A Camisa de Carlos

A pequena ascensão para o cargo de escriturário, que tornou possível a compra de uma bela camisa, não se fez sem grandes embaraços. O primeiro deles foi manter o emprego. Carlos achava, nos primeiros dias de escritório, que dele seria exigido somente trabalho. Sem medir esforços, afastando de si qualquer reflexão de como era desproporcional o seu talento para o que dele se esperava, atirou-se com fúria à máquina. Para quê?

– Seu Carlos – disse-lhe a figura única de chefe e patrão, tendo às mãos uma correspondência recém-batida. – Seu Carlos, isso aqui tá muito feio: é uma cagada só.
– Pois não… – ia dizer “chefe”, mas se conteve, para não deixar impressão de servil – …sim, o senhor quer que eu mude o modelo?

– Que modelo? Eu tou falando disso – e abanou o papel –, o senhor não consegue cagar mais bonito? Olhe o pedação de branco que sobrou na carta.

– Ah, é a estética. Eu bato outra.

– Se for igual não presta. Só me mostre se prestar. E isso é pra ontem, ouviu? Pra ontem.

O chefe, apesar de baixo, ganhava altura de lhe puxar as orelhas. Carlos recomeçava, querendo ser rápido. O diabo eram os tipos da máquina. Eles se abraçavam, grudavam–se, agarrando-se no ar sem atingir a impressão na fita. Carlos respirava fundo e procurava reproduzir, no que se lembrava, de um dos Cem Modelos de Cartas Comerciais. As palavras, unidas numa frente contra qualquer inteligência, vinham-lhe cheias, aglomeradas de letras. Não era à-toa que elas, as letras, se grudavam promíscuas nos tipos da máquina, no ar, e no ar do que nada expressavam: “prezado senhor, vossa senhoria, nesta, conceituada firma, protestos de consideração, atenciosamente”. E isso era o mesmo que “prxsnh, awtyz rtw”. Então Carlos rasgava a folha e rebatia-a. Isso não era o difícil. Difícil era organizar a margem direita, e, pior do que isso, distribuir a mancha, a nódoa do modelo na folha em branco. Daí a merda que o chefe e patrão Romualdo lhe via.

Para azar de Carlos, Romualdo era o que se podia chamar de um self-made-man. Ou seja, um produto do laboratório da selva, uma síntese de falta de escrúpulos, sorte e obsessão por crescimento na sociedade. Como todo homem que “veio de baixo”, e não vem ao caso aqui zombar de sua crença de que chegou “em cima”, como todo homem que ascendeu sem títulos universitários ou “perda de tempo com o rabo sentado no estudo”, ele odiava os intelectuais, ainda que não os chamasse por esse nome. Reunia-os todos num saco, sob a denominação genérica de “cambada de doutores”.

Os seus escriturários, coitados, não passavam todos, sem exceção, de puxa-sacos dos seus escrotos, aspirantes que eram, com seus conhecimentos de bosta, a um futuro de doutores de merda.

Quando lhes perguntava, na entrevista, a esses passa-fomes de camisa engomada e enfiada no cinto, se estudavam, e lhe respondiam que sim, ele retornava, com malícia e propósito: para quê você estuda? E se lhe devolviam, vou fazer vestibular para direito, ou para administração, ou para contabilidade, coitados, ele os expulsava lisos e com fome para o olho da rua.

Ah, não lhe viessem fazer sombra. “Querem ser burros de canudo às minhas custas. Puta que pariu”, dizia à massa escura de operários da oficina. Mas se lhe respondiam, e este foi o caso e acaso de Carlos, quando lhe respondiam com voz magoada, pesarosa, e olhos do Cristo na cruz fitando o céu, “pai, por que me abandonaste?”, quando lhe respondiam, como Carlos, “já estudei. Não posso mais continuar meus estudos”, ah, para estes ele decretava: “Muito bem. Eu preciso de meio-burros. Pode começar”. E isso vinha numa entonação, que só mais tarde descobririam: “Tirem a roupa. Vou marcá-los. Eu lhes dou o privilégio de experimentar o meu chicote”. Porque Romualdo era um homem prático. Sem entender uma só Lei de Faraday, e virando o traseiro para isso, gabava-se de construir caixas para subestações elétricas cujos desenhos os doutores apenas assinavam. “Só têm teoria. Não sabem de nada”.

