(...) e o papel de Al Gore, o “ecológico” que Marina Silva adora!
Em novembro de 1994, dois anos de incompetência do governo Clinton, de promessas quebradas e de manifesto desprezo por sua base tradicional, afinal cobraram seu preço. Nas eleições de meio de mandato, os Republicanos ganharam maioria nas duas Casas, na Câmara de Representantes e no Senado pela primeira vez desde a era Eisenhower. E a avançada atingiu também governos estaduais por todo o país, quando os Republicanos alcançaram a maioria dos estados, pela primeira vez em 25 anos. Newt Gingrich, novo presidente da Câmara de Representantes, passou a ser tratado como novo menino prodígio político dos EUA.
Mas, para Bill Clinton, a derrota dos Democratas trouxe, paradoxalmente, alguns benefícios. A velha guarda dos Democratas no Congresso perdeu espaço no Capitólio. Tom Foley e Dan Rostenkowski saíram de cena no mesmo passo – um, devolvido ao Império do Meio do Noroeste do país, no Pacífico; o outro, diretamente para uma penitenciária federal. A Casa Branca viu sumir a hostilidade contra sua agenda, que lhe vinha dos Democratas orientados pelo New Deal. Sem a ameaça de um veto presidencial que desse força à resistência deles, os Democratas liberais no Capitólio eram impotentes contra os Republicanos, que começavam a promover seu “Contrato com os EUA” [orig. Contract with America [1]]. Liberto de deveres partidários, o governo Clinton podia afinal fazer acordos com a liderança Republicana.
Essa estratégia carecia, apenas, de uma cara nova. Logo depois da eleição, Bill Clinton tirou do bolso do colete o homem que introduziria a palavra “triangulação” [2] no vocabulário político do final dos anos 1990s.
Dick Morris, homem de escrúpulos políticos elásticos, mantinha há anos uma relação flutuante com Clinton. Fora quem resgatara o jovem governador do Arkansas, depois de seu primeiro revés nas urnas em 1980. Depois daquilo, Morris serviu a inúmeros senhores – de Howard Metzenbaum (milionário socialista de Ohio) a Bella Abzug, de New York, Trent Lott, do Mississippi (“Adoro o estilo dele, de meter o pé na merda”) e Jesse Helms da Carolina do Norte. Morris trabalhara como consultor político [no Brasil se diz “marketeiro”] de Helms em 1990, numa campanha particularmente violenta, em que Helms concorria contra Harvey Gantt, desafiante Democrata, negro. [3]
Morris chegou à Casa Branca como fonte de novas ideias e de uma nova estratégia. Contou que Clinton lhe disse “Perdi a confiança na minha atual equipe”. Morris começou sua missão de renovação trabalhando sob sigilo, sob o codinome “Charlie”. De início, só os Clintons sabiam o que ele fazia lá. Seu conselho: tire o fôlego dos Republicanos, reduza o déficit, reforme o estado do bem-estar, corte as regulações sobre os negócios e “use o programa de Al Gore de ‘reinventar o governo’, para reduzir o tamanho do setor público”. O presidente teria de mostrar firmeza, ser assertivo – Morris aconselhou –, com ação decisiva em países de além-mar.
Quando a nova liderança Republicana assumiu, em janeiro de 1995, Clinton chamou Gore, revelou-lhe a existência e a missão de Morris e deu instruções para que o vice-presidente passasse a trabalhar com ele. “Charlie” então construiu a nova agenda de Gore. Adiante, Morris escreveu:
Ele imediatamente percebeu o que eu lhe dizia e ofereceu apoio total. Gore contou-me que tinha dificuldades cada vez maiores para lidar com as mudanças na Casa Branca. Disse que tentara, em vão, empurrar o governo para o centro, mas o pessoal da Casa Branca o impedira. Disse-me que “Precisamos de mudança, grande mudança. E espero e peço a Deus que você seja o homem da mudança”. Selamos nossa aliança com um aperto de mãos.
