Obama prepara seus Santos Tomahawks

A doutrina da “responsabilidade de proteger” [orig. responsibility to protect (R2P)] invocada para legitimar a guerra de 2011 contra a Líbia acaba de metamorfosear-se em “responsabilidade de atacar” [orig. “responsibility to attack'” (R2A)] a Síria. Só porque o governo Obama disse.

No domingo, a Casa Branca disse que tinha “muito pouca dúvida” de que o governo de Bashar al-Assad usara armas químicas contra seus próprios cidadãos. Na 2ª-feira, o secretário de Estado aumentou para certeza “inegável” – e acusou Assad de “obscenidade moral”.

Implica que quando os EUA bombardearam Fallujah com fósforo branco no final de 2004 seria bombardeio moral. E quando os EUA ajudaram Saddam Hussein a atacar os iranianos com gás em 1988, teria sido gaseificação moral.

O governo Obama resolveu que Assad recebeu os inspetores de armas químicas da ONU na Síria e em seguida, para comemorar a chegada deles, desfechou ataque com armas químicas contra, na maior parte, mulheres e crianças, a apenas 15 km do hotel onde os inspetores estavam hospedados. Se você não acredita, é porque embarcou em teorias conspiratórias.

Provas? E quem precisa de provas? A autorização que Assad deu aos inspetores veio “tarde demais”. Além do mais, a equipe da ONU só tem mandado para determinar quais armas químicas foram usadas – mas não quem as usou – como disse o porta-voz de Ban Ki-moon, Secretário-Geral da ONU.

No que tenha a ver com o governo Obama e com o primeiro-ministro da Grã-Bretanha, David “das Arábias” Cameron – apoiados numa barragem de mísseis da imprensa-empresa – nada disso importa. Assad invadiu a “linha vermelha” de Obama. E ponto final. Washington e Londres estão em modo frenesi-sem-limites para desmentir qualquer fato que contradiga a decisão. Reina o duplifalar – tipo “responsabilidade para atacar”. Se só se veem semelhanças com Iraque 2.0, é porque é tudo igual. Tempos de consertar os fatos, alinhando-os à política, tudo outra vez.

Tempos de armas de enganação em massa, tudo outra vez.

O eixo de gracinhas saudita-israelenses

A janela de oportunidades para a guerra é já. As forças de Assad avançam, de Qusayr a Homs; expulsam da periferia de Damasco os “rebeldes” remanescentes; implantam-se nos arredores de Der’ah onde contra-atacam os “rebeldes” treinados pela CIA que recebem armas avançadas, pela fronteira Síria-Jordânia; e organizam o assalto para expulsar “rebeldes” e jihadis dos subúrbios de Aleppo.

Ah! Israel e Arábia Saudita mal se aguentam de tanta excitação, porque estão conseguindo exatamente o que buscavam, só com os bons velhos métodos de Rabo-Balança-o-Cachorro. Telavive até telegrafou, para dizer como quer que a coisa seja feita: na 2ª-feira, o jornal Yedioth Ahronoth estampou manchete: “A caminho para atacar”; e até ensinou a Ordem de Batalha ideal:

 

Há meses, até o Diretorado de Inteligências das Forças Armadas de Israel, AMAN [orig. Intelligence Directorate of the Israeli Defense Forces (IDF), AMAN] já concluíra que Assad não seria doido a ponto de cruzar a “linha vermelha” de Obama. Então, inventaram o conceito de “duas linhas vermelhas entrecruzadas”: a segunda linha seria o governo sírio “perder controle sobre seus depósitos e centros de produção de armas químicas”. E a inteligência israelense propôs outras estratégias a Washington, de uma zona aérea de exclusão, até o sequestro das armas (que implicaria ataque por terra).

Hoje se volta à opção número 1: ataques aéreos aos depósitos de armas químicas. Como se EUA – e Israel – tivessem informação atualizada minuto a minuto sobre onde exatamente se localizam os tais depósitos.

A Casa de Saud também telegrafou seus desejos – depois que o príncipe Bandar bin Sultan, codinome “Bandar Bush”, foi nomeado pelo rei Abdullah para chefiar a inteligência geral saudita. A fúria de Abdullah explica-se: a mãe dele e duas de suas esposas são filhas de uma tribo sunita ultraconservadora, da Síria. Quanto a Bandar Bush, tem mais vidas que Rambo ou o Exterminador: está de volta ao mesmo papel que desempenhou nos anos 1980s, na jihad afegã, quando era o garoto de recados, ajudando a CIA a armar os “combatentes da liberdade” do presidente Ronald Reagan.

A Jordânia – uma ficção de país, totalmente dependente dos sauditas – foi facilmente manipulada para tornar-se centro “secreto” de operação de guerra. E quem manda lá? Ninguém menos que o meio-irmão caçula de Bandar e vice-conselheiro nacional de segurança, Salman bin Sultan, codinome “mini-Bandar”. Versão árabe de “Dr. Evil and Mini Me” [1].

Mas há mais gente da CIA, além dos sauditas, no front jordaniano.

Tudo que se diga sobre a importância do relatório publicado no Al-Monitor é pouco. O relatório vazou inicialmente para o jornal libanês Al-Safir. Ali está toda a estratégia de Bandar, revelada em seu encontro com o presidente Putin da Rússia, sobre o qual Asia Times Online já escreveu. Depois de tentar – durante quatro horas – convencer Putin a desistir da Síria, Bandar convenceu-se: “Só resta a opção militar”.

