EUA: interpenetração “business”-estado, capital monopolista e industrialismo avançado

Industrialismo

Definições são importantes, especialmente em tipologias estruturais e/ou sistêmicas, porque a imprecisão leva ao descuido, a não ver a repressão, a não apoiar quem tenha de ser apoiado, à falta da clareza necessária para alguma aguda e ativa consciência política e para que se desenvolva alguma sensibilidade moral.

A palavra “fascismo” foi amaldiçoada, a ponto de perder o peso, a pegada, o fio cortante e tornar-se uma espécie de rótulo a ser pespegado a movimentos sociais e políticos reacionários ou a atitudes individuais. Assim, os mais perigosos agentes causais do fascismo – o capitalismo, o militarismo etc. – podem ser deixados à sombra ou podem ser tratados como se não fossem o que são. E podem ser negligenciados.

O fascismo aparece sob várias formas; mas não é como roupa tamanho único, que veste qualquer corpo, por tentadora que essa análise seja ou pareça ser. Nem há uma linha histórica traçada na areia, para indicar que quem a ultrapasse, esse sim, seria artigo genuíno. O que faço aqui não visa a traçar limites desnecessários, mas, simplesmente, a alertar contra a construção de modelos simplistas. Modelos, de fato, são puro desperdício de energia: a história é, para nós, guia muito melhor.

Franco (E) - Mussolini (C) - Hitler (D)

As muitas faces do fascismo – na Itália de Mussolini, na Espanha de Franco, na Alemanha de Hitler – são todas relevantes e talvez constituam uma fase histórica sequencial unificada. Mas isso não nos basta, pelo menos para darmos conta das forças históricas pós-1945, embora certamente iniciadas antes, que definem o fascismo nos tempos modernos. O campo de concentração já não é indicador garantido, nem quando as técnicas de vigilância e controle estão sendo aprimoradas e aperfeiçoadas, e a manipulação das massas, sobretudo mediante o  consumismo e a propaganda política que vêm de todos os lados, já assumiu o lugar dos campos de concentração e “amaciou” o corpo político induzindo a conformidade e a complacência.

Hoje, o fascismo fala com voz melíflua (exceto quando os grupos governantes são ou sentem-se ameaçados) e jamais tira as luvas, para melhor conseguir arregimentar o pensamento, o que antes se fazia quase exclusivamente pela força. A força é externalizada, mandada adiante para manter as aspirações de hegemonia e, assim, alistar as populações domésticas para manifestações de fervente apoio patriótico, sem o qual a formação totalizante poderia estagnar, regredir ou, até, efetivamente ruir.

O fascismo assegura a sustentação da estrutura existente de riqueza e poder, enquanto a economia política, ela própria, segue adiante – quer dizer: fascista, hoje, é a conservação da Velha Ordem sob as condições do industrialismo moderno.

A Velha Ordem não precisa ter sido feudal (embora alguns autores, vez ou outra, Ghent nos EUA, e mais perceptivo, embora obliquamente, Thorstein Veblen, em seu livro Imperial Germany, tenham tomado o capitalismo monopolista como feudalismo industrial, e, afinal, nem erraram muito). Mas, digo eu, o fascismo, por definição fiel ao desenvolvimento histórico-estrutural, logo transformaria o capitalismo em Velha Ordem eterna, que não seria jamais atacada ou desmantelada, mas modernizada, de modo a tornar possível um sistema industrial avançado, ao mesmo tempo em que tudo mais permanece congelado – anulando qualquer ímpeto de democratização que se pudesse atribuir à tecnologia – e a estrutura de classe é contida em equilíbrio para a mesma finalidade: impedir a mudança, enquanto a estratificação reflete o poder dos de cima e a disciplina social, abaixo.

