Mal o cabo Anselmo acabava de finalmente mostrar a cara num longo Canal Livre da rede Bandeirantes, o bumerangue a atingiu em cheio: saiu na Folha de S. Paulo que Cecil Borer, diretor do Dops carioca à época da quartelada de 1964, admitiu que o tinha então a seu serviço.
O jornal afirma dispor da gravação de tal entrevista, na qual Borer (1913-2003) relata a colaboração de Anselmo não apenas com o Deops, mas também com o Cenimar e a CIA.
Conforme venho esclarecendo desde que foi noticiada a pretensão de José Anselmo dos Santos a uma reparação federal (ver aqui, aqui e aqui), as regras da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça a obrigariam a concordar com o pedido se ficasse estabelecido que o ex-marinheiro (o apelido de cabo era equivocado) fora mesmo um militante de esquerda até 1971 e só trocara de lado em tal ano, passando então a facilitar a prisão e/ou morte dos companheiros.
A única situação em que a Comissão de Anistia poderia recusar o pedido de Anselmo, eu sempre disse, era a de que Anselmo já fosse agente duplo em 1964. Havia vários indícios neste sentido, mas nenhuma prova cabal.
A entrevista da Folha tende a ser a evidência sonhada pelos que tentavam evitar a concessão, a um auxiliar dos carrascos, de um benefício criado para suas vítimas.
Tal gravação deverá determinar a recusa do pedido de Anselmo, foi o que avaliaram cidadãos cuja opinião tem muito peso na área de defesa dos direitos humanos e, certamente, deve coincidir com a de membros da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, à qual cabe elaborar um parecer sobre o caso.
Assim, para o secretário especial dos Direitos Humanos da Presidência da República Paulo Vannuchi a nova evidência "derruba a pretensão" de Anselmo.
Vannuchi admite que existia a possibilidade de a Comissão ser obrigada a anistiar o ex-marinheiro, decidindo com base "técnica e jurídica" e tendo de colocar em segundo plano sua "repulsa política e ética".
Agora, não mais: "O depoimento [de Borer] dá o fundamento [que faltava] à Comissão de Anistia, porque a decisão seria difícil"
A avaliação de Vannuchi coincide com a da presidente do Grupo Tortura Nunca Mais no Rio de Janeiro, Cecília Coimbra, que declarou: "O Cabo Anselmo não passou a colaborar após a prisão. Ele já era infiltrado. Não tem direito a nenhuma anistia".
E também com a da atual diretora e ex-presidente do GTNM em São Paulo, Rose Nogueira, para quem "está mais do que claro que ele já era infiltrado antes de 1964".
A decisão final caberá ao ministro da Justiça Tarso Genro, que pode acatar o entendimento da Comissão ou tomar decisão diferente, conforme sua convicção.
No entanto, a praxe é o ministro prestigiar o parecer, salvo quando surge um fato novo de muita relevância no período de alguns meses que transcorre entre a análise do caso no colegiado e a assinatura da portaria ministerial.
E Anselmo não deve esperar nenhuma condescendência por parte de Genro, que no início do mês passado já antecipava existirem índicios de sua atuação como "agente infiltrado dos golpistas" no pré-1964, o que o desqualificaria como perseguido político:
"Não cabe a aplicação da Lei da Anistia a pessoas que deliberadamente atuaram como agente do Estado, seja para desestabilizar um regime legal, como era o governo João Goulart, seja depois, numa estrutura paralela".
Ironicamente, o ministro acrescentou que, na hipótese de indeferimento do seu pedido de anistia, Anselmo poderia entrar com ação ordinária contra a União, requerendo indenização por haver atuado na repressão política sem reconhecimento do Estado "pela prestação desse regime".
ANTES ELOGIAVA FLEURY. AGORA DIZ QUE ELE O AMEAÇOU DE MORTE
De resto, a minha impressão é de que sua aparição na TV deve ter causado ao telespectador comum o mesmo asco que provocou em nós, conhecedores dos fatos esmiuçados no Canal Livre de 30/08/2009.
Tentando conciliar as mentiras atuais com as que contou aos jornalistas-escritores Octávio Ribeiro (Pena Branca) em 1984 e a Percival de Souza em 1999, Anselmo enredou-se em inúmeras contradições e não foi crível ao afirmar que a repressão lhe prometera poupar Soledad Barret Viedma, a militante uruguaia cuja morte propiciou a despeito de estar gerando uma criança dele.
