"O que foi que fizeram com ele? Não sei
Só sei que esse trapo, esse homem foi um rei"
("Tributo a um Rei Esquecido", Benito Di Paula)
Eu era um adolescente começando a me interessar pela política
quando uma música me atingiu em cheio: "Canção Nordestina",
do Geraldo Vandré, com aquele seu grito lancinante ("...e essa
dor no coração/ aaaaaaaAAAAAAAAIIII!!!!, quando é que
vai acabar?") reverberando em todo o meu ser.
Foi meu primeiro ídolo. Acompanhei a consagração da "Disparada" no Festival
da Record de 1966, amaldiçoando o Jair Rodrigues por abrir
um sorriso bocó no trecho mais dramático ("...porque gado
a gente marca,/ tange, ferra, engorda e mata,/ mas com gente é diferente").
Depois, nos estertores d' O Fino , o programa passou a ser
conduzido, uma em cada quatro semanas, pelo Vandré (nas outras, se bem
me lembro, os apresentadores eram Chico Buarque/Nara Leão, Elis Regina/Jair
Rodrigues e Gilberto Gil/Caetano Veloso).
Num de seus programas, o Vandré declamou o "Poema da Disparada",
sobre a modorrenta mansidão da boiada, até que um simples mosquito,
picando um boi, provoca o estouro, e nada volta a ser como antes. Belíssimo.
Aí o Vandré brigou com a TV Record e saiu da emissora, alegando
que um desses seus programas havia sido censurado pelos patrões, por
temerem os milicos.
Veio o Festival da Record de 1967 e Vandré, com sua "De
Como Um Homem Perdeu o Seu Cavalo e Continuou Andando" ("Ventania"),
virou alvo de críticas e maledicências ininterruptas nas emissoras
da Rede Record. Diziam até que ele havia contratado uma turba para vaiar
Roberto Carlos.
"Ventania" não era mesmo uma segunda "Disparada",
mas, sem toda essa campanha adversa, certamente teria obtido classificação
melhor do que o 10º lugar.
Aconteceu então aquele 1º de Maio esquisito, em 1968, quando o PCB garantiu ao governador Abreu Sodré que ele poderia discursar tranqüilamente na Praça da Sé.
O ingênuo acreditou e, mal tomou a palavra, recebeu uma nuvem de pedradas
dos trabalhadores do ABC e de Osasco, organizados pela esquerda autêntica .
Sodré correu para se refugiar na Catedral... e Vandré foi fotografado
ajudando Sua Excelência a escafeder-se!
A foto saiu na capa da Folha da Tarde e fez com que muito
esquerdista virasse as costas ao Vandré.
No final de junho/68, os operários de Osasco tomaram pela primeira vez
fábricas no Brasil (em plena ditadura!). A reação foi
fulminante, com a ocupação militar da cidade.
Os estudantes, por sua vez, ocuparam a Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras da USP, na rua Maria Antônia, para mantê-la aberta durante
as férias de julho, prestando apoio à greve de Osasco.
O Vandré apareceu lá numa noite em que estava marcada uma assembléia
para tratar desse apoio estudantil à greve. Foi hostilizado pelos universitários.
Lembro-me de uma fulaninha gritando sem parar: "traidor!", "traidor!".
Eu estava lá com companheiros secundaristas da Zona Leste, todos admiradores
do Vandré. Então, nós nos apresentamos e fizemos o convite
para vir conosco ao bar da esquina, oferecendo-lhe a oportunidade para retirar-se
de lá com dignidade, e não como um cão escorraçado.
Bebemos, papeamos horas a fio, apareceu um violão e rolaram algumas
músicas.
Lá pelas tantas, o Vandré mostrou uma letra rascunhada e cheia
de correções, que ele escrevera numa daquelas folhas brancas
de embrulhar bengalas (pão). Era a "Caminhando",
que tivemos o privilégio de conhecer ainda em gestação.
É importante notar que ele fez a "Caminhando" exatamente para
responder aos esquerdistas que o estavam hostilizando. Quis lhes dizer que continuava
acreditando nos mesmos valores, que nada havia mudado.
Perguntamos por que ele havia socorrido o Sodré. A resposta: "Nem
sei. Estava tão bêbado que não me lembro de nada que aconteceu".
Na verdade havia amizade entre ambos, tanto que o Vandré, meses mais
tarde, encontraria abrigo no Palácio dos Bandeirantes, onde o próprio
Sodré o escondeu quando a repressão estava no seu encalço.
Mas, não ficava bem para um artista de esquerda admitir publicamente
que mantinha relações perigosas com um governador da
Arena, partido de apoio à ditadura.
"HÁ SOLDADOS ARMADOS, AMADOS OU NÃO"
Naquele Festival Internacional da Canção da Rede Globo, "Caminhando" foi
uma das cinco classificadas de São Paulo para a final nacional no Rio.