Fascismo = industrialismo moderno dentro de um quadro societal hierárquico. Para garantir que tal arranjo funcione, exigem-se pão e circo, por trás dos quais está o punho cerrado, impessoalizado através de imensos orçamentos militares, o espírito marcial promovido mediante o esporte, o etnocentrismo, a geração do medo, como atualmente, a saturação do ambiente público mediante uma cultura política do contraterrorismo e um sentimento de rejeição ao imigrante.

As forças de produção (falo da mudança tecnológica via inovação, não como fórmula mecanicista, mas levada historicamente adiante por gente real em sistemas sociais reais) são inerentemente dinâmicas, mesmo quando a progressão não é suave, mas pontuada de sobressaltos, e embora não sejam invariavelmente veículos de democratização social, política, econômica, essas forças ultrapassam o quadro institucional no qual estão inscritas.

A propriedade, a proteção que o estado dá àquele status, o substrato ideológico, se não formulado, então sancionado e transmitido por grupos governantes, tudo isso desempenha papel vital para converter a força de seu impacto sobre as instituições e a cultura e ampliar o consumo (o capitalismo, como Marx sabia, prospera num estado de subconsumo e consequente privação dos trabalhadores, até um estágio primordial de acumulação de capital baseado no crescente empobrecimento dos mesmos trabalhadores), ao mesmo tempo em que enfraquece a diferenciação de classes.

O industrialismo, como puro constructo, não é exatamente o inimigo do capitalismo, mas pode ser posto sob controle se for vantajoso e, assim, reforça os marcadores convencionais do capitalismo, de acumulação ilimitada de riqueza e ilimitada concentração de propriedade, para uma classe trabalhadora disciplinada, não ameaçadora, cujos membros competem entre si pelo trabalho que haja, com salários arrochados. Se não for controlado, o industrialismo pode até levar a outra formação societal, sob administração mais racional (do ponto de vista do bem-estar público); em outras palavras, a transformação do capitalismo em socialismo, contra a qual se deve resistir a todo custo, ou substituirá completamente o próprio capitalismo.

Nesse contexto sobretudo, o fascismo salva o capitalismo contra o próprio capitalismo, salva o capitalismo dele mesmo, elevando-o à condição de estabilização política pela qual, confiando no Estado para que absorva sua negatividade (seja a potencial militância do trabalho ou a exposição à ameaça externa de modelos alternativos de desenvolvimento histórico-econômico), o capitalismo resulta livre para seguir a lógica de seu próprio movimento interno.  

Dito talvez em formulação excessivamente simplificada, o fascismo é o estágio final do capitalismo, exigindo crescimento industrial avançado para alcançar e permanecer no novo degrau, mas sempre, nesse ponto, o industrialismo como tigre desdentado, já submetido ao comando dos grupos governantes na sociedade.

O fascismo também, no mundo da realidade comercial internacional, facilita a ênfase na política econômica militarizada e na população domesticamente arregimentada. O capitalismo já não pode assumir como garantidas as consequências pacíficas do comércio per se, quando, depois da 2ª Guerra Mundial, o sistema mundial, ele mesmo, foi-se tornando irreconhecível, de uma perspectiva Smithiana, à luz da descolonização, da escassez de matérias primas, fato-raiz da rivalidade intracapitalista pela penetração comercial bem-sucedida nos mercados do mundo, ao lado da igualmente significativa necessidade de resultados lucrativos de investimentos, com o capital, em vez disso, engasgado. Por essas e outras razões, vemos a militarização do capitalismo como representante de uma mudança qualitativa na organização e na direção segundo as quais o poder torna-se um fim nele mesmo; a ideologia converte-se, de prevenção da dissidência interna, numa postura global de contrarrevolução (sem negligenciar a prevenção); e o fascismo, como formação societal reativa totalizante, descobre-se multitarefa.