Foi esse homem que Carlos começou a entender, à custa de muitos e desaforados e insultuosos esporros. À medida que os recebia, e calava, e com esse silêncio via a fera tomar atitudes que se assemelhavam a afabilidade, foi compreendendo que só o trabalho, e a fúria no bater à máquina, e os modelos de correspondência na memória, e a hora a mais, além do expediente, e o chegar mais cedo, não lhe asseguravam o emprego.

Era preciso mais. Era preciso ouvi-lo, com um ar de aprendiz, ainda que tal disfarce muito lhe custasse.

O problema não era tanto, e era também, mas não era o principal, o problema não era bem dobrar a cerviz. “Há necessidade de um embate de surdos? Quantas vezes ouvimos o que não concordamos? E como é que vou responder a quem me paga o salário? Só se fosse louco”, Carlos se dizia, repetia-se, ainda que pílulas amargas Romualdo lhe empurrasse goela abaixo. Esse não era bem o problema. O diabo era a figura do patrão – repugnante. Pois Romualdo não passava de um sujeitinho a quem em outras circunstâncias Carlos não sopraria um cumprimento, sequer um gesto. Do alto dos ombros potencialmente hercúleos Carlos não o veria. Passou então, como defesa, a ouvi-lo balançando-lhe o queixo, enquanto por dentro ria-se dele, comentava-o. “Vá, eletricista, vá, analfabeto, fale. Mostre-se puro e total na sua brutalidade”.

– Me diga uma coisa, – o chefe lhe dizia, ao fim do expediente, enquanto Carlos fingia não ver que suas 8 horas já estavam findas. – Me diga uma coisa, você come carne?

– Sim, como. Assim… O senhor conhece algum modo novo de se comer carne?

– Eu não como.

– Ah, entendo. O senhor está doente?

– Eu? Quantos anos você tem?

– Vinte e um.

– Pois eu tenho quarenta e cinco. Vamos ver quem tem mais saúde?

E antes que o chefe o chamasse para uma quebra-de-braço, e ele se visse convocado a perder, Carlos respondia, rápido:

– De maneira nenhuma, acredito. Então o senhor não come carne… é impressionante!

– Me diga uma coisa: o boi come carne?

– Não, o boi não come carne.

– Aí está. Veja a saúde do boi. O boi não come carne. Entendeu?

– É interessante. Eu nunca havia observado que o capim … não, eu nunca havia observado a saúde por esse lado.

– Então … veja a força do boi. – E depois de uma pausa: – Nenhum doutor ainda lhe tinha dito isso, hem?

Carlos assentia. “E eu sou louco?” Estava começando a ganhar a sua camisa.

Carlos não percebia ainda, como uma lei geral, que no trabalho não se vende só o esforço físico. Ele não percebia que assim como existem na terra as categorias de metalúrgicos, industriais, comerciários, bancários, banqueiros, no inferno ou no céu também existem as categorias de almas de banqueiros, metalúrgicos, comerciários e industriais.

Ele julgava, como uma lei geral, que no domínio de um ofício era possível manter a cabeça livre do espírito da gente desse ofício. Seria como se nos dedos que batiam aquelas asneiras protocolares, no corpo que se assentava nove horas batendo aquilo, nos ouvidos que digeriam os sons da oficina e o malho da voz do chefe, seria como se em meio a tudo a alma e o gosto não sofressem impressão, pois estariam resguardados de fé e concreto, bem ocultos.

