JÁ NÃO EXISTE MOTIVO PARA SE MANTER BATTISTI PRESO

O inusitado desfecho do julgamento do pedido de extradição italiano no Supremo Tribunal Federal obriga os personagens deste drama a reavaliarem todos os seus planos e linhas de ação. O passado passou. Há uma nova realidade:

- quem decidirá se Cesare Battisti vai ser ou não extraditado é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva;

- mas, o presidente Lula só poderá fazê-lo quando receber o acórdão publicado do STF, em 2010;

- o interesse de todos -- e dos brasileiros em geral, por causa da imagem do País perante o mundo -- é o de que Battisti esteja vivo e tão saudável quanto possível no momento em que Lula tomar sua decisão.

Battisti acaba de encerrar uma greve de fome de 10 dias, mas sua estabilidade física e emocional foi muito afetada pelas amargas e sucessivas decepções dos últimos anos, que lhe causaram seguidas crises depressivas.

A França lhe concedeu a solene garantia de que viveria em paz até o fim dos seus dias, mas o compromisso foi revogado com a troca de presidente.

No Brasil, todos lhe disseram que ele seria libertado caso o Governo Federal lhe concedesse refúgio, pois era o que determinava a Lei e o que balizava a jurisprudência.

Já estava a planejar sua nova vida quando foi surpreendido pela notícia de que o STF o manteria preso. Desde então, a depressão o acompanha.

Agora, sabe de que a decisão do seu caso está na dependência da publicação de um texto legal em prazo indeterminado.

Ora, a experiência anterior lhe adverte que isto poderá demorar muito -- afinal, a marcação do julgamento do seu caso vinha sendo prometida por Gilmar Mendes desde fevereiro e acabou ocorrendo só em setembro, depois do jurista Dalmo de Abreu Dallari haver acusado o presidente do STF de estar impondo ao extraditando uma pena independente de condenação.
 
Cabe uma pergunta: é justo submeter-se um ser humano a tal via crucis? Preso sem condenação e sem dia certo para ter sua sorte decidida, Battisti abre os olhos cada manhã para constatar que continua encarcerado, embora devesse estar livre.

LINCHAMENTO MIDIÁTICO - Para quem acompanha o caso pela grande imprensa, não há motivo para compaixão: o terrorista italiano matou quatro cidadãos angelicais e agora está sendo protegido pelos terroristas do Governo Lula. Fim de papo.

Só que a mídia, extremamente tendenciosa, deixa de informar seus leitores que, na sentença de 1979, Battisti (então réu presente) não foi condenado por nada disso, apenas por subversão contra o Estado.

Que o processo foi reaberto em 1987, a partir das delações premiadas do chefe do grupúsculo a que Battisti pertenceu, o Proletários Armados para o Comunismo.

Que o tal Pietro Mutti atirou sobre Battisti a culpa por crimes que ele próprio praticou, uma prática quase sempre impugnada pela Justiça.

Que só corroboraram as acusações de Mutti outros réus interessados nos favores da Justiça italiana.

Que os promotores, dando total crédito às fantasias interesseiras de Mutti (o qual, noutro processo, seria repreendido nas atas por um magistrado, pelas sucessivas mentiras desmascaradas), passaram pelo vexame de serem confrontados com a impossibilidade física de Battisti ser responsável por duas mortes a ele atribuídas, já que ocorreram com intervalo de duas horas em localidades que distavam 500 quilômetros. Então, simplesmente reescreveram a acusação, mantendo-o como autor direto de um dos homicídios e atribuindo-lhe autoria intelectual do outro (o do joalheiro Torregiani).

Que a acusação ousou apresentar testemunhas menores de idade e uma que evidenciava problemas mentais. Mesmo assim, foram acolhidas.

Que não foram feitas ou não foram apresentadas ao tribunal perícias obrigatórias num caso desses.

Que os defensores de Battisti já comprovaram, de forma irrefutável (laudo de respeitadíssima perita francesa), ter sido ele representado nesse julgamento por advogado que utilizou procuração adulterada e com quem ele tinha conflito de interesses.

Que, portanto, seu direito de defesa foi escamoteado, pois, foragido, não há prova real nenhuma de que Battisti tenha sequer tomado conhecimento da realização desse julgamento (a que foi aceita pelo tribunal, comprovou-se depois não passar de uma tosca falsificação).

Que, no julgamento de 1987, Battisti foi enquadrado numa lei instituída para combater a subversão contra o Estado e por ela condenado, o que a sentença cita nada menos do que 34 vezes, não havendo a mais remota alusão a crimes comuns (aliás, se fosse este o caso, cada um dos homicídios atribuídos a Battisti deveria julgado à parte, não os quatro de uma vez).