Para preservar o capitalismo, é preciso neutralizar o industrialismo, garantir que não interfira com os integumentos capitalistas da dominância de classe que permitem ao sistema funcionar em benefício de, ou como determinado pelos, seus grupos governantes. É preciso também pôr o capitalismo em marcha de guerra permanente. Nem tanto em nome do keynesianismo militar (indústrias da defesa demarcando a margem de diferença entre estagnação e recuperação, entre desemprego perigoso e níveis aceitáveis de desemprego – sempre como determinado, não por algum compromisso público com o pleno emprego, mas, sim, por economistas servidores do capitalismo que veem vantagens num mercado de trabalho levemente deprimido), mas em nome de manter o capitalismo solidamente plantado no elevador da certeza hegemônica, acima e contra outros poderes dentro do capitalismo que conseguiram rápido avanço industrial no último meio século e competem hoje pelos mesmos mercados, pelas mesmas matérias primas e destinos de investimentos. Mais, de fato, para testar a hegemonia contra economias políticas não capitalistas (não consegui chamá-las de economias socialistas) que tomam a forma adventícia de conflito ideológico – na Guerra Fria que agora se reinicia, se algum dia chegou a acabar, contra a Rússia, contra a China, com vantagens mútuas para os dois lados, que conseguem manter suas populações sob controle.

O fascismo não brotou espontaneamente de uma garrafa mágica com, por exemplo, a Itália de Mussolini nos anos 1920s. Já se observavam práticas fascistas desde bem antes, como Barrington Moore observa em seu soberbo estudo “Totalitarian Elements in Pre-Industrial Societies” [Elementos totalitários em sociedades pré-industriais] em seu Political Power and Social Theory [Poder político e Teoria Social], mas essas práticas iniciais, do “Medo Vermelho” [orig. Red Scares] à bandidagem política, à alimentação ideológica forçada, fosse precoce ou mais recente, em cenários não industriais, como Espanha e Portugal, ainda não mostravam o que se veria no nível estrutural, primeiro na Itália, depois na Alemanha: a organização mais rigorosa do sistema de negócios [orig. business system], politicamente inspirada e executada através do governo, em colaboração com “lideranças” das comunidades industrial e das finanças – uma formação do Estado para melhor servir às necessidades dos negócios em suas carências específicas, mas para assegurar tratamento mais básico do capitalismo como consideração sistêmica, seus problemas, suas tensões sociais, meios de autopropagação mediante linhas cada vez mais monopolistas, todos tendo já em mente o contexto da política e da economia internacionais.

Esse é o nível no qual opera o fascismo como constructo significante, não nos surtos de ódio de uma KKK  ou de um Clube Kiwanis. Isso pode parecer óbvio, mas, na prática, nós subestimamos os focos do poder na sociedade moderna, que atualmente chamo de interpenetração entre negócios e governo, e procuramos, mais, os malucos, os quais, embora não sejam inócuos, são, saibam eles disso ou não, as tropas de choque de um capitalismo avançado que carece de um clima de medo para, ao mesmo tempo, processar suas guerras e descarregar o excesso de produção sobre consumidores narcotizados.

Sob o fascismo, na Itália e na Alemanha, a rigorosa organização dos negócios toma a forma das chamadas “frentes”. De fato é uma organização totalitária da sociedade em “frentes” de negócios e “frentes” de trabalho, o melhor arranjo para garantir supervisão total, mas, mais praticamente, para garantir maior coesão; e assume o formato de cartel e leva aos grupamentos monopolistas ou oligopolistas. E para garantir aos oligopólios um meio para expressar cooperação com os negócios no espírito de gratidão dos ‘de cima’ (processo também conhecido como vitimização, num quadro de estratificação econômica e de classe).

Nos EUA houve marcado interesse (além de investimento considerável) no que estava transpirando na Itália e na Alemanha sob governos fascistas, especialmente porque o business norte-americano passava por desenvolvimento paralelo – mas sem a sanção oficial do governo – de supraorganização mediante associações comerciais e até do que se pode chamar “peak associations”[1][aprox. “grupos de interesse”, conceito próximo de “lobby” como se entende no Brasil atualmente (NTs)] (incorporando as associações comerciais), também, como seus contrapartes fascistas na Europa, interessado, o business norte-americano, em atender a necessidade de estabilidade, de segurança e da presença do braço autoprotetor do governo. Só faltava formalizar o relacionamento, para que ele correspondesse exatamente ao fascismo. Mas em pensamento, se não em projeto, os EUA não estavam muito longe dos países europeus.
 
