Colaborou: Ismar C. de Souza
Eis duas maneiras totalmente distintas de relatar a morte de um policial durante o assalto simultâneo a dois bancos por parte da Vanguarda Popular Revolucionária:
“Na enésima hora Lamarca resolve participar, temeroso do que poderia ocorrer com tantos calouros estreando de uma só vez. Estaciona o carro e fica bebendo café num bar, a 50 metros de distância dos bancos, com seu .38 cano longo de competição guardado na bolsa capanga.
“Um transeunte percebe o que está acontecendo e alerta um guarda de trânsito. Inexperiente, o policial saca a arma e vai para a porta do banco, pronto para atirar no primeiro assaltante que sair.
“Lamarca retira o revólver da bolsa e atira daquela distância mesmo, pois não tem tempo para posicionar-se melhor. Pensa ter errado o primeiro tiro e dispara novamente. Crava uma bala na testa e outra na nuca do guarda.
“Depois, joga o revólver no carro e pega um fuzil. Com uma rajada para o alto, pára o trânsito e facilita a fuga dos companheiros. E, mandando os motoristas continuarem imóveis, vai calmamente até seu carro e dá a partida.” (Celso Lungaretti, “Náufrago da Utopia”, Geração Editorial, 2005)
“Na tarde de 09 de maio, Lamarca comandou o assalto simultâneo aos bancos Federal Itaú Sul-Americano e Mercantil de São Paulo, na Rua Piratininga, bairro da Moóca, cujo gerente, Norberto Draconetti, foi esfaqueado e o guarda-civil, Orlando Pinto Saraiva, morto com dois tiros, um na nuca e outro na testa, disparados por Lamarca, que se encontrava escondido atrás de uma banca de jornais. No final da ação, disparou uma rajada de metralhadora para o ar, como a marcar, ruidosa e pomposamente, o seu primeiro assalto a banco e o seu primeiro assassinato.” (site Terrorismo Nunca Mais, “Lamarca: a Trajetória de um Desertor”, www.ternuma.com.br/lamarca.htm).
Tal acontecimento foi notícia de primeira página nos jornais de todo o País em 1969. No entanto, durante a recente polêmica sobre a anistia do ex-guerrilheiro Carlos Lamarca, muitos veículos da grande imprensa, desconsiderando a informação correta facilmente encontrável em seus próprios arquivos, encamparam a insinuação do Ternuma, que omite o fato de terem se tratado de dois disparos de enorme distância.
A impressão que o texto capcioso do site de extrema-direita transmite é a de que Lamarca sai de trás de uma banca de jornal e fulmina o policial com dois tiros à queima-roupa. E a mídia acaba de embarcar nessa canoa furada: a menção ao “tiro na nuca” foi generalizada; a referência ao “tiro de longe”, praticamente inexistente.
Curioso, recorri aos sites de busca, atrás das fontes que induziram redatores e editorialistas ao erro ou lhes deram inspiração para agirem com má fé. Não precisei procurar muito. Eram, evidentemente, os Ternuma, Usina de Letras, Mídia Sem Máscara e A Verdade Sufocada da vida, que colocaram no ar um sem-número de textos protestando contra o que apresentaram como uma afronta do Governo Federal aos militares e (convenientemente) omitindo que tanto a anistia quanto a promoção póstuma de Lamarca a coronel já haviam sido decididas pela Justiça.
A propaganda enganosa chegou ao ápice no texto “Atentado ao QG do II Exército” (www.ternuma.com.br/qg-2exer.htm), no qual o Ternuma faz uma comparação entre as trajetórias do recruta que morreu nessa ação da VPR e Lamarca, com toque melodramáticos do tipo “o destino dos dois vai se cruzar tragicamente”.
Para sustentar esse enredo folhetinesco, não hesita em mudar a cronologia dos acontecimentos. Logo na primeira linha, diz que “em 1969, o jovem Mário Kosel Filho, conhecido em sua casa como ‘Kuka', é convocado para servir à Pátria e defendê-la”. Só se for o fantasma do pobre Kuka, já que o próprio morrera em junho de 1968!
Além disto, o boato de que tal atentado teria sido orquestrado por Lamarca, trombeteado até hoje pela direita troglodita, não sobreviveu à reconstituição da história do período, que só pôde ser empreendida com metodologia científica depois do fim da ditadura militar, quando provas e depoimentos ficaram, enfim, disponíveis.
Já se sabe que Lamarca, então ainda servindo como capitão no 4º RI, só passou a interessar-se pela VPR ao tomar conhecimento de que fora autora do roubo de armas de um hospital militar, quatro dias antes do episódio do QG.
