Notícias da “pátria educadora”: as desventuras do ensino técnico federal sob o PSDB e o PT.
A farsa eleitoral de 2014 trouxe de volta à tona um tema que resume como poucos as semelhanças de fundo e disputas de superfície entre PT e PSDB: o ensino profissionalizante.
Conheço-o por dentro: fui aluno do Colégio Técnico da Universidade Federal de Minas Gerais (Coltec-UFMG) de 1997 a 99 (governo FHC) e professor dos institutos federais de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) e de Santa Catarina (IFSC) de 2010 a 2012 (fim do 2º mandato de Lula e começo do 1º da senhora Rousseff).
Quando cursei o ensino médio integrado ao profissional, o governo buscava matar de inanição essas escolas. A contratação de professores era proibida, faltavam material, verbas, etc. Eu e meus colegas de turma ainda tivemos relativa sorte: fôssemos um ano mais jovens, teriam caído sobre nós as proibições de oferta do ensino profissional integrado ao médio e de abertura de novas escolas federais de educação básica e técnica, iniciadas em 1998.
O mentor desse desastre foi um economista do sistema ONU filiado ao PSDB, Cláudio de Moura Castro, que passara as duas décadas anteriores e passaria as duas seguintes deblaterando — por exemplo, na última edição do Fórum Nacional, em setembro — contra a integração entre ensino técnico e propedêutico. Para Moura Castro, Simon Schwartzman e outros tucanos dados a falar do assunto, o bom nível dos colégios federais atraía alunos de famílias ricas, que, diplomados no 2º grau, ingressavam na universidade, em prejuízo dos pobres, que se contentariam com o ofício técnico.
Os demolidores de instituições úteis ao povo adotam como referência a miséria mais abjeta para tachar de privilegiados os que conseguem, a duras penas, escapar dela. Os estudantes das escolas técnicas federais de 2º grau de fato não vinham, em regra com exceções, do último decil de renda da população brasileira: os filhos desse setor raramente chegam, e menos chegavam nos anos 80/90, a concluir o 1º. Mas tampouco saíam de lares abastados ou aristocráticos: eram filhos de trabalhadores. No Coltec e no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG), as vagas eram distribuídas proporcionalmente ao número de inscritos entre três faixas de renda familiar bruta: 0 a 5, 5 a 10 e acima de 10 salários mínimos. Usando os parâmetros que hoje embasam a reserva de cotas em universidades federais (cor da pele e escola de origem), havia, entre cerca de 200 alunos ingressantes no Coltec em 1997, um branco oriundo de escola privada: eu. Os outros dois alunos que haviam concluído o 1º grau em colégio particular eram (são) negros. Todos os demais vinham de escolas públicas.
Os outros aspectos do argumento de Moura Castro são verdadeiros, mas revelam a excelência — e não o desvirtuamento — dos colégios em questão. O Coltec; os então Cefets do Rio, Minas e Paraná; e as escolas técnicas federais de São Paulo, Santa Catarina, Pelotas (RS) e Natal tinham corpos docentes e discentes de altíssimo nível. E quem elaborara suas propostas pedagógicas sabia bem a diferença entre ensinar uma profissão a alguém e condená-lo a exercer tal profissão e só ela pelo resto da vida, de modo que, ao mesmo tempo em que eu aprendia a cortar madeira, tive aulas de Filosofia e de Artes no ensino médio muito antes que isso se tornasse obrigatório.