O corporativismo do business europeu encontra sua contraparte nos EUA dos anos 1920s na propagação, pela Câmara de Comércio e a Associação Nacional da Manufatura (ANM), da doutrina da commonwealth [lit. “riqueza comum”] do business, onde business se tornara a política de defender só ele mesmo, mais do que a nação que lhe dava segurança. Significava também muito mais, a natureza orgânica da sociedade, à qual se aplicava ou, melhor dito, impunha-se, a ordenação hierárquica de classes e, com a proteção do governo, uma visão solipsista de privilégio.

Não era a commonwealth [lit. “riqueza comum”] de Winstanley, mas a de Hoover.

Quanto a isso, merece atenção o trabalho de Robert A. Brady, economista de Columbia, que listou lado a lado os escritos oficiais das frentes nazistas, usando colunas paralelas, com as declarações da ANM e da Câmara de Comércio dos EUA, exercício elucidativo para demonstrar que as palavras não poucas vezes eram idênticas, para demarcar áreas similares de preocupação ou de interesse, os temas ideológicos do poder, da propriedade, da hierarquia, em seu livro The Spirit and Structure of German Fascism [Espírito e estrutura do fascismo alemão]. Brady fez o mesmo em outro de seus estudos, posterior, magnífico, obrigatório para nossos objetivos, Business as a System of Power [Business como sistema de poder], aliado, como o vejo, ao Behemoth de Franz Neumann, para demonstrar que o business é embrionariamente fascista (talvez, suponho, pela necessidade de tornar estática a relação trabalho-capital, incluindo a fixação dos salários impostos a uma classe trabalhadora dócil, que tudo aceite, abaixo).

Especulo eu que o capitalismo avançado, seu estágio do monopólio do capital, a continuada expansão já não garantida, é, já não embrionariamente, mas integralmente, fascista – a busca por estabilização, alcançada por meios políticos, ante a sempre crescente, sempre potencial, senescência.

Fale-se do business embrionariamente fascista, ou do capitalismo integralmente fascista (porque as preocupações sistêmicas obtêm precedência sobre a empresa individual), há nos dois casos uma predisposição estrutural e ideológica para o fascismo, baseada na organização hierárquica, no ambiente político da interpenetração business-governo, objetivo e direção econômica, tanto quanto na tendência rumo ao monopolismo, e na introjeção psicológica do princípio da liderança comum ao business e à sociedade, uma ordem unida de comando e obediência que percorre e unifica o sistema de classes.

Pela própria avaliação do capitalismo (i.e., sua estrutura de liderança, não um processo impessoal ou determinista), o Estado desempenha papel crucial no desenvolvimento do sistema, mesmo quando o Laissez-Faire e a Porta Aberta são promovidos como mitos legitimantes. Essa dependência – na realidade, uma dependência mútua, na qual uma base consolidada de capital monopolista traduz-se em maiores, mais efetivas proezas militares e cria a necessidade de mostrá-la e empregá-la – torna-se cada vez mais clara com o avanço posterior do capitalismo, quando passa a ser necessário encontrar remédios contra a natureza volátil do ciclo do business e para prevenir as severas consequências e subsequentes disrupções já experimentadas antes na Grande Depressão, cuja negação alimenta o ímpeto a favor do Poder Executivo e da liberdade (embora o oposto deva ser verdade) do business acertado.

Nem é preciso recorrer a Marx para reconhecer (a recente crise financeira é prova suficiente) que o capitalismo é sistema inerentemente instável. É onde entra o governo, as mais extremas medidas de recuperação necessárias para a estabilidade e a retomada da extração de lucros, quanto mais a síntese combinada inter-relacionada de business e governo aproxima-se do fascismo.