Rapidamente Morris, Gore e Clinton tomaram duas decisões fatídicas. Como parte da estratégica para tirar o fôlego dos Republicanos, Morris falou da necessidade de levantar dinheiro, muito dinheiro –“soft money” – para pagar a produção e a veiculação de spots de propaganda de TV que promoveria a nova agenda de Clinton, atropelaria os Republicanos e modificaria a velha pauta dos Democratas. Falava-se então de soft money, essa denominação tão pouco adequada, porque se tratava de dinheiro que podia ser arrecadado fora das limitações demarcadas pelas leis das campanhas eleitorais; era dinheiro que podia ser buscado diretamente das empresas, sindicatos e todas e quaisquer instituições, desde que fosse dinheiro a ser usado para promover “questões”, não algum candidato ou partido específico. Ou era assim, pelo menos, que se esperava que a lei do soft Money funcionasse.
Morris sabia muito bem que os spots sobre “questões” seriam associados diretamente à imagem de Clinton – porque tratariam de temas que Morris já listara. Para produzir os tais spots de publicidade, Morris e Gore aproximaram-se de Bob Squier, há muito tempo assessor de imprensa de Gore. Pela estrada assim construída passariam vários grandes escândalos de arrecadação de dinheiro, um dos quais foi o “escândalo dos monges”, quando o nome de Al Gore foi encontrado na lista de recebedores de milhares de dólares doados por monges e freiras que, supostamente, viveriam sob voto de pobreza. Mas isso só aconteceria dali a um ano.
Naquele momento tratava-se de levar a nova linha à opinião pública. Morris redigiu um discurso para Clinton no qual o presidente anunciaria que estava pronto a começar a trabalhar com os Republicanos. Preparou o caminho que o presidente trilharia, para encontrar-se com Newt Gingrich. Dentro da Casa Branca, houve uma tempestade de protestos, liderados por Leon Panetta, chefe de gabinete de Clinton e congressista pela Califórnia, indignado com o que interpretava, acertadamente, como uma traição aos seus ex-colegas no Capitólio.
Panetta expôs ao presidente o que pensava e Clinton começou a concordar com ele. Morris pressentiu a crise. No momento crucial – ele mesmo conta – Gore, que permanecera silencioso durante todo o debate, fez uma intervenção crucial. “Concordo com o diz Dick, que temos de sair das sombras e nos impor no centro do debate com os Republicanos, articulando o que aceitaremos e o não aceitaremos, de modo claro e independente”. Soou como música aos ouvidos de Morris, que gritou “Bravo!”.
Para Morris, como para Clinton, as pesquisas eram tudo. Morris desenvolveu o que chamava de “perfil neuro-psicológico” do eleitor norte-americano, e fixou uma regra inalterável, segundo a qual a Casa Branca jamais tomaria qualquer iniciativa a menos que as pesquisas mostrassem aprovação de, no mínimo, 60%. Com pesquisas e mais pesquisas, construiu o que chamava de “agenda de valores”. No topo da lista aparecia a “ação afirmativa”. “Reforme. Jamais extinga coisa alguma” – dizia o mantra que, na prática, ensinava a destruir de dentro para fora qualquer ação afirmativa, sem parar de jurar fidelidade ao princípio geral.
Em seguida, veio a violência: intimidar as redes de televisão, Morris recomendava, adotando um sistema “voluntário” de ratings para filmes e programas de televisão.
Passo seguinte, os executivos da mídia foram convocados à Casa Branca, para reunião com Clinton e Gore. Clinton fez aprovar a lei que mandava instalar o chamado V-chip em todos os novos aparelhos de televisão, que permitiria aos pais bloquear material considerado ofensivo. Em seguida, começou a campanha contra a gravidez na adolescência, questão introduzida e pautada pela Casa Branca dos Clinton.
Educação: atacar sem parar os professores contratados, tema cada vez mais popular nos grupos focais que Morris pesquisava. Exigir que, no mínimo, os professores contratados passem por testes de admissão.
Jovens: advogar o uso de uniformes e de toques de recolher para adolescentes. Casamento de pessoas do mesmo sexo: aconselhados por Morris, Clinton e Gore abraçaram a Lei de Defesa do Casamento [orig. Defense of Marriage Act], lei que impede preventivamente o reconhecimento por lei federal de qualquer tipo de casamento gay.
Imigração: as pesquisas mostravam tendência clara, e a Casa Branca de Clinton, correspondentemente, decidiu duplicar o número de pedidos rejeitados no Serviço de Imigração e Naturalização – e, dentre outras medidas, ordenar que o Departamento do Trabalho ajudasse a dobrar o número e a abrangência de raids de fiscalização em locais de trabalho.
