O tiroteio esquerda/direita não só torna difícil para os brasileiros que vieram depois a compreensão da realidade dos anos de chumbo, como confunde os cidadãos que querem formar opinião com imparcialidade e acabam perdidos num cipoal de argumentos jurídicos, políticos e éticos, além de muita propaganda enganosa.
O pior é que tudo ficou mal resolvido com a Lei da Anistia de 1979 (aquela que passou uma borracha no passado, igualando vítimas e carrascos) e com a redemocratização tímida de 1985. Então, os cadáveres insepultos teimam em voltar à tona.
O ideal para se fazer justiça, na minha opinião, teria sido estabelecer-se que:
1) Havia um governo legítimo e foi derrubado por conspiradores em 1964;
2) Os cidadãos tinham o direito e até o dever de resistirem por todos os meios possíveis aos governos ilegítimos de 1964/1985 e às suas arbitrariedades;
3) Todos os cidadãos que sofreram danos físicos, psicológicos, morais e profissionais em decorrência da quebra da normalidade constitucional fazem jus a reparações do Estado (incluindo os agentes de segurança atingidos pelos resistentes);
4) Não se podem punir todos os responsáveis pelo terrorismo de estado desencadeado no período, mas caberia a responsabilização penal dos generais-presidentes, dos signatários do AI-5, dos comandantes das Forças Armadas e dos centros de tortura, dos efetivos da "repressão clandestina" (Casa da Morte de Petrópolis, etc.) e dos grupos paramilitares de direita que realizavam atentados terroristas (Riocentro, etc.), bem como dos agentes de segurança responsáveis por execuções à sangue-frio (ou seja, aqueles que abateram resistentes rendidos e desarmados, como foi o caso do Lamarca);
5) Independentemente da reparação a que fazem jus os resistentes (ou seus herdeiros) por terem sido vítimas do arbítrio, aqueles que praticaram violência excessiva ou inútil deveriam ser também processados criminalmente. Uma coisa não exclui a outra.
Numa luta de resistência como a que foi travada no Brasil, era lícito assaltar bancos para sustentar os militantes clandestinos e seqüestrar diplomatas para trocá-los por presos políticos que estavam sofrendo torturas brutais e correndo risco de serem assassinados pelos algozes (como o foi o Bacuri).
Mas não, p. ex., jogar um carro com explosivos ladeira abaixo na direção de um quartel cujo comandante lançara um desafio público aos guerrilheiros. Isso foi responder a uma bravata com outra, ou seja, uma puerilidade inaceitável em revolucionários. Merecia, sim, punição.
No entanto, este pacote só faria sentido na saída da ditadura, em 1985. Agora, que a maioria dos personagens importantes morreu, ficou impraticável.
Dos resistentes aos quais se poderiam imputar excessos, se há sobreviventes, contam-se nos dedos das mãos. Foram alvos preferenciais da política de extermínio que a ditadura implementou no período 1971/73.
Dos torturadores, quem ainda pode receber a punição merecida (ainda que somente moral) é o Brilhante Ustra.
Seria edificante se alguém propusesse uma ação civil contra os signatários do AI-5 ainda vivos, como o Jarbas Passarinho. Não para prendê-los, mas para deixar bem clara sua responsabilidade pelo festival de horrores e tragédias que eles coonestaram. Tanto quanto o Brilhante Ustra, merecem figurar nos livros de História com o estigma da infâmia.
E o programa da anistia federal deve ser levado a bom termo, pois se trata de um avanço no sentido da civilização, assim como o foram o julgamento dos criminosos de guerra em Nuremberg e as indenizações que a Alemanha pagou às vítimas do nazismo.
Mas, exatamente por isso, não pode relaxar seus critérios para propiciar jogadas promocionais.
E muito menos para favorecer celebridades e pessoas com bons contatos em Brasília. Tais casos são em número bem menor do que a direita alega, não passam de algumas dezenas, mas um único já seria demais!
* jornalista, escritor e ex-preso político anistiado pelo Ministério da Justiça
- Celso Lungaretti (*)
- Editorial