O Caso Battisti terminou em janeiro de 2009, quando o Governo brasileiro decidiu que havia motivos suficientes para conceder ao escritor italiano o direito de residir e trabalhar em nosso país.
Cumpriu o papel dos governos, que têm os meios e ferramentas para verificar, no exterior, quem persegue objetivos políticos e quem não passa de um bandido em pele de idealista.
O Judiciário não tem esses meios. Acabará se fiando, sempre, na palavra de governos interessados em repatriar pessoas, por motivos justos ou injustos.
Ou seja, a razão de estado tende a invariavelmente prevalecer sobre os direitos individuais, pois os juízes vão se basear nas sentenças condenatórias que têm em mãos e sua propensão é a de acreditarem na decisão tomada por seus congêneres do outro país. Seria a revogação, na prática, do instituto do refúgio.
Aqueles que descartaram até a mera discussão da sentença italiana de Battisti, querendo fazer-nos crer que se tratasse de uma espécie de tábua dos dez mandamentos, foram, curiosamente, os mesmos que contestaram o entendimento cubano de que o célebre Orlando Zapata não passava de um preso comum. Um julgamento fraudado da Itália estaria acima de qualquer suspeita, mas as razões de Cuba eram desconsideradas de pronto.
No entanto, salvo fazendo uma distinção apriorística, ideológica, entre os dois países, um Cezar Peluso da vida, a partir da documentação cubana e aplicando os mesmos critérios que utilizou no Caso Battisti, concluiria necessariamente que Orlando Zapata não passava de um mero delinquente. [Eu sou coerente: desde o primeiro momento reconheci os dois como perseguidos políticos.]
Daí a pertinência da Lei do Refúgio brasileira, cujos procedimentos eram as mesmos dos de outras nações: governos estrangeiros pleiteiam a extradição ao Judiciário, mas, quando o Executivo concede o refúgio, tal pedido fica automaticamente prejudicado e é arquivado.
Pois o Governo brasileiro, sim, poderia inteirar-se das informações que não estão nos autos, concluindo, no hipotético exemplo dado acima, que os dois casos não receberam tratamento isento das autoridades das respectivas nações, configurando, ambos, perseguição política.
CONTORCIONISMO JURÍDICO
Estou falando apenas em tese, pois, entrando nas especificidades do Caso Battisti, salta aos olhos que, além de desinformação, houve tendenciosidade pura e simples.
Pois a sentença da Itália é de uma clareza cristalina, ao condenar Battisti por ações praticadas com o objetivo de subverter o Estado italiano, mediante o enquadramento em lei criada especificamente para combater a contestação armada dos ultras.
Então, o que houve aqui foi um verdadeiro contorcionismo jurídico: a sentença italiana estaria certa quanto à culpabilidade de Battisti em três homicídios e à autoria intelectual num quarto; mas estaria errada ao considerar política a motivação desses quatro assassinatos. Peluzo conseguiu ser mais linchador do que os próprios linchadores italianos...
Como a motivação política excluiria de imediato a possibilidade de extradição, o governo da Itália a requereu com o subterfúgio de mascarar a própria sentença que sua Justiça lavrou. Me engana que eu gosto.
E o ministro Cezar Peluso ousou, no seu relatório, omitir e não levar em consideração algo -- o caráter político dos delitos julgados -- que, conforme destacou seu colega Marco Aurélio de Mello, era citado nada menos do que trinta e quatrovezes na sagrada sentença italiana...
Por que? Aqui vou usar a liberdade que tenho, como leigo e como escritor, de apontar as motivações escancaradas mas não (passíveis de ser) provadas, de Cezar Peluso:
- ultraconservador e reacionário convicto, ele gostaria que a contestação política fosse criminalizada de uma forma que não é compatível com nosso atual ordenamento jurídico;
- então, na tentativa de impor uma derrota exemplar à esquerda, abrindo um precedente para a crucificação de outros contestadores aqui e alhures, ele tratou de mascarar a realidade do Caso Battisti (algo perfeitamente coerente com a "vocação arbitrária" que o grande Dalmo Dallari lhe atribui).