Impostos: Morris acreditava que a classe média norte-americana aplicava dinheiro no mercado; assim sendo, uma lei que reduzisse 20% nos impostos seria imensamente popular.
Mas duas questões sobrepujavam todas as demais no assalto que Morris coordenou para dominar a opinião pública: estado do bem-estar e crime. Na campanha de 1992, Clinton prometera “pôr fim ao estado assistencialista como o conhecemos”. Em 1993, Gore insistira com Clinton para que declarasse guerra ao estado de bem-estar como parte de seus primeiros 100 dias; e suplicara que o presidente o deixasse liderar o ataque. Afinal, Gore argumentou, ele era dos poucos senadores Democratas que apoiara uma lei para “sair da assistência e voltar ao trabalho”, aprovada por mínima margem de votos em 1988, que obrigava pais e mães que recebessem salário-assistência a trabalhar pelo menos 16 horas por semana em empregos não remunerados. Mas Hillary entendeu que qualquer ataque ao estado do bem-estar desviaria energia necessária para aprovar seu “pacote da saúde”, e Gore perdeu a batalha.
Em 1995, o número de dependentes do estado de bem-estar estava diminuindo, de um pico de 18 milhões na recessão de 1991, para cerca de 12,8 milhões. Defensores do sistema, no gabinete de Clinton, o Secretário do Trabalho, Robert Reich e Donna Shalala de Saúde e Serviços Humanos, argumentavam que o orçamento total para Ajuda a Famílias com Crianças Dependentes era uma mínima fração do orçamento federal; de fato, não passava de 14 % do total dedicado a Medicare, programa para a classe média. O verdadeiro problema, diziam eles, seria a falta de formação para os subempregados e desempregados crônicos.
Hostil por reflexo ao estado de bem-estar e fortalecido pelas pesquisas de Morris, Clinton pressionou. O governo pôs-se a emitir sinais para os estados de que estariam livres para implementar massacres localizados contra os direitos do estado de bem-estar, impondo condicionantes à força de trabalho, limites de tempo e “restrições familiares”, um castigo imposto a mulheres que ousassem ter mais que o número de filhos aprovado pelo governo e que o estado ajudaria a manter.
De 1995 ao início de 1996 [4] os Republicanos aprovaram e enviaram para sanção de Clinton duas leis que desmantelavam o sistema federal de bem-estar. Ele vetou ambas, mas na mensagem em que comunicava o veto, declarava que concordava, em princípio, com boa parte do conteúdo das leis. Para Edelman, alto funcionário da secretaria de Saúde e Serviços Humanos, Clinton teria “sacrificado uma posição para obter o ponto” [orig. (baseball) squeeze play]: Clinton obteria a simpatia dos Democratas pró New Deal por ter ficado do lado das crianças pobres, ao mesmo tempo em que sinalizaria que, no longo prazo, excluiria as mães daquelas crianças da ajuda do Estado.
Quando se aproximava a convenção dos Democratas no verão de 1996, Clinton navegava sobre o tapete mágico de Morris. Ajudado pela violência de Gingrich e por um adversário fraco (Bob Dole), Clinton tinha vantagem de 27% dos votos nas pesquisas. Os Republicanos estavam ansiosos para concluir o trabalho legislativo antes das convenções de julho e agosto. E aprovaram uma lei de bem-estar ainda mais dura que as duas que Clinton vetara antes. Muitos Democratas no Capitólio acreditaram que Clinton vetaria também essa lei. Mas o senador Daniel Patrick Moynihan de New York tinha antenas políticas mais sensíveis. Avisou que “ouvi que os líderes do gabinete recomendaram o veto, mas o presidente segue o que lhe dizem suas pesquisas”.
Dia 30/7/1996, Clinton reuniu o gabinete para ouvir argumentos sobre se devia ou não assinar a lei dos Republicanos. Um após o outro, seus conselheiros lhe disseram que não assinasse. Era a opinião esperada de gente como Shalala e Reich. Mas era também a opinião, ali, não só de Leon Panetta, mas também de Laura Tyson, sua principal conselheira econômica; de Henry Cisneros e até do Secretário do Tesouro, Robert Rubin, que disse que muita gente seria atingida pela lei e que vetá-la seria gesto de coragem política.
