Depois que alcançamos os quarenta anos de idade, passamos a pensar um pouco na morte. Dos sessenta anos em diante, ela está mais presente na cabeça da grande maioria das pessoas. Começamos a fazer as contas e verificamos ter cumprido 2/3 da vida, faltando 1/3 somente. É quando estamos saindo do verão quente e gostoso de nossas vidas para entrar no outono e, depois, no inverno, muitas vezes rigoroso. Nada disso é anormal segundo os entendidos da vida e da morte. Anormal é pensar diariamente na morte, esquecendo do que temos ainda pela frente. Temos que privilegiar o terço final que nos resta, deixando de lado aqueles discursos baratos que tendem a nos fazer imortais, quando não somos.
Recordar a juventude com o intuito de a ela retornar, parece-me
estranho. Seria insano para mim voltar aos 12 ou 15 anos de idade,
quando era espancado impiedosamente por meus pais. Mesmo que tivesse
sido tratado com carinho por eles, certamente não lamentaria a perda da
juventude. Já imaginaram conviver novamente com espinhas no rosto? Ou
com a preocupação de voltar para casa à noite no horário exigido pelos
pais, quando aquele papo maravilhoso entre os amigos do banco corria
solto e animado? De ter que pensar na morte da mãe colocada dentro de
um caixão roxo para buscar derrubar um pênis ereto que insistia em sair
da cueca, ou da colhoneira durante os bailinhos? De manter escondida
uma edição da revista O Cruzeiro com as candidatas a mis mundo metidas
em maiôs pretos de corpo inteiro, que me excitavam para o exercício da
masturbação? Nada disso me toca fundo, porque já passou. Gosto de
recordar minha juventude, mas não com o intuito de a ela voltar, porque
não tolero absurdos. Hoje, o que conta para mim é o aproveitamento
diário da vida. É o contar a vida em dias preciosos. Nada mais.
Sou oito anos mais velho que a Vera. Ninguém sabe quem morrerá
primeiro, mas ela aposta que serei eu. E com o que eu também concordo.
Nunca tive conhecimento de pessoa que tenha morrido de saudade do
cônjuge que se foi. Quando muito, as pessoas ficam alguns dias meio
deprimidas para em seguida intuírem que a morte de um não deve
acarretar necessariamente a morte do outro para as coisas boas da
vida. Sou a favor até da busca por nova relação amorosa, mesmo que o
cônjuge sobrevivente esteja com idade avançada. Neste caso, é precioso
que a pessoa mantenha seu dinheiro escondido, antes da chegada da
velhice. Se tem patrimônio, terá que o transformar em dinheiro. Do
contrário, filhos, netos, noras e genros aparecem para tentar dirigir a
vida do velho, sob os mais variados pretextos. O discurso deles caminha
na direção da proteção do idoso, quando na verdade eles estão de olho
no seu patrimônio e no rico dinheirinho que conquistou com trabalho
duro diário durante décadas. Da proteção para a dominação é um passo.
Tenho um amigo, coronel pára-quedista do Exército do Brasil que
amealhou algum dinheiro e patrimônio em toda a vida, e que se apaixonou
pela empregada, uma negra com todos os dotes da raça: dentadura
perfeita, lábios carnudos, coxas fartas e uma bunda-prateleira
maravilhosa na visão dele. E descompromissada. Hoje, o coronel está
com mais de 70 anos de idade, e a moça em torno dos 30. Como sempre
cuidou muito bem da saúde, meu amigo está com tudo em cima. E sedento
de muito sexo, e a moça parece corresponder. Ele me confidenciou:
¨Roberto, quando coloco minha rola em seu corpo, é o mesmo que bife na
chapa quente. Faz até aquele chiadinho”. Eu acredito em suas palavras,
porque a reação dos seus dois filhos, permite-me assim entender. Se
estivesse broxa, os filhos estariam felizes, porque seu patrimônio e
dinheiro estariam preservados para eles. Como mantém um relacionamento
amoroso com uma empregada negra e nova, as coisas ficam em perigo na
visão de suas crias. Seus dois filhos entendem que ele pode perder tudo
em favor da namorada. Ora, até aqui grande parte de seus bens, formado
por uma confortável casa, apartamentos e dinheiro foram perdidos em
favor de seus herdeiros. Por que ele teria que preservar o que lhe
restou em favor deles? Tudo ainda lhe pertence. Ele está vivo e bem da
cabeça. E como está.
