Todos sabíamos o que o presidente Mohamed Mursi diria ontem (3/11/2013), quando pela primeira vez enfrentou os juízes. E ele gritou: “Sou o presidente da República”.
A Corte pôs-se a uivar, dickensiana, e jornalistas egípcios – que jamais deixam de participar das próprias histórias – berravam contra Mursi e os seis co-acusados, repetidas vezes: “Executem todos! Executem todos!” em coro, e os policiais, alguns à paisana, outros uniformizados, uns fumando cigarro após cigarro, outros usando coletes à prova de bala, nada fizeram para pôr fim àquele circo monstruoso.
Talvez os policiais concordassem com seus próprios jornalistas, mas, a certa altura, os advogados de defesa da Fraternidade Muçulmana lutavam sobre os bancos da corte com jornalistas e policiais egípcios, enquanto Mursi e seus ex-camaradas – que se viam ali pela primeira vez, desde o golpe militar em julho – a tudo assistiam placidamente, de dentro da jaula com barras de ferro.
Seria fácil zombar desse tribunal-carnaval, os guardas judiciários pedindo silêncio à multidão de jornalistas e advogados, que parassem de se esmurrar e berrar, enquanto o ex-presidente do Egito – porque é o que ele é – lá ficava, num terno de trabalho, barbas grisalhas, vez ou outra abraçando um ou outro dos prisioneiros enjaulados, todos por trás das barras de ferro negro, num canto da sala de julgamento de paredes revestidas de madeira. Mas era só parte da tragédia egípcia pós-revolucionária, um presidente eleito julgado por crime de incitamento ao assassinato, acusação que – se for suficientemente provada ante o tribunal – pode custar-lhe a vida.
Ninguém acredita que chegue a tanto. Os jornalistas não estariam exigindo a cabeça do réu se supusessem que possa ser, mesmo, condenado à morte. Exatamente como o próprio Mursi não se teria declarado presidente do Egito se realmente acreditasse que seja.
Mas disso, desnecessário dizer, é do que trata essa audiência absolutamente sem precedentes – na mesma academia de polícia na qual Hosni Mubarak, o ditador que precedeu Mursi no governo do Egito, foi julgado: de se o Egito pós-revolucionário pode vir a ser democracia funcional, de se governos árabes podem representar as próprias nações inteiras – de se suas administrações podem ser “inclusivas” - como os ocidentais arrogantes os mandam ser – ou se o povo que lutou tão bravamente pela própria dignidade e liberdade tem, mesmo, de bater palmas em desiludido uníssono, ante mais um general.
Os augúrios, ontem, não foram bons. Os policiais do lado de fora estavam ótimos, comportamento exemplar. Apertavam mãos, sorriam muito, tomavam nossos passaportes e nossos celulares, nos devolviam cartões plásticos com números de identificação, nos levavam, em ônibus, até o Tribunal, respeitosamente reviravam pastas, livros, bolsas e sacolas. Só quando se chegava ao prédio do tribunal é que se via o que nos esperava: mais policiais. Centenas, ocupando todas as cadeiras das primeiras filas, das laterais, os assentos junto aos corredores de passagem e mais três dúzias deles apertados numa outra jaula de barras de ferro adjacente à do acusado, para o caso de Mohamed Mursi abrir asas de anjo e tentar voar dali.
Ninguém vira Mursi desde o golpe – ninguém; nunca mais fora visto em público – mas parecia em boa forma, talvez um pouco mais gordo, conversando animadamente com os colegas, vestidos em uniformes brancos de prisioneiros. Seu correligionário, Mohamed Beltagy, lá estava e via-se também Essam el-Arian, líder da Fraternidade, o qual, acho que foi ele – a aglomeração na sala tornava difícil identificar as pessoas – gritou que nenhuma corte criminal poderia julgá-lo, que a aquela audiência era “ilegal, injusta, ilícita, inconstitucional”. Seis dos prisioneiros permaneciam na academia de polícia desde a madrugada – Mursi chegou às 7h20 – e el-Arian repetia que haviam sido “torturados” e impedidos de ver seus advogados desde que foram presos.
Os próprios advogados reclamaram que não lhes deram tempo para preparar a defesa. Perguntaram por que policiais à paisana apareciam por trás do juiz com câmeras e por que tantos policiais só faziam fotografar os advogados que trabalhavam na defesa de Mursi e dos demais prisioneiros. O juiz Ahmed Sabri Youssef optou por não explicar quem seriam aquelas estranhas criaturas. Num dado momento, Mursi e seus colegas ergueram a mão fazendo o sinal de quatro dedos, da “Rabaa”, símbolo da Fraternidade na oposição, e exibiram retratos desenhados de um jornalista pró-Fraternidade que foi morto na Praça Tahrir. Foram vaiados por jornalistas egípcios e por alguns dos policiais. Em Nuremberg não teve disso.