Sem confiar no departamento de Shalala para produzir avaliações objetivas das consequências daquela lei, a equipe da Casa Branca encomendara um estudo ao Urban Institute, um think tank de Washington. Os números eram terríveis. A lei empurraria para pobreza ainda maior cerca de 2,6 milhões de pessoas – 1,1 milhão das quais, crianças. No total o instituto previa que 11 milhões de famílias perderiam renda. Isso, no melhor cenário. Se sobreviesse uma recessão (que veio em 2001), os números seriam muitíssimo piores. Nessa fatídica reunião do gabinete, Rubin invocou esse estudo, e os números pareceram impressionar Clinton. Gore permaneceu mudo.
Encerrada a reunião, Clinton, Panetta e Gore foram para o Salão Oval para reunião privada. Todos os relatos coincidem: primeiro, Panetta repetiu os argumentos a favor do veto, lembrando que a lei negava ajuda federal a imigrantes legais (inclusive bônus de alimentação). Gore, afinal, se manifestou. E convenceu Clinton a assinar.
Clinton, Morris e Gore prepararam uma declaração à imprensa, que o presidente leu mais tarde, no mesmo dia. Clinton admitia que a lei continha “falhas sérias”, mas disse que “É a melhor chance que teremos, em muito tempo, para completar o serviço de pôr fim ao estado “assistencialista” como o conhecemos”. Nenhum jornalista, naquela conferência de imprensa questionou Clinton sobre esse estranhíssimo raciocínio. Afinal, faltavam apenas três meses para as eleições. No início do outono de 1996, era claro que os Democratas tinham chance de reconquistar a maioria na Câmara de Representantes. Essa reconquista não seria a garantia necessária de que seria possível construir uma lei de bem-estar não contaminada por Gingrich e outros?
Até hoje, muitos Democratas no Congresso discutem o que Clinton e Gore fizeram naquele dia. Na véspera de uma convenção Democrata, com Gingrich já petrificado na imaginação nacional como “O Mal”, Clinton aliou-se a ele, fechando qualquer possibilidade de fazer campanha contra o Congresso de Gingrich. Quanto a Al Gore, o consenso é que olhava à frente, para uma possível disputa contra seu velho rival Dick Gephardt. Com as pesquisas de Morris indicando que um ataque ao “assistencialismo” ultrapassava os 60% de aprovação, Gore levaria vantagem sobre Gephardt ou qualquer outro liberal da “esquerda”.
As suspeitas contra Gore cresceram ao longo da campanha de outono. O presidente e o vice-presidente argumentavam que seria crucialmente importante que fossem reeleitos, para que pudessem corrigir as falhas de uma lei... que acabavam de assinar! Os problemas não eram tanto a lei propriamente dita, mas o fim dos serviços federais para imigrantes legais e um corte no programa dos bônus para alimentação. Em outubro de 1996, com a eleição presidencial já garantida, candidatos Democratas acorriam ao Comitê Nacional Democrata, pedindo urgentes reforços de caixa de campanha para as cruciais semanas finais. Por fim, o senador Christopher Dodd de Connecticut, então presidente do Comitê Nacional Democrata, organizou uma reunião com Clinton e Gore. Dodd explicou que os dois estavam com a eleição garantida e havia boa chance de reconquistar a maioria na Câmara de Representantes. Clinton parecia favorável à distribuição de dinheiro. Gore discordou intransigentemente. Segundo um dos relatos disponíveis, Gore seria a única pessoa na Casa Branca que se opunha à transferência de fundos, da campanha presidencial para as campanhas de candidatos a deputado. Boa medida para saber-se como muitos Democratas viam Al Gore é que vários participantes daquela reunião saíram de lá convencidos de que a única explicação para sua conduta era que ele não queria que os Democratas reconquistassem a maioria, porque a vitória poria Gephardt na presidência da Câmara.