Que a Itália não combateu nem julgou de forma democrática os grupos de ultraesquerda, pois as torturas e as distorções jurídicas estão fartamente documentadas, inclusive em sucessivos relatórios da Anistia internacional.

Que a pena cujo cumprimento a Itália reclama já prescreveu, o que o ministro Marco Aurélio de Mello, em seu voto no STF, estabeleceu de forma definitiva.

Que os serviços secretos italianos tramaram o sequestro de Battisti em 2004, buscando mercenários para executarem a tarefa, mas estes acabaram recusando-a por discordarem do preço do "serviço" (e tudo acabou vazando para a imprensa);

Que membros de associação de carcereiros prometeram retaliar Battisti caso ele caia nas suas garras.

Que o ministro italiano da Defesa, Ignazio La Russa, neofascista notório (chegou a discursar em homenagem aos fascistas da República de Saló que enfrentaram as tropas aliadas), é inimigo pessoal de Battisti, pois se enfrentaram cara a cara em conflitos de rua da década de 1970, e agora dá declarações dúbias, insinuando, também, retaliações.

Tudo isto foi omitido dos leitores da grande imprensa, ou apresentado com ínfimo destaque.

Da mesma forma, a mídia esconde que, entre os juristas brasileiros (inclusive os luminares do Direito), a tendência predominante é favorável a Battisti.

Que a Lei do Refúgio brasileira é essenciamente humanitária, daí conter vários preceitos que impunham o reconhecimento de Battisti como tal, o que obrigou o ministro Cezar Peluso, em seu criticadíssimo relatório inquisitorial, a incorrer em grotescas distorções factuais e malabarismos jurídicos para negar seu enquadramento em cada uma das situações que o beneficiavam.

Que as comissões respectivas da Câmara Federal e do Senado são contrárias à extradição.

Que, longe de serem apenas uma "ruidosa minoria", os defensores de Battisti são maioria entre quem tem acesso às versões dos dois lados - caso, p. ex., dos internautas.
 
O OUTRO LADO, TÃO OMITIDO - Então, tudo isso considerado, olhemos o caso pelo ângulo alternativo: e se Battisti não passou de um integrante secundário dos PAC, que já se desligara desse agrupamento quando os crimes foram cometidos?
 
Aí, sua culpa terá sido apenas a de subversão contra o Estado -- exatamente a sentença que recebeu no primeiro julgamento.
 
Tal condenação justificaria a sanha vingativa com que o perseguem, três décadas depois?
 
Mais: respaldaria sua manutenção no Centro Penitenciário da Papuda enquanto a burocracia judicial leva meses para relatar o que todos vimos ao vivo e em cores na TV Justiça?
 
Como Battisti não teve prisão preventiva decretada por delito cometido no Brasil, o único pretexto para sua prisão era garantir a entrega à Itália, caso a extradição fosse deferida.

Ao negar cerca de meia dúzia de pedidos de liberdade apresentados pela defesa de Battisti, o relator Cezar Peluso, em última análise, implicitou sua desconfiança na capacidade do Governo Federal de vigiar um cinquentão franzino.

Agora, no entanto, o próprio STF decidiu depositar o destino de Battisti nas mãos do presidente Lula. Tão desacorçoado Peluso ficou que até se disse impossibilitado de redigir a parte do acórdão relativa à decisão em que foi voto vencido, preferindo delegá-la a representante da posição vencedora.

Seria um ato de elementar coerência ele abrir mão, também, da prisão de Battisti determinada pelo STF, deixando a Lula o cuidado de garantir que o escritor possa ser entregue à Itália - ou seja, a responsabilidade de evitar que fuja ou que sofra atentado.

É impensável que a Polícia Federal não possa cumprir uma tarefa tão simples como esta.

Como os serviços secretos italianos chegaram a entabular negociações com mercenários para o sequestro de Battisti em 2004, a evasão seria simplesmente impensável para Battisti neste instante. Quem trocaria uma boa chance de adquirir a proteção de um país como o Brasil pela vulnerável situação de fugitivo?

O Brasil lucraria com o esvaziamento de uma situação potencialmente muito danosa. Neste momento, responde por qualquer agravamento das condições físicas e psicológicas de Battisti. Como os que costumam sobrevir a quem passa o Natal numa cela de prisão - ainda mais se, como é o caso, considera-se injustiçado.

O benefício final seria o de que o Caso Battisti, colocado finalmente nos eixos, iria perdendo essa importância desmesurada que adquiriu em função de seu mau encaminhamento.

Já houve estragos demais, então chegou a hora de apagarmos os incêndios. Com flexibilidade e bom senso.




* Jornalista e escritor, mantém os blogues
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   http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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