Bem que eu antecipei: depois de tanto haver lutado para obter o processo a que Dilma Rousseff respondeu durante o regime militar em tempo de produzir algum factóide capaz de influir na eleição presidencial, a Folha de S. Paulo seria agora "obrigada a soltar alguma reportagem" baseada no entulho ditatorial que tardiamente desencavou.
A matéria Dilma tinha código de acesso a arsenal usado por guerrilha, publicada no último sábado (20), confirmou tal previsão e também a que fiz em seguida:
"Pela qualidade atual do jornalismo da Folha, canto a bola desde já: vai ser imensamente inferior à da Época".
Ou seja, a revista Época publicou em agosto uma matéria de capa sobre Dilma que, se não foi perfeita, pelo menos tentou manter tanto equilíbrio e isenção quanto são possíveis em nossa grande imprensa.
Os questionamentos dos partidários de Dilma foram muito mais quanto ao momento escolhido para se dar tamanho destaque a seu passado de resistente e presa política, do que à forma como ele foi abordado.
Bem diferente da Folha, que produziu texto tão malicioso quanto aquele com o qual tentou vincular Dilma a um mirabolante plano de sequestro, nem sequer tentado; ou quanto o ridículo e rapidamente desmoralizado artigo de um seu colunista, tomando ao pé da letra uma piada de mau gosto do Lula sobre estupro.
Desta vez, o jornal intriguento força a barra para dar a impressão de que Dilma estava envolvida com as ações armadas da VAR-Palmares, embora as informações que encontrou no inquérito sem a mais remota credibilidade dos órgãos repressivos da ditadura só permitam depreender que ela era a militante a quem caberia cuidar da transferência do arsenal da Organização para outro local caso fossem presos os companheiros incumbidos das operações militares.
Enfim, o que o jornal quis foi martelar na cabeça dos leitores uma mensagem subliminar: a de que Dilma pertencia a uma organização da pesada, que enfrentava policiais com metralhadoras e bombas caseiras.
Para despistar, faz alusões às torturas contra resistentes, mas elas não chocam tanto, já que até hoje continuam sendo largamente utilizadas contra suspeitos de ocorrências policiais.
Ficou faltando, claro, a caracterização do inimigo combatido pela VAR-Palmares como a mais bestial ditadura que o Brasil já conheceu, responsável não só por sevícias as mais violentas e degradantes, como também por centenas de assassinatos (incluindo a execução a sangue frio de prisioneiros que deveriam estar sob a proteção do Estado), estupros, ocultação de cadáveres e outras abominações.
Sem tal contextualização, o que prevalece e transparece é a visão dos esbirros da ditadura sobre aqueles que os combatiam, pois a isto se resumiam os Inquéritos Policiais Militares do regime de exceção: peças de propaganda enganosa concebidas para causar impacto na opinião pública, seguindo a orientação dos serviços de guerra psicológica das Forças Armadas.
Que podemos dizer, p. ex., de quem, quando eu tinha 18 anos, espalhou cartazes no Brasil inteiro, com meu nome e minha foto, acusando-me falsamente de haver assaltado e matado pais de família?!
Rodoviárias, estações ferroviárias, aeroportos, correios e outras repartições, e até restaurantes exibiam tal acusação, cujos autores sabiam muito bem ser falaciosa: minhas funções eram organizativas e, quando enfim me processaram e condenaram, não me imputaram nada desse gênero.
A verdade e a verossimilhança eram o que menos importava nesses papeluchos ensanguentados -- síntese deturpada e tendenciosa do que os prisioneiros confessavam ou inventavam sob brutais torturas.
Tratando-se do jornal da ditabranda - que, nos anos de chumbo, cedia suas viaturas para a captura de resistentes e outros serviços sujos da repressão política -- faz todo sentido que a Folha esteja até hoje trombeteando a versão dos déspotas.
