Quando o historiador Marco Antonio Villa acusou o "lulismo" de perseguir Monteiro Lobato, eu retruquei: "o insignificante Conselho Nacional de (Des)Educação" apenas elaborara outro de seus "pareceres desnecessários e tolos", que não respaldava nem de longe tal generalização, pois apenas se constituiu num "exemplo da crassa ignorância de funcionários subalternos, incumbidos de tarefas além de suas qualificações".
O ministro Da Educação, Fernando Haddad, concordou, dando ao parecer o único destino cabível: a lixeira.
Para salvar as aparências, pediu ao CNE que elabore outro -- o qual, claro, não trará nenhuma recomendação obscurantista.
Quanto à conselheira Nilma Lino Gomes, que conseguiu seus cinco minutinhos de fama como uma dona Solange extemporânea, recomendo que compare o enfoque dado ao personagem Tia Nastácia com a forma como as domésticas negras eram verdadeiramente tratadas na época.
Lobato, longe de fazer dela uma caricatura racista, a coloca como integrante querida da família, com seus conhecimentos adquiridos na escola da vida, sua bondade e sua simpatia cativante.
Os pêlos em ovo que pretextaram tal parecer (frases soltas) apenas dão uma idéia de como o negro era vítima de preconceitos: a boneca Emília, por birra, repetia grosserias em voga.
A sábia Dona Benta, Pedrinho, Narizinho, o Visconde de Sabugosa, ninguém a apoiava, todos demonstravam respeito e consideração pela Tia Nastácia.
Isto, sim, diferia do usual na sociedade brasileira da primeira metade do século passado. Ótimo seria se os racistas estivessem em posição minoritária. Não estavam, muito pelo contrário.
Ao estabelecer tal contraste, Lobato apontava qual a postura correta e qual a errada. Estava combatendo o racismo, não o endossando.
Isto, diria Nelson Rodrigues, é o óbvio ululante. A ficha cairia para qualquer pessoa que se desse ao trabalho de ler alguns livros da série do Sítio do Picapau Amarelo antes de emitir pareceres ridículos.
O que não foi o caso da tal conselheira. Ela comeu na mão de um desses Torquemadas do politicamente correto e se deu muito mal.
E é uma crassa idiotice tratar crianças como seres incapazes de se defrontar com as realidades desagradáveis, que precisem ser colocadas numa redoma. A vida não as poupará e, quanto antes começarem a perceber a disparidade de comportamentos e valores, melhor.
Resumo da opereta: o CNE tem conselheiros que não conseguem sequer se posicionar com um mínimo de competência sobre a literatura infanto-juvenil. Deveriam perguntar a seus filhos.
A QUESTÃO AINDA É TRANSFORMAR O MUNDO
O que havia a se dizer sobre o politicamente correto, Karl Marx já disse, há exatos 165 anos, nas Teses sobre Feuerbach:
"A doutrina materialista de que os seres humanos são produtos das circunstâncias e da educação, de que seres humanos transformados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação mudada, esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar a sociedade em duas partes, uma das quais fica elevada acima da sociedade.
A coincidência do mudar das circunstâncias e da atividade humana só pode ser tomada e racionalmente entendida como praxis revolucionária." (3ª tese)
"Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo." (11ª tese)
Ou seja, os educadores que se arrogam o direito de decidir o que crianças (ou a sociedade como um todo) podem ou não ler, e com que ressalvas lhes devem ser apresentadas tais leituras, têm, eles próprios, de ser educados.
As mudanças das circunstâncias e da atividade humana só se dá por meio da prática revolucionária, não de uma educação mudada (ou expurgada, censurada, castrada, mutilada, maquilada, engessada, etc.).
Pois não basta a adoção de outras palavras para eliminar-se a carga de preconceitos com que as pessoas as impregnaram, nem fazer triagem de obras artísticas para extirparem-se os comportamentos condenáveis nela retratados.
Somente livrando a humanidade do pesadelo capitalista conseguiremos dar um fim a todas as formas de discriminação, pois uma das molas-mestras da sociedade atual é exatamente a busca da diferenciação, do privilégio, do status, da superioridade.
Enquanto os seres humanos forem compelidos a lutarem com todas as suas forças para se colocarem acima de outros seres humanos, será ilusório pretendermos tangê-los ao respeito mútuo por meio de besteirinhas cosméticas.
É desprezando os iguais que eles adquirem forças para a luta insana que travam, pisando até no pescoço da mãe para alçarem-se a outro patamar da hierarquia social.
Então, a verdadeira tarefa continua sendo a transformação do mundo, para que não haja mais hierarquia e sim a priorização do bem comum, com todos contribuindo no limite de suas possibilidades para que sejam atendidas as necessidades de todos.
Enquanto nos iludirmos com esses pequenos retoques na fachada do edifício capitalista, estaremos perdendo tempo: seus alicerces estão podres, para além de qualquer restauração.
Ou o demolimos e tratamos de erguer novo edifício em bases sólidas, ou ele ruirá sobre nós.
É simples assim.
* Jornalista e escritor. http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/