ANISTIA PARA UM CANALHA

A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça está às voltas com o segundo processo mais rumoroso em seus quase seis anos de existência: o de José Anselmo dos Santos, conhecido como  cabo Anselmo, embora tenha sido apenas marinheiro de primeira classe.

O assunto, que já vinha sendo abordado com algum destaque na mídia escrita e na Internet, deverá agora despertar o interesse de um público mais amplo, graças ao Linha Direta Justiça de 05/07/2007 da Rede Globo.

Em 2004, a Comissão de Anistia sofreu muitas críticas em razão do óbvio favorecimento ao escritor e jornalista Carlos Heitor Cony, que não só teve seu processo passado abusivamente à frente dos de dezenas de milhares de anistiandos que não eram celebridades, como recebeu uma pensão mensal vitalícia (e respectiva indenização retroativa) cujo valor, exageradíssimo, não condizia com as próprias regras do programa.

O caso atual é bem mais complexo.

O cabo Anselmo foi o principal agitador da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil no período que antecedeu a quartelada de 1964. Depois do golpe, passou vários anos foragido, esteve em Cuba treinando guerrilha e, de regresso ao Brasil, militou na luta armada contra o regime militar, ao mesmo tempo em que colaborava sub-repticiamente com a repressão da ditadura, atraindo seus companheiros para emboscadas.

Quando seu verdadeiro papel ficou evidenciado, ele passou a viver sob a proteção dos órgãos de segurança, que lhe proveram remuneração e fachada legal sob identidade falsa. De vez em quando, para aumentar os ganhos, concedeu entrevistas que foram publicadas com destaque na grande imprensa e até viraram livros.

O processo do cabo Anselmo, que tramita desde 2004 na Comissão de Anistia, não tem julgamento marcado. Ou seja, esse colegiado hesita porque ainda não tem clareza sobre como descascará o abacaxi.

Estigma da infâmia – O programa foi criado para oferecer reparações àqueles que sofreram danos físicos, psicológicos, morais e profissionais em decorrência do estado de exceção vigente no Brasil entre 1964 e 1985.

Então, caso o cabo Anselmo tenha realmente sido um militante revolucionário até o início da década de 1970, só então mudando de lado, sua vida foi mesmo afetada pelo arbítrio instaurado no País, independentemente do juízo moral que façamos de quem se vangloria de haver causado a morte de "cem, duzentos" idealistas que combatiam a ditadura e o tinham como companheiro.

Ou seja, se o poder não tivesse sido usurpado por um grupo de conspiradores em 1964, o cabo Anselmo continuaria presumivelmente servindo a Marinha, ao invés de se tornar um homem que há três décadas carrega o estigma da infâmia e precisa viver escondido no próprio país. Daí o seu direito formal à reparação que está pleiteando.

No entanto, a anistia federal foi uma tentativa de re-equilibrar os pratos da balança, depois que a Lei da Anistia de 1979 passou uma borracha no passado, equiparando carrascos e vítimas.

Naquele momento, os vitoriosos impuseram aos vencidos as condições para a pacificação: libertariam presos políticos e deixariam os exilados retornarem ao País desde que os assassinatos, torturas e atrocidades cometidos ou consentidos pela ditadura ficassem para sempre fora do alcance da Justiça e da Lei.

O Governo Fernando Henrique, não podendo ou não ousando  remediar  essa situação,  resolveu, pelo menos,  remendá-la, concedendo compensações financeiras aos humilhados e ofendidos.

Vilãos e vítimas – Daí o mal-estar causado pela impudência com que o cabo Anselmo pleiteou benefício de vítima, após ter sido um dos maiores vilãos do período. Do ponto-de-vista moral, é chocante ver um ser tão abjeto lado a lado com cidadãos dignos e sofridos; do ponto-de-vista legal, provavelmente não há como expulsar esse estranho do ninho.

A menos, claro, que se consiga comprovar a tese sustentada por vários de seus ex-colegas da Armada: a de que o cabo Anselmo desde o primeiro momento serviu à comunidade de informações, como agente infiltrado nos movimentos de esquerda.

Evidentemente, o Cenimar, o Deops e órgãos congêneres não atestarão que o cabo Anselmo já estava na sua folha de pagamentos quando tudo fazia para radicalizar os movimentos dos subalternos das Forças Armadas – fator decisivo para que a oficialidade decidisse quebrar seu juramento de fidelidade à Constituição, passando a apoiar o núcleo golpista.

Os indícios são fortes: não o expulsaram da Marinha embora houvesse motivos de sobra para tanto; e, logo depois do golpe, foi preso e solto em circunstâncias as mais suspeitas, conservando uma liberdade de movimentos de que nenhum outro perseguido político desfrutava.

Mas, as chamadas  provas circunstanciais  não bastam para privá-lo da reparação a que moralmente não faz jus.

E dificilmente aparecerão provas formais que justifiquem o indeferimento da anistia do canalha capaz de causar até a morte da militante que engravidara, tendo considerado mais importante garantir o massacre de seis revolucionários do que salvar a sua amante e a criança que ela concebia.

* Celso Lungaretti, jornalista e ex-preso político, foi militante da VPR, uma das organizações traídas pelo cabo Anselmo. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

 

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