Protestos na França contra a austeridade e manutenção do bem estar social

Hoje, a moda é austeridade, mas, por mais que já esteja aí, a austeridade, como o contraterrorismo, porque falar de uma é falar da outra, e significando bem mais, revela, como de fato o contraterrorismo também revela (porque, num nível mais profundo de análise, os dois trabalham em conjunto), o ímpeto na direção de conservar a ordem estabelecida.

A austeridade envolve o assalto político-fiscal contra a rede de seguridade social; enquanto o contraterrorismo tem a dupla função de, sempre em nome do combater o terrorismo, montar um assalto contra a dissidência social dentro de casa e, implicitamente, alcançar metas contrarrevolucionárias no exterior, seja contra forças radicais de oposição, seja contra a industrialização do Terceiro Mundo.

Ao ser executado o assalto, ele tem a ver com tudo, menos com terrorismo, como se comprova na vigilância massiva e no efeito paralisante que tem sobre a oposição ao governo.

Mas dizer que o capitalismo é inerentemente instável não obriga ninguém a diluir Marx. A noção de contradições inerentes sempre me intrigou; é estruturalmente impessoal demais. Consistente com uma leitura histórica do materialismo dialético, pode-se sugerir, em vez disso, que o que passa por “contradições” são de fato esforços conscientes e decisões para maximizar lucros – comportamento eminentemente racional, num sistema admitidamente irracional – e suas práticas correlativas, como manter o poder de classe e buscar oportunidades para expansão do mercado, não importam os obstáculos; que nem o fracasso do sistema seja garantia de transformação social; que a dominação de classe permaneça intacta, como a ideologia, e o ciclo recomece, usualmente, para posterior deslocamento e degradação dos trabalhadores.

Se, contudo o reinício não é conclusão inevitável, o que acontece quando o capitalismo começa a atrofiar e as tensões sociais começam a subir, o fascismo, aqui o poder e a autoridade do Estado, torna-se pensável; e, outra vez mediante ação consciente, não por alguma forma de determinismo, torna-se também alcançável. Mas alcançável, por causa de uma já bem avançada interpenetração, em benefício do business, o Estado como seu escudo e protetor. 

Passeata dos Bônus (Bonus Marchers)  em Washington, DC - 1932

Não é necessário um incêndio do Reichstag para fazer aparecer os soldados (os quais, em qualquer caso, sim, foram protagonistas também da “Passeata dos Bônus” [orig. Bonus Marchers [2]] nos EUA em 1932); a única contradição em tudo isso são os próprios capitalistas, sobreviventes como uma classe, que ignoraram os sinais de alarme contra sua própria conduta autoindulgente e egoísta, o que, por sua vez, pôs em questão temporariamente todo o sistema. (Para os não iniciados, pode-se lembrar que nenhuma dureza extrema, ela só, nem fraturas estruturais, quaisquer que sejam, fazem uma revolução; quem faz revolução é gente, e gente, diferente de autômatos, tem de desejar as próprias ações, desejo que depende, por sua vez, do grau de clareza e convicção da consciência política de cada um). Minha conclusão: as “contradições” são, de fato, os pontos de ignição [orig. flash point] da lucrabilidade no sistema; o governo não visa a removê-las, mas, em vez disso, tem de assegurar que funcionem em benefício dos próprios capitalistas, e garantir a boa ordem até que os grupos superiores tenham restaurado sua posição (que, de fato, em nenhum caso deixaram completamente de manter, em termos proporcionais).

