Quer dizer então que agora é fim de caso, entre o presidente dos EUA e o presidente do Afeganistão, Hamid Karzai? Se for, a transição será pacífica? Se não for, a que ponto chegará a violência? Perguntas terríveis brotam por todos os lados na paisagem política no Afeganistão.
A visita de fim-de-semana da Conselheira de Segurança Nacional dos EUA, Susan Rice, a Cabul parece só ter aprofundado a ravina que separa o governo Obama e Karzai, no que tenha a ver com a assinatura do Acordo sobre o Status das Forças [orig. State of the Forces Agreement, SOFA].
Karzai assumiu posição extremamente dura em entrevista à Radio Free Europe/Radio Liberty (RFERL), financiada pelos EUA, apenas poucas horas depois de Rice deixar Kabul. Reiterou suas condições para assinar o acordo SOFA. Não apenas não suavizou nenhuma de suas posições anteriores; dessa vez, converteu a interferência dos EUA nas eleições presidenciais afegãs em tema de campanha eleitoral; praticamente ameaçou que, a menos que essa interferência acabe completamente, virá a público para contar “detalhes”.
Karzai repetiu com destaque, várias vezes, que os EUA estão cuidando de promover sua própria agenda geopolítica, ao fixar bases militares no Afeganistão. E demarcou muito claramente uma linha de separação entre os interesses nacionais afegãos e a agenda geopolítica dos EUA.
Em tom excepcionalmente duro, Karzai acrescentou:
Depende dos norte-americanos, se ficam ou se partem. Ainda que assinemos mil acordos com eles, se as coisas não interessarem a eles, eles irão embora...
Impossível dizer mais claramente. Mas a parte mais contundente é Karzai ter dito, com todas as letras, que a guerra afegã está sendo manipulada para servir “interesses de outros”.
Karzai disse que:
Não estamos bloqueando interesses dos EUA ou de outras grandes potências. Mas exigimos que eles declarem que o Afeganistão é o lugar a partir do qual eles promovem seus interesses. Para continuar a fazer o que interessa a eles, eles têm de também considerar os interesses do Afeganistão.
Qual o sentido dessa espantosa entrevista? Bem... Antes de deixar Kabul na 3ª-feira, em entrevista ao canal afegão ToloTV, Rice disse que se o acordo SOFA não for assinado “prontamente”, os EUA “não terão escolha” além de começar a planejar a retirada de todos os soldados dos EUA e da OTAN hoje no Afeganistão. Karzai respondeu-lhe como se dissesse:
(...) eu sei que vocês não podem partir. Mas se dizem que estão de saída... por que não se vão?
Expôs a tolice de Rice, falou como se ela não existisse.
Contudo, é mais do que uma “reprimenda” verbal. É perfeitamente possível que diplomatas dos EUA estejam instigando a oposição a pressionar Karzai. Deputados afegãos próximos aos norte-americanos conclamaram Karzai a assinar o Acordo SOFA. Como acontece com frequência nesses casos, o candidato à presidência preferido dos EUA, Abdullah Abdullah (garoto-propaganda dos think-tanks e do establishment de Washington) disse que a posição de Karzai “gerou graves preocupações entre o povo afegão”.
Também o ex-presidente Sebghatullah Mujaddidi condenou fortemente Karzai:
Infelizmente, o presidente Karzai não vê os interesses nacionais do Afeganistão e está tentando impor sua visão e ideias pessoais erradas.
Mujaddidi é velho cavalo de guerra da jihad afegã, pashtun ambiciosíssimo, muito esperto e habilidoso, e tem laços fortes com Islamabad. Aliás, foi posto no poder em Cabul na primeira maré de vitória, pelos Mujahideen afegãos em abril de 1992, por ninguém menos que o então primeiro-ministro do Paquistão, Nawaz Sharif, pessoalmente. Sharif levou Mujaddidi a Mecca e de lá acompanhou-o a Cabul para promovê-lo como candidato à presidência.
A história pode repetir-se? Vistos os fatos em retrospectiva, terá Karzai errado ao pôr Mujaddidi para presidir a Loya Jirga? É possível que Karzai tenha perdido o controle da Loya Jirga para Mujaddidi e/ou seus montores no exterior? É fato também que Karzai tem falado de colusão de EUA e Paquistão.
De fato, a cena política afegã tem alta fluidez e os alinhamentos mudam muito rapidamente. Tudo pode acontecer nas semanas cruciais que virão. É inconcebível que os EUA simplesmente levantem acampamento e desistam da agenda de estabelecer suas bases militares (que são parte da estratégia de “reequilibramento” na Ásia).
As apostas são muito altas e há outros eventos em curso no Pacífico Asiático, depois de a China ter anunciado, no sábado, a criação de uma zona de defesa aérea. A operação de “cercar” a China não é viável, sem que os EUA controlem o Afeganistão. Por outro lado, Karzai é conhecido como atilado observador geopolítico e não há dúvidas de que avalia corretamente a importância das bases norte-americanas em território afegão e as intenções dos EUA.
A entrevista de Karzai deixa claro que ele já avaliou as próprias opções, se as forças dos EUA deixarem completamente o Afeganistão. Talvez tenha um Plano B. Está remando. É presidente legitimamente eleito, o que torna difícil a situação dos EUA – a menos que, nas semanas cruciais à frente, os EUA encontrem algum meio para cercar e contornar Karzai.
27/11/2013, MK Bhadrakumar, Indian Punchline
“High turbulence in Afghan politics”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Times Online, Strategic Culture, Global Research e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.
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