É apenas uma nova forma de tentar justificar seu passado vergonhoso: ora afirma que a ditadura era amena, ora carrega nas tintas para que os resistentes fiquemos parecendo muito mais violentos do que éramos.
E, aliás, tínhamos todo direito de ser, já que enfrentávamos uma tirania -- a de usurpadores do poder que recorriam ilimitadamente ao terrorismo de estado para manter subjugado o povo brasileiro.
PINGOS NOS II
O fato prosaico de Dilma Rousseff ter sido guardiã de um envelope fechado com o endereço do arsenal da VAR-Palmares está muito longe de ter a importância que a Folha lhe atribuiu.
Depois de remoer um pouco minhas recordações de quatro décadas atrás, caiu-me a ficha sobre o motivo dessa medida.
É que, em setembro daquele ano, três desafortunados militantes da VAR-Palmares tiraram o azar grande: seu veículo teve qualquer problema no Largo da Banana, à noite.
Tratava-se de um logradouro muito vigiado pela Polícia comum, no bairro paulistano da Barra Funda.
Não tiveram a prudência de abandonar o carro e ir embora, cada um para um lado. Ficaram tentando recolocá-lo em movimento.
Despertaram suspeitas em policiais que passavam numa viatura. Houve troca de tiros, na qual morreram Fernando Borges de Paula Ferreira (o Fernando Ruivo) e Luiz Fogaça Balboni.
O terceiro era João Domingos da Silva, o Elias, meu companheiro no Comando Estadual da VAR; ele liderava os grupos táticos, ou seja, as unidades de operações armadas.
O Elias ficou gravemente ferido, mas sobreviveu. As bestas-feras da Operação Bandeirantes, entretanto, o submeteram a torturas antes de que os ferimentos estivessem suficientemente cicatrizados. Teve uma hemorragia e morreu.
O companheiro, infelizmente, não tinha muito senso de organização: guardava as informações na cabeça. Perdemos aparelhos, armas e veículos que só ele sabia onde estavam.
Como resultado houve um verdadeiro caos, tendo quadros procuradíssimos de ser amontoados nos poucos aparelhos que restaram.
Ora, o Antônio Roberto Spinosa, do Comando Nacional, acompanhou de perto tal situação. Então, com certeza, deve ter sugerido a medida em questão, para diminuir a possibilidade de novas perdas.
Ou seja, o local do arsenal provavelmente seria do conhecimento de apenas um ou dois militantes, incumbidos de retirar as armas quando necessitadas; e alguém do Comando -- no caso, a Dilma -- guardaria o endereço, lacrado, só abrindo o envelope no caso de queda(s).
É ridículo a Folha, a partir desta providência rotineira, ficar buscando pêlo em ovo. Ela não estabelece vínculo real nenhum entre Dilma e o uso que era dado às armas.
Da mesma forma, quando foi adquirida a área inicial de treinamento guerrilheiro em Registro (SP), o Comando Nacional determinou que a propriedade ficasse em nome de um membro do Comando Estadual.
Era desaconselhável ou impossível para os demais fazerem essa viagem, então acabou sobrando para mim, embora meu setor fosse o de Inteligência.
No cartório de Jacupiranga, assinei a papelada sem ler. Não soube, naquele momento, nem sequer o nome da cidade. Olhava sempre para o chão.
Até hoje os sites ultradireitista dão grande importância ao fato de que meu nome aparecia na escritura desse sítio. No entanto, àquela altura, eu não tinha envolvimento real nenhum com a tarefa principal (instalação do foco).
Seria despropositado apresentarem-me como participante da guerrilha rural apenas por ter servido de fachada para a aquisição dessa área, assim como são despropositadas as prevenções que tentam criar contra a Dilma.
Alguns meses mais tarde, devido a um fato novo (eu ter-me tornado, também, alvo importante da repressão), acabei integrando a equipe precursora incumbida de preparar a escola de guerrilha para receber seus alunos. Mas, esta é outra história.
* Jornalista e escritor. http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/