Anna Louise Strong, jornalista e escritora estadunidense, durante
muitos anos, viveu na União Soviética e na República Popular da China.
Autora de inúmeros livros e reportagens sobre os países que visitou e
residiu, tais como Rússia na guerra e na paz, A China luta pela
liberdade, Rio Selvagem, Cartas da China, dentre outros, Strong se
tornou uma das maiores entusiastas personalidades que divulgavam as
grandes realizações e lutas dos povos que construíam o socialismo. De
sua intensa atividade como repórter-correspondente, destaca-se a
entrevista com o maior líder revolucionário que o mundo conheceu, o
presidente Mao Tse-tung, realizada em 1946 — quando, desde Yenam, a
lendária base de apoio situada ao noroeste da China dirigia o Exército
Popular e as massas de seu país na luta contra a agressão militar
japonesa.
O texto que AND publica a seguir, uma tradução de Cristiano Alves,
descreve a luta pela emancipação das mulheres soviéticas e expressa as
observações da autora, Anne Louise Strong, nos 20 anos de vivência nas
terras livres da então revolucionária União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS).
"Ó mulher, o mundo não esquecerá da sua luta pela liberdade!"
A mudança no status das mulheres constituiu-se numa das transformações
sociais mais importantes ocorridas no interior da nova sociedade em
toda a URSS. A revolução dera às mulheres uma igualdade jurídica,
porque, principalmente, havia produzido grandes e decisivas conquistas
políticas. A industrialização em bases revolucionárias dotou a economia
do pagamento igualitário para igual trabalho.
Ainda assim, em cada aldeia, as mulheres tinham que lutar contra
hábitos seculares. Notícias vindas de uma aldeia da Sibéria, por
exemplo, onde — depois de implantadas as granjas coletivas, as mulheres
passaram a ter uma renda independente —, as esposas se decidiram por
uma greve dirigida contra as surras que levavam dos maridos e, no prazo
de uma única semana, puseram fim à tradição consagrada ao longo dos
séculos de divisão social do trabalho. "Os homens todos zombaram da
primeira mulher que nós elegemos no soviete da nossa aldeia", me falou
uma presidenta da aldeia, "mas na próxima eleição nós elegeremos seis
mulheres e seremos nós quem riremos". Conheci vinte destas presidentas
de aldeias, em 1928, em um trem na Sibéria, rumo ao Congresso das
Mulheres em Moscou. Para a maioria delas, aquela tinha sido a primeira
viagem de trem e apenas uma estivera fora da Sibéria alguma vez. Elas
tinham sido convidadas para ir a Moscou com o intuito de "aconselhar o
governo" sobre as exigências das mulheres; para tanto, seus municípios
as haviam escolhido por votação para representá-los.
A mais difícil região onde as mulheres tiveram que se bater pela sua
liberdade foi a Ásia Central. Ali, as mulheres eram tratadas como bens
semoventes, vendidas em matrimônio. Mesmo assim, quando muito jovens, e
nunca, depois disso, eram vistas em público sem o horroroso paranja* —
um longo véu preto feito com crina de cavalo tecida, que cobria toda a
face, dificultando a respiração e a visão das mulheres. A tradição
conferia aos maridos o direito de matar as esposas caso retirassem o
véu e os mulás, sacerdotes muçulmanos, justificavam tal prática através
da religião. As russas trouxeram a primeira mensagem de liberdade: elas
montaram clínicas de bem-estar para a criança e, através delas, as
mulheres nativas retiraram o véu em suas presenças.
Ali, foram discutidas as liberdades a serem conquistadas pelas mulheres
e os males advindos do uso do véu. O Partido Comunista pressionou seus
filiados a permitir que suas esposas retirassem os véus se assim
desejassem.
Quando visitei Tashkent pela primeira vez, em 1928, uma conferência de
mulheres comunistas estava denunciando: "Nossas camaradas estão sendo
violadas, torturadas e assassinadas. Por isso, ainda este ano, teremos
que acabar com essa horrorosa obrigação do uso de véus; este deve ser
um ano histórico."
