"Seja qual for a decisão vai ser respeitada, mas é necessário dizer que abre um precedente extremamente grave no balanço, na relação equilibrada entre os Poderes da República".
Não, Sr. Ministro, essa decisão não pode ser respeitada sem que o Executivo esgote até o último cartucho legal para preservar o equilíbrio entre os Poderes.
Entre outros motivos, porque o cidadão comum ficará com a impressão de ter havido uma mera encenação, uma vez que o jornal O Estado de S. Paulo atribuiu ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na edição de 20/03/2009, a intenção de omitir-se desde que o Supremo arcasse sozinho com o opróbrio de uma decisão tão vil:
"O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez chegar um recado a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF): se ficar em suas mãos a decisão final sobre o caso do ex-ativista político Cesare Battisti, condenado à prisão perpétua pela Justiça italiana, ele não o mandará de volta à Itália. Isso ocorrerá se o STF apenas autorizar a extradição de Battisti. Mas junto com o recado, encaminhado por emissários presidenciais, Lula deu a senha para evitar o confronto com o STF. Deixou claro que ficará de mãos atadas se o tribunal mudar sua jurisprudência e tornar obrigatório o cumprimento das decisões do Supremo nos processos de extradição. Hoje, o STF apenas autoriza a extradição, cabendo ao presidente da República viabilizá-la."
Quatro dias depois o presidente do STF foi sabatinado pela Folha de S. Paulo. E, indagado sobre a suposta vontade de Lula, no sentido de que o Supremo descascasse o abacaxi em seu lugar, Mendes levantou, pela primeira vez, a tese casuística que foi incorporada ao relatório do ministro Cezar Pelluzo:
"Se houver a extradição, se ela se confirmar, será compulsória, e o presidente, o Executivo, deverá simplesmente executá-la."
Então, a mínima vacilação do Governo Lula na defesa de suas prerrogativas, face à tentativa de invasão do STF, deixará a impressão de uma tabelinha entre Poderes, um jogo de cartas marcadas, sacrificando um perseguido político às razões de Estado.
E há outro forte motivo para o Governo adotar o caminho mais digno, ao invés do menos oneroso do ponto de vista de interesses comerciais e políticos: o de que foi o próprio Governo, por intermédio do próprio Tarso Genro, quem colocou o perseguido político Cesare Battisti à mercê dos algozes.
Quando ainda acreditava que sua decisão prevaleceria sem maiores problemas, S. Exa.. singelamente, fez uma espantosa revelação à Folha de S. Paulo, em 17/01/2009:
"Sobre ter contrariado a posição do Itamaraty e de seu ministério no Conare, onde a tese da extradição prevaleceu por 3 votos a 2, Tarso contou ter recomendado a um assessor, o secretário executivo Luiz Paulo Barreto, que votasse contra o refúgio em caso de empate.
"'O conselho tem uma função meramente consultiva. [Disse a Barreto] para decidir na direção de não conceder [o refúgio], porque não quero que pensem que eu não tenho coragem política e decência moral para decidir um assunto conflituoso como esse', declarou".
Ora, nem é papel do ministro encomendar votos no Conare, nem o secretário-geral deveria ter acatado ordem tão descabida.
Poder-se-ia pensar até em má interpretação ou transcrição imperfeita do repórter, se S. Exa. não tivesse contado a mesmíssima história quando se discutiu o Caso Battisti na Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, em maio último.
Sua demonstração "de coragem política e decência moral" desencadeou uma avalanche de pressões italianas sobre o governo brasileiro e o STF. Um argumento de muito peso propagandístico tem sido, exatamente, o de que S. Exa. teria decidido na contramão do Conare.
Isto foi alegado, p. ex., no relatório de Pelluzo. E como o STF está em vias de decidir que a decisão de S. Exa. é nula, conclui-se que tal jogada disparatada é a razão maior da ameaça ora enfrentada por Battisti: se tivesse deixado o Conare tomar a decisão correta, não daria brecha para a enxurrada de contestações que agora ameaça a liberdade de Battisti e a credibilidade do governo.
Então, havendo causado prejuízo tão grave para a causa do escritor italiano, S. Exa. tem agora a obrigação de demonstrar "coragem política e decência moral" na luta contra a escalada reacionária do STF. Não transigir com ela e ficar resmungando de longe, mas sim buscar caminhos legais para obstar essa flagrante deturpação da Justiça.
E esse compromisso é de todo o Governo Lula, que não pode assistir indiferente à imposição de uma tutela espúria sobre suas decisões legítimas.
Nós, os cidadãos, não concordamos com uma rendição sem luta. Tudo que puder ser feito dentro da Lei, deverá ser tentado.
Até preceitos constitucionais estarão sendo infringidos, se prevalecerem os casuísmos propostos pelo rolo compressor direitista do STF. E o Executivo tem a obrigação de zelar não só pela integridade dos poderes que o povo lhe outorgou, como também pela própria obediência à Constituição.