Essa crença, diga-se de passagem, cairia melhor em João, que acreditava na lenda de Spinoza polindo lentes, enquanto pensava em latim Sobre o Melhoramento do Intelecto. Em Carlos essa ilusão recebera a variante de uma astúcia ingênua, mas astúcia, que era o conforto de se enganar, como o indivíduo cansado e com muito sono e que tem uma tarefa inadiável para concluir antes de dormir, mas que se diz, “descansarei apenas 5 minutos”. O indivíduo dorme a sono solto por 100 x 5 minutos, a pedido do corpo lasso.

O trabalho que Carlos julgava ser um custo sem embate, adaptando-se fisicamente, por habilidades que de tanto serem feitas tornar-se-iam obra de um autômato, alheio à sua pessoa, somente deixando no trabalho o corpo, numa migração mecânica da alma, não se fez conforme a sua esperançosa astúcia.

A alma regressou ao corpo, de onde nunca se havia apartado, e se entranhou nos dedos, e se fez carne, ou mais precisamente busca de carne, ao tempo em que ouvia histórias de bois que não a comem, e por isso têm muita força e saúde.

O que ele não via como uma lei geral, percebia-o, no seu caso particular, embora disso não formasse conceito, porque lhe era pesaroso o nível de adaptação a que se via forçado. “E eu sou louco?”, a pergunta, que se fazia, evoluiu sem rastros de percurso para um “é claro que não sou louco”, até um “longe de mim a loucura”, quando passou a ser convidado para almoços rápidos, de 15 minutos, na casa do patrão Romualdo.

Ora, estava escrito que passasse a elogiar, e até mesmo a gostar (e não vem ao caso distinguir a fronteira entre o gosto verdadeiro, sentido, e o gosto por agradecimento), a gostar e fazer comentários judiciosos sobre legumes, frutas e verduras. Pois a fome é onívora.

Se lhe servem um bife suculento, muito bom. Se lhe servem um arroz com salada, não é mau. É até ótimo, quando a digestão se faz de volta no carro do chefe, uma sólida Rural Willys. Vontade de cochilar lhe dava, cochilar e voar para longe, migrando, mas o matraquear de Romualdo não lhe dava trégua. Ele, Romualdo, tinha a consciência de que lhe pagara o almoço, não fosse agora o empregado, de rabo cheio, negar-lhe a dívida.

– O povo não gosta de trabalhar, viu, rapaz? Não querem trabalho não. Querem só, ó – e tirava uma das mãos do volante, agitando os dedos na boca aberta. – Esta é que é a verdade.

E Romualdo voltava a mão ao volante, firme, sério, cônscio da solidez do seu patrimônio, ele próprio se vendo forte como o granito. Contente e eterno. Carlos dirigia os olhos para a paisagem, que corria, de meio-fio, sol e gente. “Deixa pra lá”, pensava, “isso passa. Vamos ao que importa”. E o que importava? Vácuo como resposta.

Arrotava o arroz com ponche de laranja. O arroto lhe era desagradável, um desagradável que era motor de empurrar mais os olhos para longe da janela estável da Rural. “Isso passa. Vamos ao que interessa”.

Desciam. Era emendar o segundo expediente sem descanso.

Ora, estava escrito que a lua-de-mel, como toda lua-de-mel, não podia durar sempre.

A intimidade doada pelo chefe teve a contrapartida da quebra do respeito, ousemos esta palavra, respeito que ainda havia nos momentos do esporro. Antes, Carlos era um estranho, um objeto, podia ser executado com frieza. Agora o chefe lhe conhecia a fraqueza, tinha-o na mão como um devedor – pois não lhe pagava às vezes até a janta? – media-o pela medida do seu almoço.

Ora, era o diabo. Se Carlos houvesse tomado distância, já teria sido posto no olho da rua. Como não se distanciara, e aí residia a fina lâmina do equilíbrio, para se dar ao respeito em público, o que vale dizer, para evitar a descompostura com testemunhas, deveria viver com o chefe em permanente salamaleque. “A paz esteja contigo” deveria expressar em constante mesura. Ora, não se pode exigir de um jovem tamanha ciência. E de um jovem espiritualizado, o que é um agravante, muito menos.