Foi quando ele resolveu procurar contato com a VPR. Supor que, em tão curto espaço de tempo, ele conseguisse alcançar uma organização clandestina, convencê-la de que não era um espião inimigo e ser admitido no planejamento de uma ação armada é simplesmente inadmissível para quem conhece as práticas e as regras de segurança dos grupos guerrilheiros.
Lamarca ainda passaria meses indeciso entre a VPR e a ALN, só optando pela primeira no final do ano. E seu ingresso no Comando da VPR aconteceria em abril de 1969. Então, as decisões relativas àquela ação do QG devem, isto sim, ser imputadas aos comandantes da VPR em meados de 1968, principalmente o também falecido Onofre Pinto. Mas, para quem continua até hoje obcecado em satanizar Lamarca, o que importa a verdade histórica?
Aliás, há alguns anos tentei fazer o Ternuma corrigir uma dessas fantasias tendenciosas que coloca no ar. No artigo “O Fracasso Seqüestro do Cônsul dos EUA” (www.ternuma.com.br/consusa.htm), um tal F. Dumont afirma que, na iminência de seqüestrar o cônsul Curtis Carly Cutter, a VPR teria me incumbido de, antecipadamente, redigir um comunicado informando que o diplomata, interrogado pelos militantes, admitira sua condição de agente da CIA e a cumplicidade da espionagem estadunidense com a repressão da ditadura. Ou seja, atribuíram-me a participação numa farsa inconcebível tanto para mim quanto para a VPR.
Depois de um grande esforço de memória, consegui me lembrar de que o Juarez Guimarães de Brito realmente me pedira para escrever o texto do panfleto a ser deixado no local de uma não especificada ação de seqüestro (que acabou não acontecendo), para explicar seu significado político: a troca do diplomata por companheiros que estavam sofrendo torturas atrozes e correndo o risco de serem executados. Mandei um e-mail pedindo que corrigissem aquele besteirol ou o tirassem do ar. Em vão, claro.
Então, é assim que os sites dos antigos torturadores e dos novos integralistas tratam os acontecimentos dos anos de chumbo, infestando a Internet com proselitismo na linha de Goebbels ("Uma mentira dita mil vezes torna-se uma verdade"): as informações extraídas dos famigerados Inquéritos Policiais-Militares e da documentação secreta cujo paradeiro o Governo Lula diz desconhecer são misturadas a falsidades e interpretadas da forma mais distorcida possível, para servir aos objetivos propagandísticos da extrema-direita no presente.
“Militares no poder já!” – E quais são esses objetivos?
O principal deles é a acumulação de forças para um novo golpe militar, pregado ostensivamente por entidades como o Grupo Guararapes e o Partido Vergonha na Cara.
O primeiro, que faz proselitismo no seio das Forças Armadas desde 1991, acaba de lançar esta sediciosa conclamação “Às Forças Armadas do Brasil” (www.fortalweb.com.br/grupoguararapes/msg.asp?msg=239), amplamente divulgada nos sites, blogs e comunidades dos radicais de direita:
“Não temos governo. A anarquia inicia-se dentro do Gabinete da Presidência da República, onde o ocupante maior usa a mentira para se defender. Não é um estadista e sim um medíocre. Um fantoche nas mãos daqueles que desejam implantar um regime de força no País. O caso Lamarca, que fere o pundonor e a honra militar, é de sua inteira responsabilidade, como o chefe maior (...), e que acoberta seu Ministro da Justiça, um conhecido marxista, leninista e gransmicista. O Presidente Lula não merece mais o nosso respeito (...). Não o consideramos nosso chefe, pois ele não respeita nem cumpre a Lei, não merecendo nossa subordinação. O Grupo Guararapes, em defesa da honra da Nação brasileira, espera que as Forças Armadas revertam tal afronta. A honra ou a morte!”
Já o Partido Vergonha na Cara, cujos integrantes atuam principalmente no Orkut e usam narizes de palhaço em atos públicos, acaba de divulgar uma “Carta Aberta aos Militares” (http://br.geocities.com/partidovergonhanacara/) , pedindo que “as Forças Armadas cumpram o seu papel histórico e constitucional de proteger o Brasil de comunistas e assaltantes e criminosos que ameaçam o nosso país”. E termina seu manifesto com a exortação de “Militares no poder já!”.
Mais explícito, impossível.
* Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
P.S.: Peço antecipadamente desculpas aos leitores, caso os links citados não conduzam mais aos textos idem. Será uma reação previsível dos denunciados. E eu também já fiz o previsível, reunindo provas de que tudo isso estava no ar até o dia em que veiculei este artigo. (C.L.)
|