Polanski foi detido há quase dois meses na Suíça por causa de uma acusação que os pais de uma adolescente dos EUA lhe fizeram em 1977: a de que teria embebado e abusado da filha, uma modelo de 13 anos deixada desprotegida numa festa de figurões do cinema.
Polanski admitiu apenas haver mantido relações sexuais consentidas com a garota, que não era mais virgem.
Libertado à espera de julgamento, escafedeu-se e decidiu nunca mais pisar em solo norte-americano, nem no de países com quem os EUA mantêm tratados de extradição. Temia um daqueles linchamentos judiciais de que os norte-americanos são useiros e vezeiros, vide os casos de Sacco e Vanzetti e do casal Rosemberg.
Nada receava na Suíça, onde até tem até um chalé.
Mas, os cucos desafinaram: a Suíça recentemente firmou um desses tratados e, num toma-lá-dá-cá muito bem exposto pelo companheiro Rui Martins, entregaram a cabeça de Polanski aos mastins.
Ignorando a novidade, Polanski foi lá para ser homenageado num festival de cinema e acabou preso, à espera de extradição.
Para que o médico parecesse monstro, andaram falando, de forma mistificadora e demagógica, em estupro.
Só que, para os farisaicos moralistas estadunidenses, qualquer relação sexual com menor de idade é estupro, mesmo não envolvendo violência.
Aquele país foi forjado por puritanos, não esqueçamos. Indivíduos totalitários e fanatizados, tão obsessivamente determinados a impor sua repressão sexual a toda a sociedade que os ingleses não aguentaram mais: livraram-se deles, expulsando-os para a colônia.
Os portugueses mandaram para cá a ralé, os criminosos. Eu jamais os trocaria pelos quacres. Prefiro marginais do que tiranos.
Mas, voltemos às desventuras de Polanski.
O certo é que se desprezou a possibilidade de a garota ter sido deixada à mercê dos marmanjos para que acontecesse exatamente o que aconteceu.
Novamente, não esqueçamos: uma armadilha dessas acabou com a carreira de Mike Tyson.
Só uma corte de debilóides estadunidenses seria capaz de engolir a lorota que a vigarista contou.
Que mulher vai no apê de um gorila como Tyson, de madrugada, para outra coisa? Estaria interessada na coleção de selos dele?
E que outra reação uma mulher pode esperar de um gorila como Tyson, se o excitar e depois disser que não está mais a fim?
No Brasil, provavelmente seria condenada por aplicar uma variação do golpe aqui conhecido como suadouro. Merecidamente.
Também não se levou em conta que a suposta vítima de Polanski há muito tempo retirou a acusação contra ele. Aliás, acaba de implorar às autoridades que deixem-na em paz e deixem Polanski em paz.
O que sobrou desse imbroglio, três décadas depois? Nada, afora a intransigência e a compulsão por holofotes dos justiceiros estadunidenses.
Agora, constatando que nenhum ser humano sensato aprova esse simulacro de justiça, estão tentado sair da enrascada em que se meteram de forma torpe, pois torpes eles são. Então, ofereceram a Polanski uma barganha imunda, conforme despacho da agência Reuters:
"Os Estados Unidos querem que ele seja extraditado por ter tido relações sexuais com uma menor de idade. Essa acusação é passível de no máximo dois anos de prisão, pelas leis norte-americanas", disse na sexta-feira o porta-voz do ministério suíço Folco Galli.
"Se Polanski concordar voluntariamente com a extradição, o processo poderá ser concluído rapidamente", disse Galli. "Se a decisão for combatida, pode levar meses e meses."
Fontes judiciais dos EUA disseram que o processo de extradição é complexo e, se Polanski o contestar, poderá se arrastar por anos.
Ou seja, não se fala mais em estupro, que não houve mesmo. E se coloca a alternativa: ou a aceitação de uma pena branda ou o risco de passar anos mofando numa prisão suíça.
Não duvido que haja uma cláusula secreta na proposta indecente: a de que, logo depois da condenação, ele será colocado em liberdade condicional.
É um homem de 76 anos, sofrido e com trabalhos importantes por realizar, não um ocioso com afazeres irrelevantes e tempo infinito para procurar pêlo em ovo, como seus perseguidores. Vai daí que talvez acabe concedendo essa aparência de triunfo aos liliputianos ressentidos.
Tem todas as atenuantes. E o desfecho seria cinematográfico, lembrando uma obra-prima de Ingmar Bergman: O Rosto (1958).
Nesse filme, um artista usa seus talentos para amedrontar mortalmente os poderosos que quiseram humilhá-lo, mas não leva até o fim o confronto, preferindo um recuo estratégico.
Torço para que Polanski nos dê, na vida real, a mesma lição de dignidade que deu em fitas como O Pianista.
Quando eu era um jovem inquieto, procurando meu caminho na vida, fui tocado por uma peça sobre Galileu Galilei, a que assisti em montagem amadora num teatro do meu bairro.
Tinha uma frase que nunca esqueceria, tanto que a adotei para uso pessoal e procuro segui-la até hoje:
"Há um mínimo de dignidade que não se pode negociar. Nem mesmo em troca da liberdade. Nem mesmo em troca do sol".
* Jornalista e escritor, mantém os blogues
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