O capitalismo exige um estado-de-classe. Seu componente fascistizante entra em operação por qualquer um de dois modos: quando o capitalismo requer os serviços do estado, tenha a interpenetração avançado suficientemente ou não, ele sempre se vê sob sítio, real ou imaginado, por forças hostis aos seus propósitos e direção (o trabalho ou, com ou sem o culto da competição, empresas monopolistas e oligopolistas ou setores que sintam as pressões da concorrência como ameaça contra sua posição na economia), caso no qual o governo, em nome do personagem corporativo responsável, impõe, em nome da concorrência, um quadro anticoncorrencial. Pela outra via, a interpenetração governo-business já solidificou ao grau no qual cada elemento, já unidos todos os elementos entre si para todos os objetivos práticos, integra, mediante poder combinado, um contexto societal que torna possíveis a agressão estrangeira e a pacificação interna: uma militarização do capitalismo que é consoante com o estágio final de preservação do sistema – não sujeito a interferência doméstica – pela força.

Em que ponto disso estão os EUA? A interpenetração, que começou com Theodore Roosevelt (como Gabriel Kolko demonstrou em seu seminal Triumph of Conservatism [Triunfo do conservadorismo]), depois de assumir que o poder econômico – uma forte base monopolista – traduz-se em poder militar, faz avançar o processo através de seu Bureau of Corporations e da détente com a dinastia da Casa de Morgan [3], ambos apontando para estrutura econômica mais cerrada com o governo, buscando fazer pender as condições de concorrência a favor das firmas maiores.

Nos dois casos, de Morgan e dos banqueiros de investimentos que lideram o Bureau, a détente é essencialmente negócio de cavalheiros, homens nos quais Roosevelt confiava porque eram membros de sua classe e partilhavam com ele uma idêntica visão de EUA poderosos construídos sobre fundações econômicas e riqueza consolidada e um programa geopolítico para alcançar status de grande potência, com uma Marinha de combate para penetrar no mercado global. (Quem veja Roosevelt como gerador de confiança, particularmente depois de Kolko, há meio século, cede ao pensamento desejante). Passo seguinte, Woodrow Wilson, com o sistema do Federal Reserve, a Federal Trade Commission e uma vigorosa orientação para as exportações, leva a interpenetração além da fase mais informal de Roosevelt, para a institucionalização da détente, a qual nesse ponto se qualifica já como interpenetração mais plenamente realizada.

Aqui o liberalismo Wilsoniano, falo só de política doméstica, está tão distante do laissez-faire quanto Roosevelt de gerar confiança. O que fez, com respeito ao banking e ao crescimento das empresas, é como ligar uma espécie de truque semântico: construiu o quadro regulatório para promover a autorregulação – nos dois campos, no banking e no grande business.

A autorregulação pode soar como liberalismo clássico de marca (Adam) Smithiana; na realidade, usa o governo para legitimar a tomada privada de decisões, e mais, para implementar as decisões contra aventureiros individuais [orig. mavericks] e competidores criadores de dificuldades que se recusem a aceitar as regras fixadas pelos gigantes de cada setor.

A autorregulação apresentada sob a aura da regulação é a interpenetração em estado de pura poesia. Considere-se a situação hoje – as agências regulatórias são porta-vozes, de fato, dos sujeitos à regulação. Faça-se operar a “porta giratória”, ou veja-se mesmo o pessoal que permanece no serviço público, mas é comandado diretamente pelos interesses afetados, e ter-se-á a regulação pública que des-serve ao bem-estar público.

Os três governos anteriores ao New Deal continuaram a tendência de modo mais contido, o que, para Harding e Coolidge, significou que a atividade de associação comercial se não suplantou, pelo menos atuou como forças independentes na expansão e estabilização do capitalismo. E Hoover, embora caricaturado então e depois, representou, sim, uma projeção em linha mais ou menos reta a partir de Wilson – não fascistizante, mas mantendo vivos elementos da organização dos negócios que, dadas as condições do pós-IIª Guerra Mundial, constituíram um parceiro reforçado na marcha da interpenetração business-estado.

