HONG KONG. A questão geopolítica-econômica do nosso tempo, maior que a vida, a mãe de todas as questões, hoje, se pode dizer, não é a Síria, nem a espionagem da Agência de Segurança Nacional dos EUA contra o mundo. Nada disso. A questão é a China. Como, santo deus, o Partido Comunista da China (PCC) conseguirá conduzir o modelo de crescimento econômico de Pequim, e como a China conseguirá administrar a ascensão agora mais lenta.
Em qualquer caso, antes, a China precisa livrar-se do “julgamento do século” (nada mais, nada menos).
Bo Xilai, ex-superstar do Politburo atualmente caído em desgraça – conhecido por seu “modelo Chongqing” de crescimento – foi, afinal, indiciado essa semana, acusado só por crimes relativamente menores, de ter aceito suborno de US$3,2 milhões, e ter embolsado cerca de (outros) $800 mil.
O roteiro fascinante começa com o modo como a mídia chinesa reagiu. Três minutos depois de a agência oficial Xinhua anunciar o indiciamento, o jornal People’s Daily já se dedicava a traçar uma meticulosa diferença entre “assuntos pessoais de Bo Xilai” e “o sucesso do desenvolvimento econômico e social de Chongqing”.
15 minutos adiante, Xinhua publicou um comentário essencialmente para alertar que Bo caíra porque um “tigre” local tornara-se excessivamente poderoso; e “a estabilidade nacional de longo termo só estará assegurada se se pode proteger a autoridade da liderança central”.
Também 15 minutos depois, Global Times selou o acordo, explicando que figurões corruptos, como Bo, dentro do Partido, são “um câncer” – a ser enfrentado com o peso da lei.
O problema é que toda essa artilharia pesadíssima não ajuda a contar, sequer, o começo da história.
Ferrari versus Hondas
Alto, ativo, energético, carismático, fluente em inglês (que aprendeu ainda na escola, antes da Revolução Cultural) e princeling a ser detonado – filho prodígio de Bo Yibo, um dos “Oito Imortais”, o grupo de companheiros pessoais íntimos de Mao Tse Tung liderado por Deng Xiaoping, que adiante abriria a China ao mundo – Bo Xilai é a matéria prima de que se fazem os épicos de “ascensão e queda”.
Princeling – como a mídia em Hong Kong o definiu no início dos anos 1980s – é cada um dos filhos de líderes do PCC (são centenas) que sempre viveram imersos em dinheiro, poder e privilégios sem limites. Bo – que herdou a teia de relações e contatos de valor inestimável [orig. guanxi] tecida por seu ilustre pai – sempre preferiu a expressão “sucessor vermelho”.
É absolutamente impossível compreender o que está acontecendo a Bo sem acompanhar suas complexas interações familiares com o atual presidente chinês Xi Jinping, com o ex-presidente Hu Jintao e com o ex-premiê Wen Jiabao. É como comparar uma Ferrari e um trio de Honda Civics.
Bo, o garanhão, a Ferrari, é homem da aristocracia comunista por direito de sangue e nascimento. Hu e Wen são trabalhadores, gente que veio do nada. A família de Wen, em Tianjin, foi perseguida pelos Guardas Vermelhos dos princeling durante a Revolução Cultural. Mas adiante, em 1966, quem terminou por meter na cadeia o pai de Bo foram os Guardas Vermelhos pobres, que controlavam a universidade.
O pai de Hu Jintao era vendedor de chá. Foi perseguido durante a Revolução Cultural – e jamais “reabilitado”. Depois, nos anos 1980s, o pai de Bo, devidamente reabilitado, atirou-se à mais furiosa perseguição contra Hu Yaobang – que era então mentor de ambos, Hu e Wen.
O xis da questão é que esse clima de guerra entre essas famílias foi o nome do jogo ao longo de, pelo menos, uma geração.
No final de 2007, Bo perdera a disputa interna no 17º Congresso do Partido para tornar-se vice-premier. Chegara ao Politburo – mas foi “exilado” para Chongqing, em Sichuan – a 1.500 km de Pequim. Chongqing era município, mas com nível de província, desde 1997. A cidade, que não para de crescer, já tem população de 7 milhões, mas a grande metrópole no vale do Yangtze já alcançou os 33 milhões e continua crescendo. Chongqing foi um dos nós centrais da política de “Rumo ao Oeste” do final dos anos 1990 – o movimento para industrializar em ritmo vertiginoso o interior da China.