O que chamou mais a atenção por aqui foi a não-classificação
de "Questão de Ordem", do Gil, e o desabafo de Caetano Veloso,
que acabou retirando sua "É Proibido Proibir" do festival
em solidariedade ao amigo (depois de detonar o júri "simpático,
mas incompetente" com um discurso célebre, que acabou sendo lançado
em disco com o nome de "Ambiente de Festival").
No Rio, entretanto, o clima era outro. Numa manifestação de rua,
a repressão acabara de submeter estudantes a terríveis indignidades
(os soldados chegaram a urinar sobre os jovens rendidos e a bolinar as moças).
Isto despertou indignação geralizada na cordialíssima
cidade maravilhosa.
O III FIC aconteceu logo depois e os cariocas adotaram "Caminhando" como
desagravo. Vandré teve muito mais torcida lá do que em SP. Quando
ele reapresentou a música, já como 2ª colocada, os moradores
de Copacabana abriram as janelas de seus apartamentos e colocaram a TV no volume
máximo. Cantaram juntos, expressando toda sua raiva da ditadura.
Reencontrei Vandré por volta de 1980, quando eu estava colaborando com
várias revistas de música. Propus-lhe uma entrevista, que ele
não quis dar: "Não tenho disco nenhum para lançar,
para que falar à imprensa?".
Acabamos indo (eu e minha companheira de então) ao apartamento do Vandré na
rua Martins Fontes e papeando durante horas -- mas em off , ou seja,
com o compromisso de nada publicar.
Reparei que ele continuava lúcido, ao contrário das versões
de que teria ficado xarope por causa das torturas. Mas, perdera a
concisão e clareza. Seus raciocínios faziam sentido, mas davam
voltas e voltas até chegarem ao ponto. Para entender a lógica
do que ele dizia, eu precisava ficar prestando enorme atenção.
Era exaustivo.
O mais importante que ele disse: estaria na mira de organizações
de extrema-direita, inconformadas com o gradual abrandamento do regime.
A censura finalmente liberara "Caminhando", que fazia sucesso na
voz de Simone. Vandré explicou que tinha de passar-se por louco pois,
se ele tentasse voltar ao estrelato junto com a música, seria assassinado.
Insistiu muito em que não se apresentaria no Brasil enquanto o País
não oferecesse garantias legais aos seus cidadãos. Realmente,
algum tempo depois, soube que ele marcara um show para uma cidade paraguaia
fronteiriça com o Brasil. Quem foi lá vê-lo? Brasileiros,
claro...
Quando estudava na ECA/USP, eu fiz um trabalho
de teleteatro de meia hora baseado nos personagens e no clima da música "Das
Terras de Benvirá" -- sobre uma comunidade de refugiados brasileiros
decidindo se já era hora de voltar para a patriamada ou não.
Minha pequena contribuição àquele momento (1979) da anistia.
Conheço quase toda a obra do Vandré. E considero o LP francês, "Das
Terras de Benvirá", uma pungente obra-prima.
"SEM TER NA CHEGADA QUE MORRER, AMADA"
Quanto à promiscuidade com milicos depois de sua volta do exílio,
a canção composta em homenagem à FAB e as declarações
negando ter sido torturado, a minha opinião é que ele não
conseguiu suportar a realidade de que não se comportara heroicamente.
Em várias músicas (como "Terra Plana", "Despedida
de Maria" e "Bonita"), o personagem central era um guerrilheiro.
As canções, narradas sempre na primeira pessoa. Ou seja, saltava
aos olhos tratar-se do papel que sonhava ele mesmo vir a representar na vida
real.
Mas, claro, o Vandré não foi para a guerrilha nem parece ter
passado pela prova de fogo nos porões da ditadura com o destemor desejado.
Além disto, não aguentou viver muito tempo fora do Brasil e voltou
com o rabo entre as pernas. Com certeza, negociou com os militares para poder
desembarcar "sem ter na chegada/ que morrer, amada,/ ou de amor matar" ("Canção
Primeira").
A minha impressão é que, nordestino e machista, ele não
aguentou admitir que fora quebrado pela tortura e pelos rigores do exílio.
Então, preferiu desconversar, embaralhar as cartas, descaracterizar-se
como ícone da resistência. Enfim, um caso que só Freud
conseguiria explicar (e esgotar).
De qualquer forma, aquele artista que tanto admiramos foi assassinado pelos
déspotas, da mesma forma que Victor Jara e Garcia Lorca. Sobrou um homem
sofredor, que merece nossa compreensão.
Jornalista e escritor, Celso Lungaretti mantém os blogues
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
VÍDEOS DO VANDRÉ CANTANDO "AROEIRA" (1967) E ASSISTINDO A UM SHOW DO SARGENTO LAGO (2008), AQUI
ARTIGO DO JORNALISTA VITOR NUZZI, QUE EM BREVE LANÇARÁ BIOGRAFIA DO VANDRÉ, AQUI (os interessados em reproduzi-lo devem contatar Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.) .