Com seu habitual estilo contemporizador, primeiramente deu tempo ao tempo, esperando a temperatura política baixar.
Depois, fez retoques semânticos na terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos, conforme o ministro da Defesa (Nelson Jobim) propôs e o dos Direitos Humanos (Paulo Vannuchi) concordou.
[A reunião, segundo a imprensa, durou apenas "pouco mais de meia hora", reforçando a impressão de que os atores estavam mesmo é posando para suas respectivas clientelas, bem ao estilo do teatro político...]
Então, onde se dizia que a Comissão Nacional da Verdade iria apurar os crimes cometidos pela repressão política, agora está dito que o foco de suas investigações serão as violações de direitos humanos.
Ponto para os militares? Nem tanto. Pois não se-lhes concedeu o que eles mais gostariam de ver no papel: a equiparação das atrocidades da ditadura às ações v iolentas dos resistentes. Tal mostrengo foi considerado inaceitável, felizmente.
Só que não se cravou a estaca no coração do vampiro, pois competirá à Comissão "identificar e tornar públicas as estruturas utilizadas para a prática de violações de direitos humanos, suas ramificações nos aparelhos de Estado, e em outras instâncias da sociedade".
Ou seja, nesse balaio entra qualquer coisa, conforme o gosto do freguês.
É óbvio que as estruturas transgressoras dos direitos humanos, ramificadas nos aparelhos de Estado, nada mais eram do que o DOI-Codi, os Dops (depois Deops) e os serviços secretos do Exército, Marinha e Aeronáutica,
Quanto às ramificações dessas estruturas em outras instâncias da sociedade, aí há pano para manga.
Democratas colocarão neste escaninho:
- a Operação Bandeirantes, filha bastarda que nenhum pai registrou em cartório (foi estrutura informalmente por militares e policiais civis, com financiamento de empresários fascistas) mas deteve poder de vida e morte sobre os resistentes;
- os aparelhos clandestinos da repressão, como a Casa da Morte de Petrópolis e o sítio do delegado Sérgio Paranhos Fleury, para onde eram levados os resistentes cuja prisão não se pretendia formalizar, pois estavam marcados para morrer e evaporarem;
- os procedimentos ilegais, criminosos e hediondos efetuados no âmbito da Operação Condor;
- o Comando de Caça aos Comunistas (que voltou ao noticiário ultimamente por conta da incontinência verbal de um de seus quadros históricos) e bandos congêneres de paramilitares;
- os terroristas que lançavam bombas em instituições como a OAB e a ABI, incendiavam bancas de jornais e planejaram o atentado do Riocentro.
OS CORVOS E SEUS GRASNADOS
Mas, o Jarbas Passarinho e outras aves de mau agouro decerto vão grasnar que as vítimas também cometeram excessos, ao reagirem à truculência dos governos golpistas e respectivos carrascos.
E seus grasnados soarão em volume exageradíssimo na grande imprensa, ensurdecedores a ponto de abafar os argumentos dos seres humanos sensatos e justos. Como sempre.
Então, tudo doravante dependerá, inicialmente, do grupo interministerial que vai elaborar o projeto de lei instituindo a Comissão da Verdade; e depois, de sua tramitação no Congresso Nacional.
O primeiro deveria concluir seu trabalho até 21 de abril, para constar das comemorações do dia de Tiradentes. Vamos ver se o timing será mantido.
Mesmo que não haja prorrogação, dificilmente o Congresso dará à luz essa lei nos oito meses finais do Governo Lula. Ainda mais se tratando de um ano eleitoral, em que o esvaziamento de suas sessões já se tornou uma melancó lica rotina.
O balanço final do episódio, portanto, é:
- apesar de alguma ambivalência no tocante à Comissão da Verdade, a decisão de Lula manteve a integridade do PNDH-3;
- caberá aos democratas, com sua mobilização, evitarem que seja desfigurado adiante;
- o abacaxi só será efetivamente descascado (ou não) pelo próximo Governo, a quem caberá colocar em prática ou manter no limbo as iniciativas do PNDH-3;
- os alarmistas da grande imprensa caíram em ridículo total, ao apresentarem como golpe de estado um pacote de medidas que o Governo tem pleno direito de propor, mas cuja implementação depende do crivo parlamentar, como é regra nas democracias.
Talvez o mais auspicioso deste episódio tenha sido a constatação de que Lula aprendeu a dar o justo peso aos blefes militares.
Há dois anos e meio, uma nota oficial do alto comando do Exército o fez desistir da cassação do habeas corpus que os criminosos da ditadura militar previamente se concederam: impôs a diretriz de que a Lei de Anistia permaneceria intocável, no âmbito do Executivo.
De lá para cá, Lula adquiriu uma melhor percepção da força de que realmente dispõem os reacionários: não passam de liliputianos que os holofotes da mídia fazem parecer gigantes.
E está se permitindo até escarnecer das tempestades em copo d’água da imprensa, como quando negou que Jobim, Vannuchi e os comandantes militares o tivessem pressionado com pedidos de demissão:
“A única coisa que chegou na minha mão foram divergências entre dois ministros, que foram resolvidas hoje [13/01]".
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* Jornalista e escritor, mantém os blogues
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