A Folha de S. Paulo mentiu descaradamente:
“Por 7 votos a 2, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que a Lei da Anistia não pode ser alterada [grifo meu] para possibilitar a punição de agentes do Estado que praticaram tortura durante a ditadura militar (1964-1985)”.
O Estado de S. Paulo mentiu descaradamente:
“A anistia é ampla, geral e irrestrita. O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu ontem que a Lei de Anistia é válida e, portanto, é impossível processar penalmente e punir os agentes de Estado que atuaram na ditadura [grifo meu] e praticaram crimes contra os opositores do governo como tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados”.
O Globo , quem diria, foi o jornalão que relatou corretamente o ocorrido:
“Por sete votos a dois, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira arquivar a ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que contesta a Lei de Anistia, o que mantém vedada a possibilidade de processar torturadores [grifo meu]. A mesma regra vale para quem lutou contra o regime militar”.
Pois, exibicionismos retóricos e penduricalhos ideológicos à parte,
o que o STF realmente decidiu na 5ª Feira Negra (29/04) foi:
não cabe ao Judiciário alterar a Lei da Anistia, pois esta tarefa
competiria ao Congresso Nacional. Só isto. Quem ler com atenção
o relatório do ministro Eros Grau constatará que é este
o fulcro da questão.
Portanto, se o Congresso Nacional decidir revogar a anistia de 1979 e substitui-la
por outra Lei, ou simplesmente alterá-la, poderá fazê-lo
quando bem lhe aprouver. E, nesse caso, seria, sim, possível “processar
penalmente e punir os agentes de Estado”.
Conforme venho afirmando desde agosto de 2008, o grande erro da esquerda foi
ter tirado esta discussão dos trilhos: o que havia a se fazer com a
anistia imposta em 1979 pela ditadura de 1964/85 era dar-lhe o mesmo tratamento
do restante do entulho autoritário. Deveria ser deletada pela democracia
e substituída por outra, gerada em liberdade.
Mas, para tal parto, era fundamental a anuência do Executivo, com seu
formidável poder de fogo, e do Legislativo, que é quem dá a
formatação.
Havia, entretanto, consideráveis obstáculos:
- no Ministério prevalecia a corrente reacionária de Nelson Jobim, cuja função tem sido muito mais a de porta-recados dos comandantes militares do que a de seu superior;
- o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sempre preferiu deixar tudo como estava, desautorizando duas vezes a ala então encabeçada por Tarso Genro e Paulo Vannuchi, daí a orientação que a Advocacia Geral da União tem seguido, de endossar a impunidade dos torturadores;
- não se vislumbrava possibilidade nenhuma de o Congresso sequer aceitar mexer na anistia de 1979 sem um empenho do Governo neste sentido (as bancadas direitistas seriam naturalmente contrárias e a governista estaria, no mínimo, dividida, daí resultando um cenário óbvio de derrota).
O que a esquerda poderia ter feito em 2008?
Agir como esquerda: iniciar essa cruzada nas ruas e nas praças (além
da web, claro...), convencendo primeiramente a sociedade, para que esta pressionasse
os Poderes, de baixo para cima.
O que a esquerda fez?
Escolheu a opção menos trabalhosa, mas que manteve a luta restrita
a uma minoria politizada: desencadeou uma guerrilha jurídica, utilizando
o subterfúgio de descaracterizar os genocídios e atrocidades
perpetrados pela ditadura militar, ao apresentá-los como se fossem iniciativa
espontânea de subalternos e não ordens recebidas dos superiores,
começando pelos generais ditadores.
Ou seja, na vã esperança de colocar uns velhos caquéticos
na prisão, a esquerda se dispôs a avalizar uma das grandes falácias
da ditadura: a de que aquele festival de horrores nos porões nada mais
seria do que excessos cometidos por alguns aloprados, ao invés de constituir
a própria essência do regime.
Resultado: nossa pior derrota política desde a redemocratização
do Brasil.
ALGOZES E VÍTIMAS
Pois a leitura que a indústria cultural está martelando do julgamento
no STF, com recursos infinitamente superiores aos nossos para fazer a cabeça
da maioria da população, embaralha algozes e vítimas,
sem deixar claro quem foi o quê.
Parecerá ao cidadão comum que os dois lados extrapolaram os limites
civilizados e a melhor solução é passar-se uma borracha
em cima.
É o que sempre alegaram as viúvas da ditadura : não
tendo como negar a ocorrência de execuções, torturas, estupros,
ocultação de cadáveres e outros crimes bestiais cometidos
pelos golpistas de 1964 e seus sicários, passaram a imputar práticas
semelhantes aos resistentes, pinçando um ou outro episódio infeliz
e trombeteando-o ad nauseam em sua propaganda goebbeliana.
Ou seja, tentam fazer com que a exceção tenha o mesmo peso da
regra, omitindo que em todas as lutas contra a tirania através dos tempos
foram cometidos erros, sem que isto descaracterizasse o fundamental em tais
confrontos: uns lutam para perpetuar o arbítrio e outros para dar-lhe
fim.
De resto, em seu interminável e chatíssimo blablablá,
os ministros do Supremo não deram resposta satisfatória a uma
questão crucial: leis votadas por Congressos que funcionam precariamente
em regimes de exceção têm o mesmo peso das produzidas na
vigência plena das liberdades democráticas?
Pois o Congresso que pariu a anistia de 1979 era aquela casa da sogra que os
militares fechavam tantas vezes quantas quisessem, cassando seus membros a
bel-prazer, dissolvendo e/ou reorganizando partidos na marra e impondo restrições
as mais arbitrárias a quem pretendesse se candidatar a uma cadeira.
Ou seja, tratava-se de um Congresso purgado, manietado e intimidado, que funcionava
como Poder de fachada, pois o verdadeiro e único Poder estava na caserna.
Pretender que o mostrengo engendrado nessas condições – a anistia
que igualou algozes e vítimas – tenha sido um pacto sagrado de conciliação
nacional, desculpem-me os doutos ministros, é simplesmente risível.
No fundo, os parlamentares estavam pisando em ovos e a esquerda anuiu sob chantagem,
pagando o preço que lhe impuseram para a libertação de
presos políticos e o retorno seguro dos exilados.
A anistia que os algozes concederam a si próprios foi uma aberração
jurídica, inclusive, porque nenhum deles tinha sido ou estava sendo
punido de forma nenhuma. Colocou-se no mesmo plano a anistia das vítimas
presas/barbarizadas e o habeas corpus preventivo dos criminosos recompensados/promovidos.
O julgamento da 5ª feira Negra nada fez para
desestimular a eventual repetição de tais farsas.
Se é para avalizar o que a lei do mais forte determinou, para que precisamos
de uma corte suprema?
* Jornalista, escritor e ex-preso político. Blogues:
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/