O juiz leu o nome de Mohamed Mohamed Mursi – o nome do meio mostra que seu pai também se chamava Mohamed – e, claro, todos assistíamos àquele estranho julgamento, por causa dele. Ahmed Abdul-Ati, outro dos acusados, disse a repórteres, falando de dentro da jaula, que desde julho Mursi não falara com nenhum de seus advogados – motivo pelo qual o juiz Youssef saiu com espalhafato da sala, pela primeira vez, logo aos dez minutos. Via-se Mursi em ativa conversa com seus ex-colegas, provavelmente a primeira verdadeira reunião do banido Partido Liberdade e Justiça, desde o golpe. Mursi beijou as duas bochechas de um dos prisioneiros.
Quando interrompeu o juiz Youssef, a voz era forte e confiante. “Sou o Presidente da República”, declarou. “O golpe é um crime. Essa corte é responsável por esse crime. Tudo que está acontecendo aqui visa a dar cobertura ao golpe. É uma tragédia que o grande judiciário do Egito tenha de dar cobertura ao golpe”. E quando a plateia respondeu com berros – ainda se ouvia a voz de Mursi dizendo que “não se deixem enganar. Isso aqui só serve aos interesses do inimigo externo...”
Mursi disse outras coisas, difíceis de entender, porque sua voz era frequentemente encoberta por gritos. Disse que respeitava os membros da corte, mas que a corte não tinha direito constitucional de julgar um chefe de Estado. “Sou o presidente do Estado, e estou detido contra minha vontade”. Essa é a razão pela qual insistia que ainda é o presidente; porque, se não fosse, então a corte teria perfeito direito de julgá-lo.
Que Mursi lutou, lutou. Quando subiram o volume do microfone do juiz, para encobrir as palavras de Mursi, ainda se ouvia a voz dele: “Deem-me algo (um microfone) para que eu possa falar a vocês”. “Agora, não!”, o juiz respondeu sem pausa.
Se alguma corte pode expor as divisões de uma nação, aquela expôs. Mursi pode até ter razão para opor-se à realização daquela audiência, mas, infelizmente, muita gente acredita piamente que não poderia jamais ter sido eleito, que jamais agiu como presidente e que foi deposto quando já estava em desgraça, em julho passado, porque planejava um golpe próprio, só dele.
Do lado de fora da academia de polícia, uma vasta cidade de policiais onde antes havia o deserto em torno de Maadi, a tropa de choque carregava as armas com granadas de gás, à frente de centenas de manifestantes apoiadores de Mursi. Uma gangue de militantes armados – apoiadores da junta militar – começou a perseguir homens que corriam para todos os lados, no estacionamento. Julgamento adiado, como se diz. Até dia 8 de janeiro. Feitas as contas, foi dia dos mais desgraçados.
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4/11/2013, [*] Robert Fisk, The Independent, UK
“Morsi trial: If a court can exemplify the divisions of a nation, this one did for Egypt”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
[*] Robert Fisk é filho de um ex-soldado britânico da Primeira Guerra Mundial, Robert Fisk estudou jornalismo na Inglaterra e Irlanda. Trabahou como correspondente internacional na Irlanda - cobrindo os acontecimentos no Ulster - e Portugal. Em 1976, foi convidado por seu editor no The Times para substituir o correspondente do jornal no Oriente Médio. Fisk trabalhou para The Times até 1988, quando se mudou para The Independent - após uma discussão com seus editores sobre modificações feitas em seus artigos, sem seu consentimento.
Fisk cobriu a guerra civil do Líbano, iniciada em 1975; a invasão soviética do Afeganistão, em 1979; a guerra Irã-Iraque (1980-1988), a invasão israelense do Líbano, em 1982), a guerra civil na Argélia, as guerras dos Balcãs e a Primeira (1990-1991) e a Segunda Guerra do Golfo Pérsico, iniciada em 2003. Fisk notabiliza-se também pela cobertura ao conflito israelo-palestino. Ele é um defensor da causa palestina e do diálogo entre os países árabes, o Irã e Israel.
Considerado como um dos maiores especialistas nos conflitos do Oriente Médio, Fisk contribuiu para divulgar internacionalmente os massacres na guerra civil argelina e nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano; os assassinatos promovidos por Saddam Hussein, as represálias israelenses durante a Intifada palestina e as atividades ilegais do governo dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque. Fisk também entrevistou Osama bin Laden, líder da rede terrorista Al-Qaeda (em 1993, no Sudão, em 1996 e em 1997, no Afeganistão).
Robert Fisk é o correspondente estrangeiro britânico mais premiado. Recebeu o Prêmio Correspondente Internacional Britânico do Ano sete vezes (as últimas em 1995 e 1996). Também ganhou o Prêmio à Imprensa da Anistia Internacional no Reino Unido em 1998 e 2000.
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