A imoralidade pode ter sido ainda maior. Por que Clinton e Gore decidiram assinar aquela terceira lei de bem-estar redigida pelos Republicanos? A única diferença marcante, em relação às leis anteriores, estava na forma como os serviços federais seriam negados aos imigrantes legais e num corte de $2,5 bilhões no programas de bônus para alimentação. É provável que esses dois cripto-Republicanos planejassem “usar” a Casa Branca, porque (como comentado acima), Clinton poderia então aproximar-se dos “liberais” de esquerda, dizendo que precisavam dele se quisessem ser reeleitos; assim Clinton “corrigiria” o dano causado pela lei... que acabava de assinar.
Partidos religiosos: as “organizações de fé”
A lei do fim do estado de bem-estar extinguiu a contribuição federal que foi a pedra angular do New Deal. Limitou a contribuição federal aos programas do bem-estar a $14,6 bilhões ao ano e passou a entregar o dinheiro em bloco aos estados, para que o distribuíssem como considerassem melhor. A principal exigência era que os estados concordassem com impor uma limitação ao prazo durante o qual os beneficiários receberiam a ajuda: no máximo cinco anos, ao longo de toda a vida (e a lei admitia que os estados impusessem outras restrições mais severas). E, no velho sistema, o benefício do estado do bem-estar chegava aos beneficiários diretamente, em dinheiro. Pelo novo sistema, os estados podiam passar o dinheiro a intermediários para que o convertessem em outros serviços, como moradia ou comida. Al Gore gostou muito dessa possibilidade legal.
Em Atlanta, em maio de 1999, ele explicou por quê:
Permite-se assim que organizações de fé ofereçam serviços básicos de bem-estar. Podem fazê-lo com fundos públicos – sem ter de alterar seu caráter de organização religiosa, que tantas vezes é fator decisivo para a efetividade. Devemos ampliar essa abordagem também ao tratamento de drogados, sem-tetos e para prevenir a violência entre jovens. Os trabalhadores de organizações baseadas em valores e na fé são movidos pelo compromisso espiritual. Fazem o que nenhum estado jamais saberá fazer: garantem atenção com compaixão. Beneficiários de serviços, para as organizações religiosas, não são números: são filhos de deus.
Em outras palavras: os serviços providos pelo estado de bem-estar passariam a ser administrados como bolsas de estudo, distribuídos por sistema semelhante. Gore assim estendeu o tapete de boas vindas para os “partidos religiosos” que surgiriam logo depois, com Bush.
Pouco depois de Clinton ter assinado a lei do fim do estado de bem-estar, começaram os protestos, primeiro com o senador Moynihan, que começara a prestar serviços ao estado nos anos 60s, com sermões sobre a “patologia” das famílias negras; e que agora, estranhamente, defendia o mesmo sistema que vivera anos a combater. Pois até esse homem que servia a muitos patrões estava chocado:
É risco social que ninguém que esteja em seu juízo perfeito assumiria. Falo sério. Se vocês querem que as coisas piorem, esperem até ver 300 mil pessoas na rua. Isso não é reformar o estado de bem-estar; é rejeitá-lo completamente.
Hugh Price, presidente da National Urban League, classificou a lei como “uma abominação para as mães e crianças mais vulneráveis dos EUA”. E acusou Clinton, Gore e o Congresso de terem abandonado a guerra contra a pobreza para, em vez dela, fazerem “guerra de morte aos pobres”.
No espaço de semanas, três altos funcionários do Departamento de Saúde e Serviços Humanos demitiram-se: Mary Jo Bane, Walter Primus e Peter Edelman. E foi só. Ao longo de todo o governo Clinton, só três funcionários levantaram-se, por princípio, contra o governo afastar-se do projeto do New Deal e virar-se contra os pobres norte-americanos. Desde então, Edelman não perde oportunidade de denunciar aquela lei de Clinton como golpe de ataque contra norte-americanos indefesos.
A lei fecha os olhos a todos os fatos e complexidades do mundo real e, de fato, diz aos pobres: tratem de arranjar emprego.
A ordem para “encontrar emprego” era componente essencial da lei e da mitologia alimentada pelos adversários do estado de bem-estar – de que beneficiários do estado de bem-estar, com condições de trabalhar, estariam abusando do sistema. Claro que algum abuso sempre há, mas inúmeros estudos mostraram que os beneficiários do estado de bem-estar buscavam empregos e não encontravam; ou que se mantinham no programa apenas por algum tempo, encontravam emprego e deixavam voluntariamente o programa.