E o fez, p. ex., fingindo ignorar sua óbvia motivação política; utilizando cálculos engenhosos para eludir que a sentença italiana já estava prescrita; e se recusando a verificar (conforme lhe foi pedido pela defesa) se a condenação se deu mesmo à revelia, tendo Cesare sido representado por advogados que utilizaram procurações falsificadas para se passar por seus defensores, enquanto o prejudicavam e favoreciam co-réus.
Desde o início eu denunciei este vezo, primeiramente em Gilmar Mendes, depois em Cezar Peluso: eles queriam contrabandear para o Brasil a rigidez que os EUA e outros países adotaram a partir do atentado contra o WTC, limitando direitos humanos a pretexto de combaterem o terrorismo.
E, não encontrando respaldo para sua escalada autoritária nem no Executivo nem no Legislativo, tiveram de tentar resolver tudo na esfera do Judiciário, utilizando o Caso Battisti como ariete para arrombar várias portas legais.
Só criaram o caos. Depois de usurparem do ministro da Justiça a prerrogativa de decidir refúgio, detonando lei e jurisprudência, tentaram invadir também as prerrogativas do presidente da República, mas acabaram sendo detidos por um ministro que os apoiava, mas recuou horrorizado ante os descalabros jurídicos que se sucediam, cada um mais grave do que o anterior.
E chegamos à paradoxal situação atual:
- o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi chamado a decidir de novo o que seu governo já decidira, soberanamente e com pleno direito de o fazer;
- quando deu sua palavra final, de forma tecnicamente inatacável, o inacreditável Peluso passou a especular com a possibilidade de convencer os demais ministros do STF a atropelarem a decisão presidencial e o próprio veredicto anterior do Supremo, impondo uma espécie de tutela togada sobre a Presidência da República.
Desde 31 de dezembro estou repetindo: não se pode exigir de um presidente que submeta seus elementos de convicção à apreciação do Judiciário, pois ele não só é o condutor das relações internacionais do País, como, exatamente por tal motivo, detém informações sigilosas que embasam seus juízos mas não podem ser reveladas de público, sob pena de causarem tsunamis diplomáticos.
Já pensaram qual seria a reação italiana caso Lula tivesse alegado, p. ex., que Battisti jamais poderia ser entregue a um país cujo serviço secreto andou contatando mercenários para o assassinarem no exterior?!
E, tendo Lula alegado apenas os motivos que podiam ser citados sem causarem danos reais (há muita demagogia e alarmismo em circulação...) às relações entre Brasil e Itália, isto agora está dando margem a uma tentativa de questionamento de sua decisão, que, se bem sucedida, causaria terrível prejuízo para um perseguido que já teve seus direitos demasiadamente atingidos em nosso país.
O Caso Battisti, repito, verdadeiramente acabou há dois anos, mas o STF lhe deu sobrevida artificial... para nada.
En passant, foi-se alongando o encarceramento de quem não deveria ter sido sequer detido no Brasil e há quase quatro anos é mantido como nosso único preso político, para imensa vergonha de quantos juramos nunca mais deixar que o País incidisse nos abusos de 1964/85.
Pior: quando Peluso se recusou a libertar Battisti tão logo o presidente Lula rechaçou definitivamente o pedido de extradição italiano, o sequestro de Battisti se tornou inequívoco. Que outro nome darmos a uma prisão qualificada de ilegal por tantos e tão eminentes juristas?
Não tenho dúvida de que a escalada autoritária será detida no fundamental: a derrota do linchamento togado de Cesare Battisti fará recuarem momentaneamente as forças do obscurantismo, que tentam exumar as práticas autoritárias não só do macartismo à italianados anos de chumbo, como das próprias ditaduras latinoamericanas.
É importante, entretanto, que os defensores dos direitos humanos e os cidadãos com espírito de justiça não se desmobilizem após a mais que provável confirmação da decisão de Lula por parte do STF (a despeito de todos os subterfúgios de Peluso & Mendes), continuando a defender os institutos do asilo político e do refúgio humanitário contra a sanha dos caçadores de bruxas.
Inclusive lutando para que, em casos futuros que tramitarem no STF, seja restabelecido o status quo ante, eliminando-se o samba do crioulo doido jurídico produzido pela primeira votação do julgamento do Caso Battisti, quando o Supremo resolveu apreciar um refúgio já concedido pelo Governo, ao invés de simplesmente arquivar o pedido de extradição, como sempre fizera.