Bo chegou a Chongqing pronto para fazer acontecer. 2008 foi o ano crucial, quando o PCC introduziu uma nova narrativa, de uma China autoconfiante que afinal superaria “um século de humilhação” sob o poder de potências coloniais estrangeiras. A resposta de Pequim à crise financeira provocada por Wall Street foi um pacote de quase $600 bilhões de estímulo – o maior da história – para injetar turbopotência na economia chinesa. Mas, antes, foi preciso introduzir mais uma narrativa, para justificar que o PCC tivesse o monopólio do poder.
Bo farejou uma jogada para ganhar. Capitalizou o disseminado senso de alienação na população, o ressentimento contra a desigualdade e a nostalgia dos idos tempos de socialismo igualitário. Ao mesmo tempo, capitalizou a seu favor a campanha que Hu e Wen moviam contra a desigualdade, e a ambivalência de ambos quanto ao papel do capital privado. Bo mobilizou todos esses elementos e andou firmemente na direção da esquerda, cada vez mais à esquerda.
Canalizou com mestria o ressentimento popular, o que levou a um “despertar das massas”. Bo voltava a falar outra vez contra o coringa – a burguesia – serviço completo, com produção de valores dos tempos revolucionários (com canções e citações de Mao, que ele sempre conheceu de cor, desde que passou cinco anos numa prisão durante a Revolução Cultural).
Foi a campanha “Cante Vermelho”. Que Bo combinou com o envio de 200 mil funcionários para o interior da província, no melhor estilo Mao, para “aprender com o povo”; e com um programa econômico batizado “PIB Vermelho” – vermelho, como em “igualdade socialista”, com orgia de moradias a preços módicos e excelentes novas rodovias, cenário que já começava a seduzir as gigantes globais (Hewlett-Packard, Foxconn, Samsung, Ford), interessadas em fazer bases em Chongqing... o que fez com que o PIB anual da municipalidade crescesse espantosíssimos 16%.
O problema é que grande parte disso tudo foi financiado com dinheiro emprestado de outras partes da China. Em quatro anos, os bancos de Chongqing endividaram-se muito. Mesmo assim, já estava impressa na mentalidade das massas a ideia de que a China se mobilizava para objetivo mais alto – embora oficialmente Bo sempre repetisse todos os mantras da “sociedade harmoniosa” pregados por Hu e Wen. A diferença é que, ali, havia fatos reais em campo, não apenas retórica vazia.
O tigre caiu na armadilha
Até que o céu se abriu, e o mundo veio abaixo. Logo chegaria o dia em que os brados vagos de Wen, falando de alguma “democracia”, colidiriam frontalmente contra o neomaoísmo de Bo. Em 2010 e 2011 já havia guerra praticamente declarada no Politburo entre Wen e Bo. E aqui havia outro subenredo também crucialmente importante.
Bo sempre foi muito próximo do ex-presidente Jiang Zemin. Jiang sempre protegeu Bo, sempre muito ativamente; e estava apoiando todos os movimentos de Bo contra Wen – inclusive os que visavam a garantir para Bo a posição mais alta na hierarquia da segurança da China, então ocupada por outro protegido de Jiang, Zhou Yongkang, que deixaria o cargo ao se aposentar do Comitê Central do Politburo, no 18º Congresso do Partido.
Até aí, Xi Jinping – outro “sucessor vermelho” e posicionado para substituir Hu Jintao como presidente – apoiava Bo, pelo menos teoricamente; e ambos eram fiéis a Jiang Zemin. Bo sempre foi e continuaria a ser uma Ferrari, comparado a Xi-Honda-Civic.
O pai de Bo, ao longo de 70 anos, sempre esteve um passo à frente e acima do pai de Xi. E, na comparação direta, Bo superava Xi em todos os quesitos: mais bonito, mais brilhante, mais inteligente e infinitamente mais carismático que Xi. A verdade que todos conheciam, mas da qual ninguém falava em Pequim, era que Xi jamais conseguiria manter Bo sob seu controle, se os dois se cruzassem em ação, no ambiente rarefeito do Comitê Central do Politburo.