Em 1999, estudo da University of Michigan que avaliou o quadro três anos depois de a lei de Clinton ter entrado em vigência, constatou que as populações atendidas pelos programas enfrentavam “barreiras extraordinariamente altas para conseguir emprego: problemas de saúde física e mental, violência doméstica e falta de transportes”. Mais de 30% das famílias ainda assistidas pelo estado do bem-estar enfrentavam dificuldades, por deficiência física, crianças doentes, falta de creches ou parente idoso dependente. Os que desejam trabalhar enfrentam a falta de opções, mesmo numa economia em fase de semi-boom. Em 1996, o Gabinete de Orçamento do Congresso mostrava algumas realidades sombrias sobre o exército de reserva de desempregados. Com o desemprego oficial em torno de 4% (a taxa não oficial é praticamente o dobro dessa, porque os números do governo não incluem os que já desistiram de procurar emprego), há ainda 3-5% da população que busca trabalho, para cada posto de trabalho existente. Nos anos da recessão no governo Bush, essa proporção subiu para mais de 10:1. (...)
Em sua campanha de 2000, Al Gore falou do que chamava “Welfare Reform 2” [Reforma 2 do Estado de Bem-estar], dizendo que havia muito a fazer. Atacou com especial veemência os pais que viviam dos programas de apoio a crianças, ameaçando que as empresas de crédito muito facilmente poderiam negar crédito a esses pais. Seria mais um movimento, de um programa iniciado por Janet Reno quando governou a Flórida, pelo qual os pais endividados teriam suspensas as licenças para dirigir, o que os impedia de dirigir para ir ao trabalho. Em 1995, Clinton, Gore e Morris implantaram uma operação pela qual pais endividados tinham fotos expostas nas agências de Correios, tinham os benefícios sociais suspensos e a Receita Federal passava a visitá-los com frequência. Esse padrão, pelo qual se criavam “condenações” administrativas, sem processo judicial e sem qualquer tipo de mandato judicial, é perfeitamente harmônico com o pensamento de Clinton/Gore sobre a ação policial e o crime.
A lei criminal que Bill Clinton sancionou em 1994 criou a pena de prisão perpétua “automática” para pessoas condenadas três vezes em alguns tipos de crime. Manteve a desproporção de 100/1 nas sentenças por crime de tráfico de cocaína em pó e em pedra [“crack”], mesmo depois de a Comissão de Sentença dos EUA ter concluído que a disparidade era critério racista. Aumentou para 50, o número de crimes que poderiam levar à pena de morte em corte federal, incluindo crimes sem morte – a maior ampliação do alcance da pena de morte, de toda a história. As bolsas Pell, que abriam para prisioneiros uma via pela qual podiam chegar à universidade, foram canceladas. Os juízes federais perderam a prerrogativa de garantir direitos constitucionais aos prisioneiros e foi reduzida a capacidade dos estados para definir padrões de punição para crimes que envolvessem drogas.
O corte dos direitos dos estados foi ainda maior. Subsídios para novas prisões incluíam a exigência de que, para liberação do dinheiro, os estados aprovassem leis pelas quais nenhum prisioneiro seria libertado sem ter cumprido, no mínimo, 85% da sentença. Esses prisioneiros, não se deve esquecer, haviam sido condenados por cortes estaduais, não federais; a exigência implicava, pois, de fato, uma chantagem federal para que os estados suspendessem qualquer legislação sobre liberdade condicional. O governo Clinton também pressionou os estados para que aprovassem leis pelas quais acusados menores de idade fossem julgados como adultos. Coube a Al Gore articular a posição do estado:
Quando adolescentes cruzam a linha, têm de ser punidos. Quando adolescentes cometem crimes sérios, violentos, devem ser processados como adultos.
Condenados por crimes não violentos eram enviados para campos de reeducação. Nunca, é claro, os próprios filhos de Gore, que jamais foram condenados, apesar de acusados de crimes não violentos, como fumar maconha e portar garrafas de bebida alcoólica no carro.
O governo Clinton/Gore atacou com particular empenho a 4ª Emenda, que protege cidadãos contra excessos em revistas e detenções. Em 1994, conseguiram fazer aprovar uma lei que obriga todas as empresas provedoras de serviços de comunicação a entregar ao Estado todas as telecomunicações presentes e futuras de seus clientes. Também é ideia do governo Clinton/Gore o chamado “Clipper Chip”, uma ferramenta de encriptação de mensagens cujo uso facilita a operação de espionar mensagens privadas, que muito interessava à polícia e às agências de inteligência.