Se é o próprio STF quem ameaça a Constituição, cabe ao Executivo assumir sua defesa, por todos os caminhos legais existentes. A iniciativa de criar um conflito entre Poderes não está partindo do Governo. Mas, já que a situação lhe foi imposta, não pode debandar como coelho assustado.
Mesmo porque o pomo da discórdia é tão insustentável juridicamente que se pode pensar num mero blefe da maioria reacionária do STF, pronta para recuar se o Governo pagar para ver.
O certo é que a eventual atitude submissa do Executivo seria apenas uma repetição envergonhada da infame decisão de Getúlio Vargas, que permitiu a entrega de Olga Benário para a morte nos cárceres nazistas (decidida pelo STF), sem conceder-lhe clemência.
Se o Governo Lula alegar impotência, não fazendo tudo que estiver ao seu alcance para evitar um desfecho inaceitável, vai acrescentar a hipocrisia à infâmia.
Prefiro acreditar que Gilmar Mendes apenas acreditou num rumor e reagiu afoitamente a ele.
Que o ministro Tarso Genro tenha tão-somente repetido o que fala em outras ocasiões mas é absolutamente inadequado nesta.
E que o Governo Lula se manterá um fiel guardião não só da separação de Poderes, como da soberania nacional, pois foi para isto que sindicalistas, católicos progressistas e defensores da justiça social constituíram o Partido dos Trabalhadores.
A "QUARTA-FEIRA NEGRA"
Foi uma das jornadas mais desastrosas da história do STF, que o destino quis fosse realizada num 9 de setembro, logo após a comemoração de mais um aniversário da Independência do Brasil.
Alheia à dignidade nacional, a direita encastelada no STF parecia repetir a palavra de ordem dos reacionários na imortal peça Arena Conta Zumbi: “Unamo-nos todos a serviço do rei de fora contra o inimigo de dentro!”.
O ministro Cezar Pelluzo produziu um relatório tão parcial e tendencioso que, fosse o STF um tribunal que se desse ao respeito, não poderia sequer ter sido aceito.
Pois o que se espera de um relator é uma apreciação desapaixonada, que avalie com equilíbrio os argumentos de ambas as partes, não o alinhamento incondicional com uma parte (a Itália) contra a outra (Cesare Battisti e o governo brasileiro).
Nas inacreditáveis e intermináveis três horas que o presidente do STF concedeu para sua arenga, Pelluzo recorreu a malabarismos jurídicos para propor a revogação, na prática, da Lei do Refúgio, que concede ao Governo a prerrogativa de conceder o dito cujo, como condutor das relações internacionais do País que é.
Segundo ele, isto só teria validade se o ministro da Justiça Tarso Genro houvesse tomada uma decisão válida. Mas, servindo-se da argumentação italiana a que aderiu incondicionalmente, Pelluzo impugnou o ato de Genro. Daí, disse ele, o refúgio não seria aceitável, podendo ser concedida a extradição.
Trata-se, é óbvio, de um mero subterfúgio para o STF, hoje com maioria direitista, usurpar uma prerrogativa do Executivo. O que tem a palavra final, pela Lei e pela jurisprudência, deixaria de a ter.
Algo que não importava quando se tratava de garantir direito de residência no Brasil a ditadores e carrascos que massacraram seus povos, passa a ter outro enfoque quando está em jogo o destino de um homem pacato e inofensivo, condenado em julgamentos farsescos por crimes cometidos há mais de 30 anos.
Por que? Porque Battisti cometeu dois pecados capitais: lutou contra o jugo do capital e, depois da militância, tornou-se um escritor que denuncia as arbitrariedades cometidas pela Itália durante os anos de chumbo. Daí o empenho de Silvio Berlusconi em exibir sua cabeça como o último troféu da guerra fria.
E, para o Partido Comunista Italiano e seus seguidores de lá e de cá, trata-se apenas de uma queima de arquivo: Battisti é a testemunha viva e eloqüente de que o PCI voltou as costas à revolução e aos revolucionários, acumpliciando-se à democracia cristã, às lojas maçônicas, à Máfia e aos remanescentes do fascismo, não só no exercício do poder, como também na condução das atividades repressivas contra a ultra-esquerda, tanto no âmbito policial quanto no judicial.
Battisti tem de ser silenciado. Pois, enquanto ele continuar falando, não será esquecido o papel infame que o PCI desempenhou nos anos de chumbo.
Daí a bizarra participação de Giorgio Napolitano na cruzada rancorosa de Berlusconi. Quando se começa a fazer pactos com os inimigos históricos, não há mais limites. As concessões exigidas são cada dia mais aberrantes e vexatórias. O diabo cobra caro de quem lhe vende a alma.
PRISÃO ILEGAL E FALÁCIAS JURÍDICAS
Voltando aos horrores da sessão do STF, aqui e ali aflorou o inconformismo dos justos contra o rolo compressor da direita.