Todas as tensões acumularam-se e alcançaram o pico em março de 2012, no Congresso Nacional do Povo. Começou com Wen referindo-se aos “erros da Revolução Cultural e do feudalismo” que ainda se repetiam; e pintando Bo como homem do passado, que queria impedir que se fizessem as necessárias reformas econômicas na China, a abertura para o mundo e a plena modernização. Wen sugeriu muito claramente que Bo teria de sair, para que fosse possível enterrar o passado maoísta. Com Bo, disse Wen, “uma tragédia histórica como a Revolução Cultural sempre poderá voltar a acontecer”. O vencedor (póstumo) teria de ser Hu Yaobang – não por acaso mentor de Wen e amigo muito íntimo do pai de Xi.
Tudo isso é jogo duro, muito duro. Dia seguinte, Bo foi demitido, sem cerimônias, do posto de líder do Partido em Chongqing. E, como se não bastasse, até um assassinato foi acrescentado ao roteiro – parte de uma cascata de erros e crimes que já começava a correr solta desde que o chefe-de-polícia de Bo, Wang Lijun, se refugiara e pedira asilo político ao consulado dos EUA em Chengdu, no início daquele ano.
Gu Kailai, esposa de Bo e advogada, apareceu como personagem central na trama de negociatas de um advogado inglês (Neil Heywood) que teria sido envenenado pela esposa de um dos grandes do Politburo. E abriram-se as portas do inferno. Em pouco tempo, já se divulgava que Bo teria grampeado os telefones de Hu Jintao; que os filhos de Gu Kilai teriam patrimônio no valor de cerca de $130 milhões; que os filhos do futuro presidente Xi Jinping teriam patrimônio familiar no valor de mais de $1 bilhão; e que a família de Wen, grande cruzado pró “democracia”, era proprietário de bens que ultrapassavam o total de $2,7 bilhões. O mundo conheceu uma imagem do Politburo como vasta e amplíssima cleptocracia.
Bo foi suspenso do Politburo e do Comitê Central por violações “sérias” da “disciplina” do Partido. Todos pararam de falar sobre o “modelo chinês”. Bo passou meses sob a custódia da sinistra Comissão Central para Inspeção Disciplinar – que, traduzida, significa prisão incomunicável e tortura hardcore (nada que Bo não conhecesse, depois de seus cinco anos de prisão durante a Revolução Cultural). Entrementes, o PCC debatia o que fazer dele.
Agora, já se sabe. Mas ainda não se sabe que tipo de “julgamento do século” será esse. O “julgamento do século 20” chinês – estrelado pela “Gangue dos Quatro” – foi integralmente televisionado. Imaginem a imagem de Bo em todas as televisões do país, sete dias por semana, 24 horas por dia, em todos os formatos imagináveis. Não acontecerá. O mais provável é que vejamos um tribunal meticulosamente coreografado – e muito rápido – como no julgamento de Gu Kailai. Ainda assim, o roteiro pode revelar-se uma caixinha de surpresas, no caso de Bo decidir que de nada lhe serviria arrastar prisioneiros, desviar-se do roteiro microgerenciado imposto pelo PCC e puser a boca no trombone.
Tudo leva a crer que nas próximas férias de verão em Beidaihe, os pesos-pesados do PCC finalmente decidirão sobre o destino de Bo. Toda essa fascinante saga pode ser vista como luta mortal de escorpiões numa caixa (ou guerra interna no Politburo chinês, que só terá um vencedor definitivo – Xi; dois vencedores relativos – Hu e Wen; e um definitivo perdedor – Bo). É a cada dia mais e mais estranho que Jiang Zemin tenha imperialmente rompido o próprio silêncio, como fez essa semana, para divulgar seu veredito, estilo última palavra: anunciou publicamente que apoia Xi.
E assim o fracionado Politburo, depois de um rápido julgamento, poderá finalmente voltar a ser “harmonioso” – a postos para enfrentar a questão tectônica de “dar uma ajeitada” no modelo chinês.
Mas nem assim farão sumir o espectro de Bo. Bo virou a política chinesa de cabeça para baixo, ao revelar muitas de suas práticas extremamente sombrias. Nenhum cineasta chinês será jamais autorizado a tocar em material tão sensível. Mas... quem sabe alguém se interessa, em Hollywood? Que tal? Sugiro Chow Yun-Fat, no papel de Bo: Tigre caído, Dragão cruel. Quem se candidata?
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26/7/2013, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
“China: The Bo factor”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (“The Roving Eye”) no Asia Times Online; é também analista e correspondente das redes The Real News Network TV