores, antes «considerai os outros superiores a vós próprios» (Fl 2, 3). Na realidade, os Apóstolos do Senhor «tinham a simpatia de todo o povo» (Act 2, 47; cf. 4, 21.33; 5, 13). Está claro que Jesus não nos quer como príncipes que olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo. Esta não é a opinião de um Papa, nem uma opção pastoral entre várias possíveis; são indicações da Palavra de Deus tão claras, directas e contundentes, que não precisam de interpretações que as despojariam da sua força interpeladora. Vivamo-las sine glossa, sem comentários. Assim, experimentaremos a alegria missionária de partilhar a vida com o povo fiel de Deus, procurando acender o fogo no coração do mundo.
24/11/2013, Papa Francisco - Evangelii Gaudium [1] (Alegria de Evangelizar),
Exortação Apostólica [excertos]
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu
Nota de rodapé
[1] A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (Alegria de Evangelizar) do Papa Francisco, ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e aos fiéis leigos sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual, pode ser lida em português de Portugal.
http://redecastorphoto.blogspot.com.br