Anselmo anteriormente afirmou ter apenas apelado à repressão para que a poupasse. Ao contar o conto de novo, aumentou um ponto. Só que a cascata pegou mal, já que as bestas-feras da ditadura não eram dadas a fazer promessas desse tipo. Então, ele perdeu outro tanto de credibilidade, se é que ainda tinha alguma.
Foi penoso acompanharmos as fanfarronices e as justificativas tortuosas de Anselmo ao longo de aproximadamente hora e meia de programa.
De um lado, repetiu os mais surrados clichês da propaganda anticomunista. E soaram extremamente inverossímeis suas declarações de que traiu os movimentos de resistência para evitar uma guerra civil, embora noutros momentos admitisse o despreparo e a inferioridade de força dos grupos guerrilheiros face à ditadura.
De outro, tentou angariar alguma simpatia para sua cruzada atual ao falar sobre torturas e coações que teria sofrido. Só que levou um xeque-mate quando disse ter sido ameaçado de morte pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury e lhe foram atirados na cara os elogios rasgados que fez outrora ao sinistro personagem.
ANSELMO VENDIA INFORMAÇÕES DO DOPS PARA AS MULTINACIONAIS
De resto, estará mesmo Anselmo precisando desesperadamente de recursos, conforme alega? Aí tudo que temos são suposições, pois ele, com as opções que fez, escolheu viver como um incógnito no seu próprio país.
Ele próprio admite, p. ex., que recebia remuneração dos órgãos de repressão política quando os ajudava a destruírem a Vanguarda Popular Revolucionária e prenderem/executarem seus militantes.
Uma revelação interessante acaba de surgir no site do Luiz Nassif, sobre o que o sinistro personagem andou fazendo depois de dizimados os grupos guerrilheiros, conforme relato do veterano jornalista Antonio Carlos Fon:
"Cabo Anselmo frequentava o Dops de São Paulo, onde tinha um sócio, o delegado Josecyr Cuoco, com quem mantinha uma agência privada de informações que, com agentes infiltrados no movimento sindical e acesso aos relatórios dos alcaguetes do Dops, vendia informações para as multinacionais, especialmente do setor automobilístico, na época muito assustadas com o novo sindicalismo que nascia no ABC".
Segundo Fon, a espetaculosa entrevista que Anselmo concedeu em 1984 ao Octávio Ribeiro, para publicação na IstoÉ, foi articulada pelo delegado Cuoco, com a ajuda do Cenimar, exatamente para evitar que a revista expusesse as atividades da tal agência privada de informações.
Finalmente, em suas andanças recentes, o ex-marinheiro tem sido sempre escoltado pelo delegado Carlos Alberto Augusto, do 12º distrito de São Paulo.
Estavam juntos quando a rede Globo levou ao ar o Linha Direta com o Cabo Anselmo, há dois anos.
Juntos foram recentemente cumprir os requisitos para Anselmo reaver sua identidade.
E juntos se apresentaram no Canal Livre de domingo passado, quando os adesivos anticomunistas e golpistas do jipe do delegado causaram tal perplexidade nos profissionais da rede Bandeirantes que até no ar esse assunto foi levantado.
Quem é, afinal, o tutor de Anselmo?
De janeiro de 1970 a 1977, Augusto trabalhou sob as ordens diretas do terrível delegado Sérgio Paranhos Fleury no Dops/SP, quando era conhecido como Carlinhos Metralha, por andar amiúde com uma metralhadora pendurada no ombro.
Recentemente apontado ao Ministério Público Federal como torturador por Ivan Seixas, diretor do Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo, Carlinhos Metralha até hoje dá declarações deste tipo:
"Esses caras do governo [Lula] são todos sanguinários. Tudo comunista bandido e covarde. Estou à disposição dos militares na hora em que eles precisarem de novo".Enfim, tudo leva a crer que Anselmo jamais tenha saído da órbita dos órgãos de segurança e das estruturas montadas por antigos torturadores. Não por acaso, tem o apoio incondicional dos sites de extrema-direita, como o Alerta Total, do Jorge Serrão.
Daí as consistentes suspeitas de que sua insistência em ser anistiado não se deva a precariedade material, mas seja, tão-somente, uma nova provocação, desta vez para desmoralizar a atuação da Comissão de Anistia e do próprio Ministério da Justiça.
