Sebastiana é uma daquelas mulheres que emocionam a gente só com o
olhar. A vida parece que sempre quis se livrar dela ou mostrar que ela
não mandava no próprio destino. Mas ela, de pirraça mesmo, sempre
mostrou que mandaria em sua vida, faria suas escolhas, traçaria seu
caminho.
Perdeu o pai aos três anos. Ainda pequena, viu a mãe obrigada a
trabalhar incansavelmente para sustentar a família e começou a cuidar
dos irmãos menores. A mãe saía cedo para trabalhar na roça dos outros.
Quando não era época de plantio ou colheita, a mãe lavava roupa nas
casas dos latifundiários da região. Terra, a família nunca teve. Sempre
morou em terras alheias, uma alternativa dos camponeses pobres da
região. A terra muito seca precisava de irrigação, desta forma até quem
tinha terra, mas era pobre, acabava indo morar nas terras dos
latifundiários.
Pouco depois da morte do pai, a família de Sebastiana foi morar no
latifúndio dos Alcântara, família tradicional na região. Eles não
tinham filhos e acabaram pedindo a pequena Sebastiana pra eles.
Disseram que criariam a menina como uma filha, que ela poderia estudar.
A mãe, vendo nisso a possibilidade de uma vida melhor para a filha,
entregou-a aos patrões.
Logo a família de Sebastiana mudou-se novamente e os Alcântara
arrumaram o primeiro filho. A menina, aos quatro anos, começou a ser
escravizada e apanhar muito. Quando a criança nasceu, coube à pequena
Sebastiana todos os cuidados com o recém-nascido. Sebastiana era a
escravinha que fazia todos os serviços domésticos. Antes de completar
cinco anos, os patrões cortaram seu cabelo bem curto porque para eles
“preto não podia ter cabelo grande”. Na verdade queriam humilhar
Sebastiana desde pequena, infringir a ela todo tipo de sofrimento.
Por volta dos oito anos, o dia de Sebastiana começava antes do sol
nascer. Às quatro da manhã, ela já estava de pé. Precisava buscar água
no poço. A pequena carregava latas de nove litros na cabeça. Subia para
a sede da fazenda, distante uns 300 metros do açude, e isso se repetia
até que os tambores que ficavam dentro da casa ficassem cheios. Depois
tinha que ir para o pasto, buscar as vacas e começar, junto com os
outros empregados, a tirar o leite.
Escola, ela frequentou pouco. A patroa achava que "a negrinha podia dar muito trabalho se estudasse"
Sebastiana se lembra bem dessa época de sofrimento. Afinal, as marcas
desse tempo ainda estão no seu corpo. Os pés guardam cicatrizes
silenciosas. Ela não tinha sapatos e fazia todo o serviço descalça. Aos
poucos, os pés foram criando uma espécie de carapaça para se defender.
Mas vez ou outra, era inevitável cortá-los. As marcas trazem as
dolorosas lembranças desse tempo.
Quanto mais crescia, mais trabalho era dado à ela. Aos dez anos,
conduzia o arado na fazenda, começava de madrugadinha e ia até o
entardecer. A menina, magrinha como era, trazia os carros de boi cheios
de milho e arroz para o galpão. Depois carregava sacas e sacas dos
grãos, debulhava o milho e limpava o arroz. O carro de boi foi o grande
vilão da infância da pequena. Ela era forte, mas não o bastante para
manter o domínio sobre os bois que puxavam o carro. Então, não era raro
que os bois saíssem do risco do arado.
O patrão ficava só supervisionando o trabalho. Cada vez que os bois
saíam do risco, a menina levava uma porretada na cabeça. Assim, foi
tomando ódio do carro de boi e muito mais do patrão.
II
De madrugada até à noite, a menina mal podia se sentar. Se
chamassem e ela demorasse, era surra na certa. Um dia, Sebastiana
levantou-se, como sempre antes do galo cantar, mas acabou dormindo de
novo. A menina acordou, sentindo a bunda quente das chibatadas que
levou do patrão. Outra vez acabou dormindo na fornalha, enquanto
preparava o café e acordou com o cabelo pegando fogo.
Sebastiana foi criada sem ter muito contato com outras pessoas, além
dos patrões. A menina, quando trabalhava junto aos outros empregados da
fazenda, era vigiada o tempo todo pelo patrão. Escola, ela frequentou
muito pouco. A patroa achava que “a negrinha podia dar muito trabalho
se estudasse”.
A morte da mãe não foi comunicada à menina. Ela não foi ao enterro. Os
patrões temiam que alguém da família tentasse ficar com a menina.
Somente muito tempo depois Sebastiana soube da morte da mãe.
Uma das lembranças que mais machucam vem à cabeça quando Sebastiana
olha as próprias mãos. Machuca, mas também alegra. Afinal, por aquelas
mãos, Sebastiana deu seu primeiro grito de liberdade.
Aos 12 anos, a patroa mandou Sebastiana fazer sabão de soda com a
própria mão. Com medo, a menina obedeceu. Ao começar o trabalho, já
chorando, Sebastiana sentiu a soda cáustica queimando sua pele. E foi
queimando também o medo terrível da patroa. Com a pele soltando, ela
correu e lavou as mãos.