Acatando orientação da filha, foi morar em prédio onde vive próximo de
um filho cinqüentão que não deu certo na vida, casado e com dois
herdeiros. Sua mulher também não produz nada regularmente. Quem paga
suas contas é a irmã e o coronel. É fácil entender os motivos que
levaram este filho a ser um derrotado na vida. Se não tivesse ninguém
para pagar seus compromissos, certamente estaria menos ruim na luta
pela vida. Quem produz filhos dependentes são pais que os carregarão
nas costas pelo resto de suas vidas, porque todos se tornam verdadeiras
malas sem alça. Estes pais desmobilizaram seus filhos pela luta do
dia-a-dia, fazendo-os acreditar que a vida boa que criou com suor e
muita luta os alcançaria sem que precisassem lutar e trabalhar. Erro
grave.
Em conversa com o coronel, aconselhei-o a abandonar os filhos e ir
morar às escondidas com seu diamante negro em outro estado brasileiro,
não deixando seu endereço para ninguém. Para isso, tem que esvaziar seu
balaio de culpas que traz na costas há décadas, o que não é nada
difícil.
Voltando ao tema morte, estou com aqueles que dizem ser mais fácil ir
primeiro do que ir depois do outro cônjuge. Os que ficaram por último,
embora não morressem pela falta do outro, disseram ser muito
desconfortável continuar levando a vida sozinho. Eu confirmei esta
assertiva recentemente quando voltava aos EEUU, vindo do Brasil, em vôo
pela TAM – Transporte Aéreos Marília, uma empresa aérea que tem o
orgulho de ser brasileira, com o que concordo plenamente. Saímos eu e
Vera às 11h. e 30m. do Aeroporto Internacional de Guarulhos e, menos de
duas horas depois, estávamos diante de um gostoso almoço servido por
aeromoças bem vestidas e de fina educação. Como bebida, dei
preferência a um refrigerante dietético como sempre faço. A Vera
preferiu como de costume uma pequena garrafa de vinho tinto que ela
sorveu rapidamente. Depois de saber que a TAM não cobra pelo vinho, ao
contrário do que acontece com empresas aéreas americanas, repetiu a
dose. Fi-la entender que sua face estava muito enrubescida, mas
observações deste tipo para ela soam como alguma forma de cerceamento
que ela fingi não ouvir. Minutos depois, Vera diz sentir vontade de ir
ao banheiro. Acompanhei-a como das outras duas vezes anteriores. Eu
sempre na frente dela. Ao chegar na porta do banheiro, Vera tocou nas
minhas costas com todo o seu corpo, como acontece no interior dos
ônibus quando o motorista dá aquela freada de arrumação. Indaguei do
que se tratava e, voltando meu corpo na sua direção, contemplei-a com
sua face esmaecida e com os olhos vidrados, para em seguida desabar de
costas sobre o chão do avião, levando espanto aos que estavam próximos
de si. Sua palidez era a mesma de pessoas mortas. Tentei segurá-la,
mas não obtive bom êxito. A cena foi terrível para mim, porque pela
primeira vez em 40 anos de casado com ela, vi-a com uma fisionomia de
morte e com um olhar estranho, jamais visto. Em muitas situações
difíceis tenho uma compreensão rápida do que está acontecendo ao meu
redor, decorrente de ensinamentos que recebi de meu pai Florêncio, um
homem dinâmico, de raciocínio rápido e de visão fantástica. Para minha
felicidade, fiz uma relação meteórica entre o álcool ingerido por Vera
sob a forma de vinho e seu estado deplorável de saúde naquele momento.
Eu sabia que bebidas alcoólicas ingeridas em vôos de avião são
potencialializadas pela altitude. Além disso, por ser mulher e baixa,
deveria beber menos, mas ela insiste em sorver copázios de vinhos. O
que ela toma seria demais até para os homens, que têm mais altura e
volume maior corporal, mas ela fingi não ouvir. Outras pessoas gentis
e generosas ajudaram-me a levantar a Vera do chão do avião, mas ela
continuava inerte. Naquele momento, eu atestava duas situações
curiosas e interessantes: 1ª - que minha mulher, próximo de fazer 60
anos em novembro, não é mais tão fácil assim de ser erguida do chão
como nos velhos tempos e, 2ª - que eu aos 67 anos não continuo forte
como antigamente. Com muita dificuldade, arrastei-a para o interior do
minúsculo banheiro, que passava a dividir espaço com duas pessoas. Ela
continuava fora de combate, mas forcei com energia sua cabeça na
direção do chão do avião. Segundos depois, ela reagiu, demonstrando que
voltava à realidade. Mesmo assim, sua face estava tomada pela lividez,
mas seus olhos retomaram o brilho. Em seguida, pôs-se de pé para minha
felicidade. Voltamos à nossa poltrona e Vera dormiu o sono solto e
tranqüilo das crianças. Vi-me viúvo por alguns segundos, mas o
suficiente para entender o quanto é difícil perder uma pessoa de quem
se gosta tanto. Aquele 4 de junho de 2007, 2ª feira, está marcado
indelevelmente na minha mente. E assim ficará até o derradeiro
suspiro.