A fascistização da sociedade brasileira avança. Depois de fracassar na tentativa de colocar multidões na rua protestando contra o governo, a extrema-direita se reagrupa em torno de uma bandeira mais atraente: a volta à lei da selva no combate à criminalidade.
O sucesso comercial do filme Tropa de Elite e a polêmica em torno do relógio roubado de uma celebridade deu novo ânimo aos que estavam cansados da rejeição a suas pregações oportunistas.
E, como no caso do plebiscito sobre o comércio de armas – em que a Tradição, Família e Propriedade e as viúvas da ditadura investiram alto na campanha pelo “não” como mote para acumulação de forças – mais uma vez se evidencia que o calcanhar-de-aquiles da esquerda brasileira é sua postura de respeito aos direitos humanos.
Segundo pesquisa que, sob encomenda da Veja, o instituto Vox Populi desenvolveu junto a espectadores do Tropa de Elite, 72% consideram que, no filme, os traficantes são tratados como merecem; e 47% aprovam a prática de torturas contra os mesmos.
A mensagem do patrocinador não deixa dúvidas quanto às intenções da revista, que novamente utiliza sua matéria-de-capa como palanque reacionário: “...o Brasil, infelizmente, é um país de idéias fora do lugar por causa da afecção ideológica esquerdista que inverte papéis, transformando criminosos em mocinhos e mocinhos em criminosos. Aqui, a ‘questão social’ é justificativa para roubos, assassinatos e toda sorte de crime e contravenção”.
A Veja mente, como sempre. Inversão de papéis existe mesmo é em publicações que pregam uma volta aos castigos medievais, cancelando toda a evolução da humanidade a partir do Iluminismo. Enfocar a questão social de forma mais aprofundada, indo além do mero espírito de vingança, não significa compactuar com o banditismo.
Nem cabe à esquerda retroceder um milímetro sequer de posições corretas e civilizadas, mesmo que sejam impopulares. O desafio continua sendo o de mostrar a verdade à maioria, ao invés de curvar-se aos humores das massas.
Neste sentido, nada tenho a acrescentar ao que escrevi em fevereiro, no artigo A Barbárie nos Ronda:
“Inexiste forma ideal de se lidar com aqueles que já se tornaram bestas-feras, nocivos para si próprios e para a sociedade. Pode-se, quanto muito, controlá-los – e a um custo dos mais elevados para um país de tantas e tão dramáticas carências.
”Exterminá-los, jamais! Isso levaria a violência a patamares apocalípticos, pois os bandidos não teriam mais nada a perder. Nós, sim, perderíamos, ao abrirmos mão da civilização arduamente construída.
”O xis do problema, no entanto, nunca é discutido: o fato de que a criminalidade é intrínseca ao capitalismo e subsistirá enquanto não substituirmos o primado da ganância e da competição pelo da solidariedade e da cooperação.
”Vivemos numa sociedade que desperdiça o potencial já existente para se proporcionar uma existência digna a cada habitante do planeta; que faz as pessoas trabalharem muito mais do que seria necessário para a produção do socialmente útil; que condena parcela substancial da população economicamente ativa ao desemprego, à informalidade e à mendicância; que estimula ao máximo a compulsão consumista sem dar à maioria a condição de adquirir seus objetos de desejo; que retirou do trabalho qualquer atrativo como realização individual, tornando-o apenas um meio para obtenção do vil metal (ou seja, uma nova forma de escravidão).
”Alguns excluídos continuarão vivendo das esmolas dos programas oficiais. (...) Outros tentarão obter pela força aquilo que jamais alcançarão pela competência. E servirão de espantalho para intimidar as classes superiores, fazendo-as crer que uma sociedade policial seria a solução.”
É exatamente para a sociedade policial que tentam nos conduzir a Veja e os Reinaldos Azevedos da vida.
* Celso Lungaretti é jornalista, escritor e ex-preso político. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com