Franklin Roosevelt e o New Deal, como se poderia esperar, representam um complexo puxa-empurra entre o governo e obusiness, regulação genuína e autorregulação, tudo no contexto de garantir os direitos do trabalho, de separar os bancos comerciais e os bancos de investimento, de criar um vasto programa de serviços públicos. Em suma, no contexto de viabilizar, mediante o Governo de Recuperação Nacional [orig. National Recovery Administration], um dos mais poderosos estímulos à monopolização; e, mediante as empresas públicas [orig. code authorities], em organização, não completamente diferentes das “frentes” de comerciais nazistas, equilibradas contudo pela libertação de forças sociais e temas ideológicos, no mínimo encorajar a dignidade do desempregado e assegurar empregos, de colarinho branco e braçais, e a tal ponto que, apesar da sobrevivência do capitalismo – que naquele momento corria risco real – e da luz verde à concentração, não se consegue ver a interpenetraçãobusiness-estado, naquele momento, como prelúdio do fascismo. O fascismo viria depois.

Pode-se dizer que, mesmo que tenha havido uma configuração de forças sociais que historicamente explica o equilíbrio que FDR conseguiu alcançar, o capitalismo, embora inquestionavelmente ascendente entre os diferentes elementos da sociedade, não “progrediu” a nível mais alto, e com ele, a ênfase no apoio militar ao capitalismo como sistema mundial ou, olhando para dentro, para a penetração do mercado dos EUA e sua liderança na finança internacional e nas organizações de comércio. Esse ainda era sistema desigual, mas não se pode dizer que fosse sistema fascista, o qual, se fosse, teria usado a polarização de classes para cobrar deferência da classe trabalhadora e subscrição aos objetivos da expansão internacional. FDR permanece como figura histórica que aponta para um capitalismo administrado que os EUA jamais alcançaram, talvez porque o capitalismo viria, com o tempo, em todos os locais onde exista, a libertar-se das algemas que o interesse público e os direitos do trabalho tentariam impor-lhe. Dentro do capitalismo, FDR combateu o bom combate. E todo o seu trabalho foi reduzido a nada, apenas poucos anos depois de ele morrer.

Apesar das correntes protofascistas, como os que favoreceriam a exterminação de radicais, anarquistas, até de estrangeiros em geral, no período em torno da Iª Guerra Mundial, sinto, porque vivi aquele tempo, que o que se seguiu ao pós-1945 representa uma mudança qualitativa na psique norte-americana, causa e consequência, inicialmente, da Guerra Fria.

Mas, realmente, todos os venenos, o racismo, o antirradicalismo, as atitudes e políticas antitrabalhistas, etc., começaram então a ferver, do fundo para a superfície – algo que nem o New Deal nem a IIª Guerra Mundial teriam podido erradicar (e provavelmente exacerbaram, em todos os já dispostos a odiar), criando assim uma paisagem estrutural-psicológica irredutível, que pôde ser explorada pelo capitalismo nos EUA, se não foi ele quem, possivelmente, manufaturou as suspeitas e medos contra o governo, contra o socialismo, contra o Estado de Bem-Estar, obrando como se a subversão interna brotasse de todos os lugares, forçando respostas preventivas que foram construídas e visavam a erradicar qualquer dissensão, que passaria a ser definida como não patriótica. Mesmo assim, o McCarthyismo não passou de fascismo em embrião, embora, com a execução do casal Rosenberg, já estivéssemos desgraçadamente próximos do fascismo.

Ethel e Julius Rosenberg executados como espiões em 19/6/1953 em Sing Sing

Mais significativos, para quem estude ou analise a direção que a sociedade norte-americana tomava, foram o crescimento simultâneo da desigualdade de renda, a consolidação do business, a proeminência, dentro da estrutura econômica, de mega-instituições financeiras, acompanhados, passo a passo, por uma política externa de anticomunismo, que não apenas deu passe livre ao business (acompanhando pelo arrocho, até o apagamento, dos direitos trabalhistas), mas deu à intervenção uma respeitabilidade jamais vista até então.