Misture Kosovo e Líbia, e voilà!

O ex-presidente Bill Clinton resurgiu (perfeito timing) para comparar as opções de Obama na Síria e a jihad de Reagan no Afeganistão. “Bubba” acertou sobre a posição de Bandar. Mas deve ter cheirado alguma coisa, se pensava em termos das consequências – que são todas, do Talibã até aquela entidade mítica, a “al-Qaeda”. OK. Pelo menos, a al-Qaeda já está ativa na Síria; não precisarão inventá-la.

Quanto àquele bando de amadores que cercam Obama – de fãzocas da R2P como Susan Rice, à nova embaixadora dos EUA na ONU, Samantha Power, todos são falcões de direita – todos querem mais Kosovo. Kosovo – com uma pitada de Líbia – está sendo apresentado como modelo ideal para a Síria: R2P via ataques aéreos (ilegais). Na sequência, o New York Times já se pôs a papaguear freneticamente a mesma ideia.

Fatos, é claro, não há, nessa narrativa – nem a explosão da embaixada da China em Belgrado (remix, na Síria, com a embaixada russa?) nem chegar a um passo de guerra com a Rússia.

A Síria nada tem a ver com os Bálcãs. Na Síria, há guerra civil. A maioria da população síria urbana, não os camponeses atrasados, apoiam Damasco – por causa do comportamento terrível dos “rebeldes” nos espaços que controlam; e a absoluta maioria da população deseja solução política e as conversações, agora já quase totalmente torpedeadas, de Genebra-2.

O esquema jordaniano – inundar o sul da Síria com mercenários pesadamente armados – é remix do que a CIA e os sauditas fizeram ao Af-Pak; e os únicos vitoriosos serão os jihadistas da Frente al-Nusra. Quanto à solução que Israel espera de Obama – bombardeio indiscriminado de depósitos de armas químicas – com certeza resultará em dano colateral horrendo, com R2A que matará ainda mais civis.

O futuro permanece sombrio. Maldita nova coalizão de vontades: Washington já tem no saco os poodles britânico e francês, e pleno apoio das democráticas petromonarquias do Golfo, da Jordânia, que só obedece, e das bombas atômicas de Israel. É o que passa por “comunidade internacional”, em tempos de duplifalar.

Os britânicos já se puseram a repetir pesadamente que não é preciso qualquer resolução do Conselho de Segurança da ONU [2]; quem se incomoda se é Iraque 2.0? Para o Partido da Guerra, não faz diferença alguma que o Comandante do Estado-Maior das Forças Armadas dos EUA, general Martin Dempsey já tenha dito que os “rebeldes” sírios não promovem interesses dos EUA.

Washington já tem pronto todo o necessário para que os Santos Tomahawks voem: há 384 deles já posicionados no leste do Mediterrâneo. Bombardeiros B-1 podem decolar a qualquer momento da base aérea Al Udeid no Qatar. E com certeza entrarão em cena as bombas de perfuração detona-bunker.

O que acontecerá na sequência, só com várias bolas de cristal concêntricas – de Tomahawks, a uma barragem de fogo aéreo e comandos de Operações Especiais pelo solo, até campanha sustentada de bombardeio aéreo que durará meses. Na longa entrevista que deu ao jornal Izvestia, o presidente Assad dá a impressão de pensar que Obama está blefando.

Seja como for, a Síria não será “mamão com açúcar”, como a Líbia. Mesmo semidestruído em todas as frentes, Gaddafi resistiu durante oito longos meses depois que a OTAN iniciou seu bombardeio humanitário. A Síria tem exército cansado, mas ainda muito forte, de 200 mil soldados; muito armamento soviético e russo; sistemas antiaéreos muito bons; e pleno apoio dos especialistas em guerra assimétrica, do Irã e do Hezbollah. Além da Rússia, que só precisa adiantar algumas baterias S-300 de defesa antiaérea e fornece sólida informação de inteligência.

Assim sendo, tratem de habituar-se ao funcionamento das relações internacionais em tempo de duplifalar. O exército do general Abdel Fattah al-Sisi no Egito pode matar centenas de seu próprio povo que protestavam contra golpe militar. Washington não dá bola – como se viu no golpe que não é golpe e correspondente banho de sangue que não é banho de sangue.

Não se sabe com precisão o que exatamente aconteceu na saga das armas químicas perto de Damasco. Mas é o pretexto para mais uma guerra norte-americana – apenas poucos dias antes da reunião do Grupo dos 20, em São Petersburgo, com Putin como anfitrião. Santos Tomahawks! R2A, lá vão eles.
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Notas dos tradutores
[1] Personagens de Austin Powers, em O Homem do Membro de Ouro [Goldmember, 2002]
[2] Ontem (26/8/2013), no canal GloboNews-SP, Demétrio Magnoli, aquela “sumidade” pós-graduada pela USP, disse: “Atacarão por resolução da OTAN (?!), dado que não haverá resolução da ONU”. Quem ouviu, ouviu, porque o programa, hoje, é totalmente inencontrável.
_______________________
27/8/2013, [*] Pepe EscobarAsia Times Online –The roving Eye
Obama set for holy Tomahawk war
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (“The Roving Eye”) no Asia Times Online; é também analista e correspondente das redes Russia TodayThe Real News Network Televison Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu, no blog redecastorphoto.

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