O ministro Marco Aurélio Mello chegou a ironizar a desenvoltura com que atuava o advogado representante dos interesses italianos, sob as bênçãos de Gilmar Mendes. Dava apartes quando queria, pelo tempo que queria. Falava mais do que alguns ministros.
O ministro Joaquim Barbosa -- que compareceu combalido, lutou como um leão e teve de se retirar para cuidar da saúde tão logo proferiu seu voto -- fez questão de afirmar que Battisti está preso ilegalmente desde que o governo brasileiro lhe concedeu refúgio. [Ele é mesmo um prisioneiro político do STF, como alguns já assinaláramos.]
Mais: denunciou as gestões abusivas do embaixador italiano junto aos ministros do STF. O acesso livre e franco, ao gabinete do relator, de representantes de um governo estrangeiro (que, também lá foi dito, nem sequer poderia ser admitido como parte num processo brasileiro) é um dos muitos descalabros que vêm marcando esse processo.
Barbosa determinou à sua equipe que agendasse a reunião, sim, mas com a presença do advogado de Battisti. É o que outros ministros do Supremo e seu presidente deveriam também ter feito. Mas...
Foi também Marco Aurélio quem lembrou um princípio legal convenientemente esquecido pelo relator: o de que a Justiça brasileira faz ressalvas a depoimentos incriminatórios de co-réus, quando estes podem estar atribuindo suas culpas aos outros.
O processo italiano que condenou Battisti à prisão perpétua, já constataram eminentes juristas como Dalmo de Abreu Dallari, não se sustentaria sem os depoimentos interesseiros dos co-réus que buscavam favores da Justiça, mediante a delação premiada. Isto não foi levado em conta por Pelluzo e pelo rolo compressor da direita.
Pior ainda foram os contorcionismos para tentarem apresentar como comuns os delitos pelos quais Battisti foi condenado mediante o enquadramento em lei criada para combater a subversão contra o Estado.
Marco Aurélio, inclusive, lembrou o singelo detalhe de que a condenação de Battisti foi emitida pelo conjunto dos crimes que lhe atribuíam, os quatro homicídios nunca verdadeiramente provados e outros delitos eminentemente políticos.
Ora, se os crimes fossem considerados comuns, teriam sido julgados à parte, não num pacote único. Também isto, claro, foi convenientemente ignorado pelo rolo compressor direitista.
Fica, portanto, mais do que evidenciada a tramóia para maquilar uma sentença política de forma a torná-la compatível com nossa Lei do Refúgio, que impede a extradição de cidadãos condenados por motivos políticos.
Totalmente kafkiano foi o entendimento do rolo compressor, de que os dois anos e meio de detenção de Battisti no Brasil não contam para fins de prescrição de sua pena italiana, cuja vigência, então, se estenderia até 2013.
Filigranas jurídicas permitem dar aparência de legalidade a quaisquer absurdos, inclusive este. Mas, quando algo agride de tal forma nosso senso comum, é porque uma injustiça está sendo cometida.
Togas só são respeitadas se e quando se fazem respeitar. Caso contrário, serão vistas como capas de vampiros.
O pedido de vistas do ministro Marco Aurélio apenas impediu que, após o STF ter decidido por 5x4 invadir a competência do Executivo julgando um caso já decidido pelo governo, consumasse também por 5x4 o ato final de subserviência à Itália, ordenando a extradição de Battisti.
E é isto mesmo o que o STF pretende fazer, ordenar. Pois o rolo compressor defende a posição de que, por força de tratado de extradição existente entre o Brasil e a Itália, o presidente Lula não poderia sequer atender a um eventual pedido de clemência de Battisti.
Já o procurador-geral da República Roberto Gurgel entende ser do presidente da República a palavra final sobre a extradição de alguém.
Enfim, depois da quarta-feira negra, não se pode esperar a aceitação da tese do advogado Luís Roberto Barroso, que pede a consideração do caso como uma matéria criminal, a exemplo de um habeas corpus, em que o presidente do tribunal não vota e o empate de votos beneficia o réu.
Mesmo que correta, o rolo compressor a rechaçará.
Então, o fiel da balança da Justiça agora é o presidente Lula: se não posicionar-se firmemente contra a usurpação de atribuições do Executivo por parte do STF, entregará um homem inocente a seus algozes e vai ensejar outras iniciativas ainda mais ousadas do rolo compressor.
Todos sabemos que Gilmar Mendes tem um objetivo maior em vista, ao insistir tanto para que o Supremo avoque a decisão sobre quais crimes são políticos e quais são comuns: impingir-nos goela adentro a falácia da extrema-direita brasileira, que tenta descaracterizar o exercício do direito de resistência à tirania por parte de quem pegou em armas contra a ditadura de 1964/85.
Cada trincheira abandonada fortalece o inimigo e nos obriga a travar a batalha seguinte em piores condições. É hora de dizermos, como La Pasionária: "Não passarão!".
Repito: os fascistas não passarão!
* Jornalista e escritor, mantém os blogues:
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