O mais violento golpe que o governo Clinton conseguiu contra a Carta dos Direitos [orig. Bill of Rights] aconteceu em 1996, com a lei chamada “Counter-Terrorism and Effective Death Penalty Act” [Lei de Contraterrorismo e Pena de Morte Efetiva], a qual, dentre outros horrores, passou a permitir a deportação de imigrantes sem o devido processo legal, e que negava a prisioneiros condenados o direito de requerer habeas corpus em cortes federais.
Quando historiadores escreverem a história das liberdades civis no século 20, disse Ira Glasser, presidente da American Civil Liberties Union (ACLU), dirão que o governo Clinton adotou uma agenda que tinha tudo a ver com enfraquecer os direitos humanos e nada a ver com combater o terrorismo (...).
Onde não há programa social, sempre há programa de violência. Para o governo Clinton/Gore, a reforma do estado de bem-estar e a expansão do estado policial não foram apenas meios para derrotar os Republicanos; foram também essenciais para a política econômica. Competição feroz por empregos nas faixas de salário mais baixo permitiria reduzir salários, o que lançaria os pobres uns contra os outros.
O espectro e a realidade do encarceramento teriam o tradicional efeito de suprimir as “classes perigosas”, num momento em que a diferença salarial entre os ricos e os pobres foi a maior de toda a história recente dos EUA.
9-11/8/2013, [*] Jeffrey St. Clair e Alexander Cockburn, Counterpunch
“Welfare Reform and an Ever-Expanding Police State: The Origins of the Neoliberal War on the Poor” [**]
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
[*] Jeffrrey St. Clair é autor de Been Brown So Long It Looked Like Green to Me: the Politics of Nature, Grand Theft Pentagon e Born Under a Bad Sky. Seu livro mais recente é Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
[*] Alexander Cockburn pouco antes de falecer nos deixou um livro de memórias: A Colossal Wreck (Verso) disponível no site CounterPunch.
[**] Ensaio adaptado de Dime’s Worth of Difference, de Alexander Cockburn e Jeffrey St. Clair.
Notas dos tradutores
[1] O Contract with America foi documento lançado pelo Partido Republicano durante a campanha para eleições parlamentares em 1994. Redigido por Newt Gingrich e Richard Armey, e usando parte do texto do discurso “Estado da União” do ex-presidente Ronald Reagan em 1985, as ideias ali reunidas deram origem à Heritage Foundation, hoje um think-tank conservador.
[2] Pode-se ler sobre a palavra “triangulação” nesse específico sentido em português (embora só no campo raso da marketação).
[3] Dick Morris é o publicitário e “marketeiro político” criador do spot “White Hands” [Mãos brancas], exibido na TV, como peça da campanha eleitoral de Jesse Helms, contra as quotas “raciais”, de Ted Kennedy. Veem-se mãos brancas que amassam uma carta, pela qual um desempregado branco recebeu a informação de que fora preterido, no emprego ao qual se apresentara; para aquele emprego fora selecionado um trabalhador negro. É considerado o spot político mais declaradamente racista da história das campanhas eleitorais nos EUA, já convertido em “clássico” do racismo suprematista branco e sempre, relembrado. Pode ser visto a seguir (em inglês):
[4] Lembrar: Fernando Henrique Cardoso, do PSDB é o mais empenhado “clintonista” que o mundo jamais viu; chegou à presidência do Brasil dia 1/1/1995. 15 dias antes, dia 15/12/1994, pronunciara em Brasília o famigerado “Discurso de Despedida do Senado”, no qual “convocava” o Brasil a “pôr fim à era Vargas, ao que restou dela” – movimento absolutamente idêntico e simultâneo ao assalto que, nos EUA, Clinton comandava contra o “estado de bem-estar”. O discurso do ex-FHC parece já ser hoje TOTALMENTE inencontrável na Internet. Mas a foto-caricatura no início deste ensaio ilustra, talvez até melhor que o “Discurso”, a subserviência do ex-presidente àquele que mais cruelmente golpeou o “estado de bem-estar” social nos EUA.
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