Assim, 15 anos depois de concluirmos o ensino médio/técnico, o Facebook de meus colegas mostra que Renato, Thiago e Lorraine são médicos, time ao qual logo se juntará o Alexandre, já formado em biologia. Débora é médica também: veterinária. Flávia é gestora ambiental. Na área de meio ambiente, atua também a Erika, turismóloga. Diana e Francisco são gestores públicos em saúde. Daniel e Kátia são economistas. Gabriel Vital está na China estudando mandarim. Lucas é professor de física; Diogo, de história; Mara, de educação física. Fred cursou finanças na Inglaterra. Priscilla é analista da justiça eleitoral. Fiorença é farmacêutica. Rafael e Elton são músicos, sendo que o segundo é também investigador, como Marcus. Anael é espeleólogo. Gabriel Gontijo é engenheiro de produção na Petrobras. Adriano é também engenheiro, mas de controle e automação. Sandra é engenheira civil. Rafael Otávio é ator, forma professores indígenas e, assim como João, faz doutorado em literatura. Henrique é doutor em gestão de recursos energéticos e professor universitário. Nenhum nasceu em berço de ouro; muitos têm pais sem curso superior. Por fim, o autor destas linhas se vira como jornalista, tradutor, professor e advogado.
Essa última formação se deu na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde estudaram Castro Alves, Paulo Autran e José Celso Martinez Corrêa, entre outros. Ninguém diz que, por eles não terem sido juízes, promotores ou advogados, a São Francisco e a USP não cumprem seu papel. Para Moura Castro e Schwartzman, os filhos da elite, ou mesmo os de estratos médios (pequeno-burgueses), podem ser o que quiserem; os dos trabalhadores, não.
Alegam que laboratórios e oficinas são caros e quem vai cursar a universidade não precisa deles. Ao ingressar no Coltec, com 14/15 anos de idade, nós não sabíamos que caminhos trilharíamos: eles resultaram da ampliação de nossos horizontes por uma junção entre formação científica, humanística e profissional que, no Brasil, só as instituições técnicas federais ofertavam — e de graça, propiciando a seus alunos um ensino melhor que o dos colégios privados que suas famílias jamais poderiam pagar.
Integrando a formação técnica ao ensino médio, elas possibilitavam que meninos(as) de 17/18 anos saíssem da escola e da adolescência com um ofício manual qualificado que, frequentemente, servia de base à formação superior: os médicos da lista acima foram antes técnicos em análises clínicas; os engenheiros, técnicos em instrumentação ou eletrônica. O governo FHC proibiu isso.
No modelo instituído a partir de 1998 (subsequente), o estudante primeiro conclui o 2º grau em outra escola e depois ingressa no curso profissionalizante. Com isso, uma formação que antes dava-se em três anos passou a levar 4,5 ou 5. Além de penalizar quem precisa trabalhar mais cedo, esse aumento de duração se fez acompanhar de uma piora notável. Cursando o 2º grau em escolas ruins e de forma desvinculada da formação técnica, os alunos chegam ao ensino profissionalizante com deficiências que não estão mais ao alcance deste resolver. A evasão nas escolas técnicas federais, antes quase nula, cresceu exponencialmente — porque o estudante não consegue acompanhar o curso devido às deficiências do ensino médio, porque precisa se virar num emprego de baixa qualificação ou porque, tendo já concluído o 2º grau, abandona o curso técnico em prol de um curso superior.
Devido à tenaz resistência concentrada nos Cefets de Minas e do Rio, o governo FHC acabou admitindo uma outra modalidade de formação, em que o aluno fazia o curso profissional simultaneamente ao ensino médio, na mesma escola ou não. A concomitância interna foi a saída a que o Coltec e esses Cefets, recorreram. Isso acarretava, porém, punições em termos de acesso a verbas.
Ao mesmo tempo em que tentava liquidar o que havia de melhor na rede federal de ensino básico, o governo FHC promovia o que ela tinha de pior. Para diluir a resistência das melhores e maiores escolas, elevou à categoria de Cefets vários colégios (sobretudo agrotécnicos) de padrão comparativamente baixo, que eram, em regra, bolsões de mandonismo e corrupção, alterando, assim, a correlação de forças em instâncias como o Conselho de Dirigentes dos Cefets (Concefet).
Ao seu final, as instituições federais de ensino técnico estavam desfiguradas e exangues — umas pelo acatamento das imposições do governo, outras pelo alto preço da resistência a elas.