Conscientes de que cometiam um delito, os autores não assumiram a "obra". É estarrecedor que se possa, anonimamente, assacar calúnias tão graves contra um morto. A internet continua uma terra sem lei, infestada de fichas falsas e versões falaciosas. Até quando?
Mas, quem a postou foi tolo a ponto de acrescentar, na sinopse introdutória, uma recomendação que equivale a uma assinatura: "Conheça mais sobre sua trajetória em www.ternuma.com.br".
Está repleta de sórdidas mentiras, como a de que Lamarca enviou sua família a Cuba, não para colocá-la a salvo da sanha dos militares torturadores quando se tornasse conhecida sua adesão aos movimentos de resistência, mas em razão da relação amorosa que já estaria mantendo com Iara Iavelberg.
Esta foi, na verdade, iniciada meio ano depois, quando ele já militava na clandestinidade, sendo um dos líderes revolucionários mais perseguidos pela ditadura.
A infamia dos fascistas virtuais é não só desmascarada pelos relatos dos sobreviventes, como se choca com a própria sistemática da luta armada: tal envolvimento representaria, em 1968, um altíssimo risco de segurança, sendo ele um militar na ativa e ela uma resistente cuja identidade a repressão já conhecia.
Vale acrescentar que manter vida dupla conflitava tanto com a moral revolucionária quanto com o espírito militar, que marcava muito a personalidade de Lamarca.
Ele, inclusive, hesitou durante três meses antes de ceder à atração que surgira entre ambos, o que só veio a acontecer em meados de 1969. E, no final do ano, quando participamos juntos da equipe precursora da instalação de uma escola de guerrilhas em Registro (SP), ainda sentia-se culpado e pesaroso, chegando a chorar quando recebia cartas da família.
Outra invencionice ignóbil é a de que ele teria castrado o tenente Alberto Mendes Jr. e o forçado a engolir os órgãos genitais. Esta patranha fazia parte da propaganda enganosa que os serviços de guerra psicológica das Forças Armadas disseminavam na época, sem comprovação de espécie alguma. Puro Goebbels: martelar tanto uma mentira que ela acabasse passando por verdade.
E quem conhece, por pouco que seja, a política do período, morrerá de rir com a afirmação de que Lamarca estava a soldo de Cuba e da União Soviética.
Não só seria a forma mais arriscada do mundo para alguém ganhar dinheiro, como a URSS era inimiga figadal das guerrilhas latino-americanas: os partidos comunistas sob sua orientação boicotaram a luta de Guevara na Bolívia e tudo fizeram para atrapalhar os planos de Lamarca, inclusive denunciando-o como agente da CIA em seu jornal.
Ridículo extremo é insistirem em que Lamarca teria sido morto em combate, quando já não existe dúvida nenhuma, nem de historiadores idôneos nem do Estado brasileiro, quanto ao fato de ele haver sido executado depois de rendido (a exemplo do que aconteceria com a maioria dos guerrilheiros do Araguaia).
Não só o Ministério Público Federal tem obrigação de apurar o crime que está sendo perpetrado contra a verdade histórica e a memória de um herói nacional, como Chico Buarque e Milton Nascimento não podem consentir que uma imundície dessas utilize na trilha musical suas gravações de "Apesar de Você" e "Cálice".
Raul Seixas, por sua vez, deve estar revirando na cova, face a uso tão repulsivo de sua interpretação de "Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones".
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* Jornalista, escritor e ex-preso político,
militou com Lamarca na VPR. Blogues:
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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