Enquanto isso, incidentes chocantes deram razão a esta resolução. Houve
o caso da garota de uma escola de Tashkent, que recebeu férias para que
pudesse participar de agitações pelos direitos das mulheres na aldeia
de sua casa. Como resposta, seu corpo desmembrado foi mandado de volta
à escola em uma carroça, onde se lia: Isto é para a liberdade de suas
mulheres.
Uma outra mulher havia recusado as atenções de um proprietário de
terras e casara-se com um camponês comunista. Em conseqüência, um grupo
de dezoito homens, incitados pelo proprietário, a violou no oitavo mês
de gravidez e lançou seu corpo em um rio. Poemas foram escritos por
mulheres para expressar sua valentia e o suplício a que fora submetida.
Quando Zulfia Khan, uma lutadora da liberdade, foi queimada viva pelos
mulás, as mulheres de sua aldeia escreveram um lamento: "Ó mulher, o
mundo não esquecerá da sua luta pela liberdade! Sua chama não os deixou
pensar que te consumiu. A chama na qual você queimou é uma tocha em
nossas mãos."
A fortaleza da opressão ortodoxa era Santa Bokhara. Ali, um dramático
desvelamento vinha se organizando. Foi difundida a notícia de que "algo
espetacular" aconteceria no dia 8 de março, o Dia Internacional das
Mulheres. Celebraram-se reuniões massivas de mulheres em muitas partes
da cidade naquele dia, e as oradoras urgiram que todas as mulheres se
"desvelassem de uma só vez". As mulheres marcharam, então, à
plataforma, lançaram seus véus ante suas companheiras e realizaram uma
manifestação pelas ruas. Tribunas foram erguidas, de onde os líderes do
governo saudavam as mulheres. Outras companheiras mais, se uniram à
parada, saindo diretamente de suas casas e abandonando seus véus ao
passar nas tribunas. Aquele ato quebrou a tradição do véu em Santa
Bokhara. Muitas mulheres, claro, vestiram seus véus novamente antes de
encarar seus maridos enfurecidos. Mas o véu aparecia cada vez menos,
desde então. Ao tomar conhecimento deste fato, o Poder Soviético usou
várias armas para libertar as mulheres, como a educação, a propaganda e
a lei em todas as partes. Grandes julgamentos públicos condenaram
duramente os maridos que assassinaram suas esposas. Com a pressão das
novas exigências, juízes confirmaram a pena de morte para os
praticantes do que o velho costume não considerava como crime**.
A arma mais importante para livrar as mulheres era, como na própria
Rússia, a industrialização. Visitei um novo moinho de seda em Velha
Bokhara. O diretor desse empreendimento, era um homem pálido, exausto,
trabalhando sem sono para construir uma nova indústria. Disse não
esperar que o moinho fosse lucrativo por muito tempo. "Nós estamos
treinando as aldeãs para ter um novo pessoal nos futuros moinhos de
seda do Turcomenistão. Nosso moinho é a força conscientemente aplicada
que quebrou o véu das mulheres; nós exigimos que as mulheres se
desvelassem no moinho". Jovens trabalhadoras do setor têxtil escreveram
canções para o novo significado da vida, quando trocaram o véu pelo
lenço de cabeça russo, o kerchief. "Quando tomei a estrada da fábrica,
eu lá encontrei um novo kerchief, um kerchief vermelho, um kerchief de
seda, comprado com o trabalho das minhas próprias mãos! O rugido da
fábrica está em mim. Me dá o ritmo, me dá a energia".
Alguém pode ler isto quase sem recordar, mas em contraste "A Canção da
Camisa", de Thomas Hood, expressou como eram as fábricas inglesas de
hoje: "Com dedos cansando e trabalhando/com as pálpebras pesadas e
vermelhas, uma mulher sentou, vestida de trapos/manipulando a agulha e
a linha. Pondo, ponto a ponto, em pobreza, fome e sujeira,/ e ainda,
com uma voz de doloroso cansaço/ela cantou a canção da camisa". Na
Inglaterra capitalista, a fábrica apareceu como uma arma de exploração
para lucro. Na URSS, ela era não apenas um meio de riqueza coletiva,
mas, também, uma ferramenta conscientemente usada para quebrar as
algemas do passado.
*O paranja era muito semelhante à burca afegã.
**Desde então, passou a ser crime punível com a pena capital assassinar mulheres que retirassem o véu.