Um dos problemas de um caráter espiritualizado é que ele se envolve no encanto das formas. O que isso quer dizer: num edifício levantado, por exemplo, ele somente vê o acabamento, o desenho no resultado final, erguido. Pior, para ele é um choque descobrir lajes, e que uma planta do prédio pode ser reduzida a retângulos e semicírculos.

Falando mais, digamos, concreto: o jovem espiritualizado acredita em Talento, Generosidade, Amor, Decência, como fenômenos puros. O que vale dizer, fenômenos vistos no seu exterior.

Para ele as estrelas são luzes lácteas. Ora ora. Se ao descer da Rural, voltando do almoço na casa de Romualdo, Carlos não encontrasse ante os seus olhos os olhos da massa escura de operários, de macacão aberto, com o riso infame insinuado nos lábios grossos, ah, teria sido mais fácil atingir posturas próximas ao salamaleque, mas que não o seria, misturado que estava à tapinha, ao insulto recebido como uma característica jocosa, típica, de um patrão camarada.

“O secretário do chefe”, “meu chefe”, começou a ouvir da oficina, e isso estava longe de ser um elogio. Tratavam-no como um rameiro, pelo menos na tradução que Carlos dava a essas irônicas antonomásias. “Inveja, é natural que sintam inveja”, pensou a princípio. “Eles acham que a minha posição é importante. Como não podem estar aqui… ” E deu de ombros. Mas não se sentiu por isso liberado.

A possível inveja acabou por constrangê-lo. E passou a ser cordato com Romualdo, quase pedindo desculpas à massa. O que quer dizer: às cobranças arbitrárias do chefe deu-se ao embaraço de fazer ponderações.

– Carlos, venha cá.

– Pois não…

– As guias de recolhimento do INPS de três anos. Eu quero elas.

– Hum… veja bem. Quando eu cheguei aqui, não me foi possível conceber a organização do arquivo – e a ponderação de Carlos era assim, cerimoniosa – sem um exame prévio das condições gerais…

– Conversa mole, seu Carlos – o chefe o interrompe. – Quando o senhor chegou aqui não sabia nem um A. Me passe as guias, ligeiro.

– Certo. Mas veja bem. Não é totalmente justo que me seja imputado…

– E quem chamou o senhor de puta? Vamos. O senhor sabe ou não sabe das guias?

– Sinceramente, de uns três anos para cá… O senhor tinha mesmo arquivo disso?

Aquilo acabou por queimar o pavio curto de Romualdo.

– Eu lhe pago pra me servir. Era só o que faltava! – Levantou-se, e se dirigindo ao armário, arrancou de lá, às braçadas, pilhas de papéis, que jogou para o chão. E varrendo com as mãos as prateleiras, ia exclamando: – Tá uma zona! Virou frege!

O chão ficou atapetado de cartas, algumas modelares, outras não, e mais notas fiscais, faturas, algumas presas por grampos, outras por clipes, e pastas, de guias amareladas, outras não.

– Quero tudo separado – o patrão lhe gritou – com cada boi no seu curral. Hoje, daqui a pouco, até a minha volta do almoço.

E bateu a porta, saindo. Carlos ficou como um gigante faminto, sem almoço, com a multidão de papéis nos calcanhares. “Mártir quis ser, cuidei qu’eu era. E um louco fui, nada mais”, eram os versos de que se lembrava. E se pôs humilde, franciscano, paciente e cristãmente a organizar os papéis sobre o birô.

Uma semana depois tinha camisa nova e, num protesto mudo, um tumor estourado no pé direito.

______________________________
Urariano Motta*é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recif

Extraído do romance Os Corações Futuristas, Editora Bagaço, 1999 

http://redecastorphoto.blogspot.com.br

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