Caso em que o tiro terá saído pela culatra, pois agora ninguém mais duvida de que ele haja sido um agente duplo ao longo de toda sua infame trajetória.
O EX-MARUJO FOI PRESO POR ENGANO EM 64. DEPOIS, ENCENARAM SUA FUGA
Quanto á notícia da Folha, Ação de Anselmo é pré-64, diz policial (assinantes do jornal ou do UOL podem acessar aqui), causa estranheza a entrevista do ex-diretor do Dops só estar sendo divulgada agora, oito anos depois de concedida e seis anos depois da morte de quem a concedeu. A grande imprensa tem razões que a própria razão desconhece.
Eis os principais trechos:
"Diretor do Dops carioca à época do golpe de Estado de 1964, o policial Cecil Borer (1913-2003) afirmou dois anos antes de morrer que o marinheiro de primeira classe José Anselmo dos Santos, mais célebre agente duplo a serviço da ditadura militar, já era informante da Marinha e da polícia política antes da deposição do presidente João Goulart.
"As entrevistas de Borer ao repórter da Folha foram concedidas em 2001 na apuração para um livro e uma reportagem. Ele autorizou a gravação.
"O policial, denunciado como torturador de presos durante três décadas, teve atuação destacada nas prisões após o golpe de 1964. Aposentou-se em 65.
"Ao ser entrevistado pela Folha, ele tinha 87 anos. Narrou 'pressões' físicas contra presos, negou a condição de torturador e falou de agentes infiltrados na esquerda.
"No começo de 1964, Anselmo presidia a AMFNB (Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil). Borer contou que ele já era informante do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) da Guanabara, do Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e dos "americanos" - a CIA (Agência Central de Inteligência).
"Foi categórico: '[Antes de abril de 1964, Anselmo] trabalhava, trabalhava'. Para quem? 'Para todo mundo.' Detalhou: 'Ele trabalhava para a Marinha, ele trabalhava para mim, trabalhava para americano'. Não esclareceu a data em que o militar teria aderido.
"Conforme Borer, Anselmo não foi um infiltrado escalado para se misturar aos marinheiros. O ex-diretor disse que ele foi recrutado pelo Cenimar quando já atuava na associação.
"O policial afirmou que as informações transmitidas por Anselmo eram compartilhadas por Cenimar e Dops com classificação 'A', exclusiva de fonte de alta confiança. Os organismos tratavam-no por nome em código. 'Não havia segredo entre Dops e Marinha. (...) Esse trabalho, essa informação veio do Anselmo, então é classe A'.
"Dias após a queda de Goulart, Anselmo se asilou na Embaixada do México no Rio. Em pouco tempo abandonou o local e se abrigou em um apartamento na zona sul. No dia seguinte, foi detido e levado para o Dops.
"Ele disse que o esconderijo foi identificado por agentes seus infiltrados entre exilados no Uruguai. Informaram o endereço a um policial que ignorava a dupla militância de Anselmo, que acabou preso.
"Sua condição de informante, diz Borer, era de conhecimento restrito, mesmo no Dops e no Cenimar: 'Então Anselmo veio, tá preso, você não vai soltar, que não vai queimar'.
"Anselmo retomou a liberdade somente em 1966, quando Borer já estava aposentado, ao ir embora de uma delegacia no bairro do Alto da Boa Vista onde estava preso. Lá, ele circulava quase sem restrições.
"A fuga foi uma farsa, disse Borer. O objetivo do que descreve como encenação de colegas seus foi infiltrar o agente na esquerda clandestina. Anselmo foi para o Uruguai, onde entrou no MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), grupo dirigido por Leonel Brizola.
"A seguir, treinou guerrilha em Cuba. De volta ao Brasil, aderiu à VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), organização armada depois dizimada por suas delações.
"Em entrevista ao repórter Octávio Ribeiro, em 1984, Anselmo disse que se entregou por iniciativa própria ao Deops por volta de 1971 e nunca foi torturado. Em 1999, assegurou ao repórter Percival de Souza que foi surpreendido e preso pelo Deops e que o torturaram antes da mudança de lado."
Jornalista, escritor e ex-preso político, Celso Lungaretti era companheiro de militância e amigo de José Raimundo da Costa, o Moisés, que foi preso numa armadilha do cabo Anselmo, levado para a Casa da Morte de Petrópolis (RJ), torturado e executado. Mantém os blogues Náufrago da Utopia e Celso Lungaretti - O Rebate