Pior que McCarthy, considere-se a Baía dos Porcos de Kennedy, que abriu o caminho para o Vietnã, que, se já não fosse, abriu o caminho para que a CIA aparecesse como braço legítimo de violência e mais e mais... Um currículo de mentiras, dissimulações, invasão, armamentismo galopante, estado-de-Agência-Nacional-de-Segurança em construção, até o que temos hoje. Vigilância, secretismo, assassinatos premeditados & listas de matar, prisão por prazo indefinido sem acusação formalizada, a doutrina dos segredos de estado, a lista não tem fim, de políticas e práticas de inclinação fascista, aberta, clandestina, nacional, internacional, sempre de braços dados com uma economia política dependente do sempre presente contexto da segurança interna (contra a classe trabalhadora, que perdeu sua identidade, diluída na ficção de uma Classe Média que tudo engole) e da racionalização sem limites de seu ambiente de operação global.

Isso é fascismo? Que o leitor, a leitora, decida, desde que ele ou ela não se limite a olhar só para os Tea Partiers, o canal Fox News, a intransigência dos Republicanos e, em vez disso, busque os vícios sistêmicos, cujos casos são secundários na estrutura do poder, a integração dos militares no próprio sistema de governo das elites político-empresariais.

Observem-se Obama, os Democratas, os atuais centristas e progressistas, pois aí jaz o próprio corporativismo mais sofisticado, capaz de inventar uma política internacional de confrontação com a China e uma política doméstica que acrescenta, à militarização do capitalismo, também sua financeirização, como, talvez, uma Nova Autarquia, de autossuficiência nacional, em momento em que o resto do mundo já desconfia muito da liderança norte-americana.

Em termos de análise, qualquer definição de fascismo deve começar a separar-se da Alemanha Nazista como arquétipo, e dirigir os olhos para a fase do desenvolvimento capitalista nos EUA no último século: dinamismo das forças produtivas (embora isso já esteja decaindo), estrutura capitalista interna sem qualquer limite ou controle – crescimento industrial encastelado na Velha Ordem. Essa era exatamente a situação do Japão do pós-guerra, onde a interpenetração business-estado avançou tanto, que indicou as próprias características estruturais da hierarquia e estratificação de classe, a Velha Ordem, como ponto de partida para a indústria e o banking monopolistas.

Só faltou o militarismo e os gastos exorbitantes com Defesa – e se os EUA indicam alguma coisa, também isso pode mudar lá, conforme o capitalismo avançado continue a andar.

Lembro aqui a expressão do respeitado cientista político japonês Masao Maruyama, ao descrever a versão japonesa da interpenetração business-estado (que também o perturbou, ao pensar nas implicações futuras). Maruyama chamou o relacionamento entre business e governo de “sistema do abraço apertado”.

Acompanhando o que diz Barrington Moore, em sua brilhante história comparativa dos principais modos político-econômicos de desenvolvimento, falando especificamente do Japão (que Moore chamou de “fascismo asiático”), anoto aqui uma expressão de seuSocial Origins of Dictatorship and Democracy [Origens sociais da ditadura e da democracia] que captura muito bem a definição de fascismo que estou procurando. Para Moore, fascismo é “modernização de cima para baixo”.


Notas dos tradutores 
[1]  Leia mais sobre o conceito, que designa “grupos de interesses” (em inglês). 
[2]  Bonus Marchers: Soldados norte-americanos veteranos da Iª Guerra Mundial e suas famílias que, em situação econômica desesperadora em 1932, organizaram uma marcha e uma “acampada”, em Washington, DC. 
[3]  House of Morgan designa uma dinastia de banqueiros britânicos, depois norte-americanos, estudada em livro-reportagem que recebeu esse título. 

6/8/2013, [*] Norman Pollack, Counterpunch
America, Monopoly Capital, and Advanced Industrialism: Toward a Definition of Fascism
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

[*] Norman Pollack é o autor de “The Populist Response to Industrial America” (Harvard) e “The Just Polity” (Illinois), Guggenheim Fellow e professor emérito de história na Michigan State University. Seu novo livro, Eichmann on the Potomac, será publicado por CounterPunch/AK Press, no outono de 2013.

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