O que se leva desta vida...

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Ao Doutor Daniel Chaves Leite de Andrade, Dani, meu querido sobrinho.

Búzios, São João de 2007.

Conheci um português em Copacabana, no início da década de 70 do século passado, que trabalhava com um Burrinho sem Rabo (pesado carrinho de ferro e madeira, usado para pequenos transportes e puxado pelo dono). Ele trabalhou muito. Carregou mais peso que um burro de verdade. Eu era seu cliente. Precisei várias vezes do seu carrinho. Indiquei para outros, inclusive. Era barato.... Juntou tostão por tostão. Comprou um barraco com pequeno terreno, no subúrbio, por US$1.000. Reformou e construiu mais dois. Vendeu por US$5.000. Comprou mais... Reformas e construções... Sem deixar de trabalhar com o seu Burrinho...! Em janeiro 1982, fui beber uma cerveja num boteco situado na Raimundo Correia, esquina com Barata Ribeiro, onde ele fazia ponto. Abriu grande sorriso quando nos vimos. Contou-me que era proprietário de seis apartamentos em Copacabana. Pasmei... Ele havia comprado estes apartamentos em edifícios populares. Três na Galeria Ritz, na Av. Copacabana, um na galeria Alasca na mesma Avenida, no Posto Seis e dois no lendário “Edifício 200”(*), da Barata Ribeiro, que pela má fama virou 194. Tudo alugado. Contou-me também que tinha uma vila de 16 quartos (oito em cada lado, com um único banheiro e quatro tanques no corredor). Imóvel deste tipo, com banheiro coletivo e confusão para todos lavarem roupas em 4 tanques é nada mais que um cortiço. O tempo passou... Ele continuou comprando, reformando, vendendo, alugando... Sem abandonar o seu Burrinho sem Rabo! Morei bem mais de uma década no quarteirão de Copacabana onde ele fazia ponto. Tempos depois voltei ao boteco que era dum seu patrício. Veio alegre falar comigo. Pediu ao dono do botequim um grande embrulho em jornal que estava na geladeira. Disse: “isso é pro senhor”. Era uma enorme coxa sanguinolenta de porco (pernil). Contou que era dono de um sítio em Piabetá, onde criava porcos, galinhas e algumas cabeças de gado leiteiro e de corte. Rico, mal vestido (suas sandálias tinham as partes de traz carcomidas pelo peso dos seus calcanhares). Tentou pagar minha despesa. Não permiti! Olhei seriamente para seus olhos e disparei... “Caramba! Você está rico e continua trabalhando com esta porra!!! O que se leva desta vida é a vida que se leva”. Ficou ofendido...! Sem querer, chamei de “porra” o instrumento de sua riqueza. Pedi desculpa pela expressão infeliz e afirmei: “Minha intenção é boa. O Sr. tem condição de viver muito bem. Lindas mulheres, bom vinho, roupas novas... Carro zero..., viagens...”. Continuou com a cara extremamente amarrada! Perdi a amizade de um bom sujeito vencedor, pensei...! Soube, posteriormente, que ele quase matou um bêbado com socos, por tê-lo chamado de “futebolino Panelereiro”, termo ofensivo em Portugal. Tempos depois, passei com minha querida Mãe pela tal esquina. Não vi o “Burrinho sem Rabo”. Escutei alguém gritar...: “Dotô!!! Dotô!!!” Era ele!!! Abraçou-me com a força da sinceridade. Beijou a testa de minha Mãe. Disse que ela “tinha um grande filho” e que era “meu amigo”. Bem vestido, sapatos de verniz com duas cores... Mobília nova (dentadura) com dentes de ouro. Obrigou-nos a almoçar num restaurante mineiro da rua do seu antigo “ponto”, Raimundo Correia; num restaurante “Trem Bom” ou “Fogão de Minas”, não lembro mais... Na mesa ele confessou o seguinte...: “Dotô! Fui no cartório fazer meu testamento. Tava deixando tudo prus otros (sic); filhos, esposa, netos, empregados. Lembrei do que o Sr. disse: ‘o que se leva desta vida é a vida que se leva’. Meti as mãos no livro e arranquei a tal folha. O moço escrivão falou que eu não podia fazer aquilo. E que eu seria multado em dois salários mínimos. Ri com o prejuízo. Tô feliz...” Ele estava de automóvel importado. Apontou com o indicador, na saída do restaurante: “É meu...!”. A Mãe foi prá casa e continuamos a conversa... “Minha família, cambada, que se vire... Tô pegando duas mulheres lindas por semana. Comida boa. Vinhos. Tem Fado bom em Laranjeiras e em São Cristóvão... Tem bom Bacalhau também! Quer ir comigo...? Tenho muito dinheiro!” Por incrível que pareça, o bom portuga parecia bem mais moço. Ágil, com mais gás. Cheio da ginga carioca... Pediu meu endereço... Por anos recebi garrafas de bons vinhos, no Natal.

Contou que seu Burrinho estava “azeitado”, como troféu, no salão de sua fazenda em Pau Grande, terra do fantástico Mané Garrincha. Deu uma casa de dois quartos para sua empregada... “Mulher guerreira. Sempre cuidou de mim, sem reclamar. Ela é melhor que a mãe dos meus filhos...”.

Que coisa, né?

Pura verdade!!!


“O QUE SE LEVA DESTA VIDA É A VIDA QUE SE LEVA...!!!”.


Ou, como disse-me o premiado escritor e psiquiatra Dyonélio Machado, em visita ao seu enorme apartamento/biblioteca/museu/antiquário, na Av. Borges de Medeiros, P. Alegre, em 1980: “Sejas de ti tudo o quanto colhas. A flor, o fruto... Ou simplesmente folhas...!”


(*) No “Edifício 200” havia tráfico de drogas, brigas, assassinatos, prostitutas, travestis, cafetões, escroques..., sem falar em muita gente boa e trabalhadora. Quase todos os dias a polícia baixava neste enorme edifício, com centenas de apartamentos minúsculos (25m²) que eram habitados por cinco, seis pessoas, cada. Namorei uma linda mineira, estudante de Direito, que dormia numa “vaga” em um destes cubículos. Contou-me que quando saia de manhã cedo, chegava uma prostituta para dormir em sua cama. E, à noite - depois do estágio e da faculdade - encontrava a cama ainda quente do calor humano da tal “dama da noite”. Pegou sarna, chato... Outra vencedora!!! Constituiu família. Tem apartamento próprio de dois quartos na mesma Copacabana, sem falar na casa de campo, na serra de Teresópolis. Especializou-se em Direito Internacional. Labuta numa famosa banca do centro da cidade.


O “Edifício 200”, atual 194, foi moralizado. Tem equipe de “seguranças” em suas portarias.
Luciano Moojen Chaves
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Sobre este texto:


“A forma é excelente, o conteúdo melhor. Acho que deves conversar amistosamente com as teclas.”
Fausto Wolff.
Escritor e jornalista (um dos editores do histórico “O Pasquim”). É cronista do Caderno B do Jornal do Brasil.


“O texto está ótimo. Li com sofreguidão e ansiedade pelo desfecho, que são sinais de que a coisa é uma crônica de verdade. A sua sintaxe é elegante, o ritmo também, idem a capacidade de dar contornos aos personagens. O texto é fluido e visualizamos com facilidade personagens, épocas, ambientes, etc. Parabéns! Afinal, a reverência de um Fausto Wolff não é para qualquer um.”

Antônio Oswaldo Castro Leite de Andrade.

Jurista, poeta e crítico de arte.

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