Alguns dias depois, a patroa queria obrigá-la a fazer sabão com as mãos
de novo. Dessa vez, a menina se recusou. A patroa, tomada pelo ódio de
se ver desobedecida, achando muito petulante a atitude da negrinha
(como ela a chamava), pegou imediatamente, um pau que era usado para
arrumar a lenha do fogão. Sebastiana, impetuosamente, arrancou o pau da
mão da patroa. Faíscas de fogo iluminavam o olhar decidido da menina.
Sem pestanejar, ela tomou outro pau e arremessou contra a patroa. A
cabeça da mulher sangrava e os olhos de Sebastiana flamejavam de ódio.
Quando a menina viu o que tinha feito, a patroa ali desfalecida no
chão, uma poça de sangue na cozinha, ela correu. Ficou escondida no
mato por três dias, até que um peão a encontrou e levou de volta para a
fazenda. O patrão deu-lhe uma surra, mas a patroa, nunca mais ousou
levantar a voz para ela.
Se por um lado o sofrimento da menina diminuía, porque não mais
apanhava da patroa, por outro a violência praticada pelo patrão
aumentava do pior jeito possível.
Aos 12 anos, o corpinho magro de Sebastiana começava a se delinear como
corpo de moça. Os seios despontavam, a cintura fina contrastava com o
quadril que começava a enlarguecer. O patrão via a transformação da
menina. Sem caráter, sem escrúpulos, guardando a vil mentalidade da
época da escravidão, achava que a menina pertencia a ele e, por isso,
seria mais uma negrinha que se deitaria com ele, como se estivesse em
pleno século dezoito.
Todos os dias o patrão entrava no pequeno quarto de Sebastiana.
Primeiro afirmava que se ela falasse algo a mataria. Sempre levava a
arma para amedrontar a menina. Se ela fizesse qualquer movimento ele
dava uma coronhada nela. Depois de levar muitas coronhadas, ela passou
a ficar paralisada diante da figura dele. Ficava aterrorizada só de
sentir o cheiro daquele homem nefasto. Segurava o choro quando ele se
deitava por cima dela. Ainda não entendia o que se passava em seu
quarto. Sentia dores toda vez que ele se deitava em cima dela e
arrancava os trapinhos que ela vestia.
Enquanto o patrão esmurrava, batia e abusava de Sebastiana, a patroa só
se preocupava em ler revista de moda. Aos 14 anos, Sebastiana
engravidou do patrão. Ele, então, comprou remédios e a obrigou a tomar,
mas mesmo assim ela não perdeu a criança. Restava apenas uma solução
para que a mulher não desconfiasse. Ele, então, obrigou Sebastiana a
dizer que o filho era de um rapaz apaixonado por ela e obrigou os dois
a se casar.
Outra vida
A vida sofrida de Sebastiana nunca lhe saiu
totalmente da cabeça. Crescida, separou-se do marido que não amava.
Chegou a morar com outro homem, mas separou-se logo. Não queria mais
ninguém pensando que podia mandar na sua vida. Ela, de certa forma,
tinha começado a construir sua liberdade.
Sebastiana continuou trabalhando no campo. Apesar das lembranças
tristes que esse trabalho lhe trazia, aprendeu a amar o trabalho. Na
infância, dentro de todas as coisas ruins, a ligação com a terra era
especial. Tocar a terra com as mãos e ver o fruto brotando eram as
únicas sensações de felicidade que a menina tinha.
Mesmo trabalhando muito, Sebastiana nunca conseguiu comprar nem um lote
na cidade, quanto mais um pedaço de terra. Trabalhava todos os anos nas
colheitas de café, onde podia ganhar um pouco mais, mas o dinheiro
nunca dava.
Um dia ficou sabendo que uma vizinha estava num acampamento de
camponeses pobres sem terra. Sebastiana e outra amiga combinaram de
trabalhar na colheita do café, juntar dinheiro e ir para o acampamento.
Elas queriam ter alguma reserva, mesmo que pequena, porque sabiam que a
luta pela terra não seria fácil.
No final da colheita, as duas foram conhecer a área. Três dias depois já estavam acampadas junto com as outras famílias.
E a partir daí, a vida sofrida de Sebastiana ficou mais alegre. Apesar
das dificuldades da luta pela terra, ela tinha perspectivas, tinha
esperança. E ela, que já tinha passado por muita coisa ruim na vida,
enfrentou de peito aberto a luta.
Terra sai, terra não sai. Vem liminar e vem polícia. Veio até tiro,
para ela apenas uma marca a mais no corpo sofrido de mulher guerreira.
E Sebastiana continuou ali, “garrada na luta”, como gosta de dizer.
Ao contar sua história Sebastiana diz que quando pequena ela não tinha
nenhuma defesa, estava sozinha para enfrentar todas as dificuldades.
Hoje, ao contrário, tem mais força, coragem e muitos companheiros de
luta. Se não havia desistido da vida quando criança, não seria agora
que desistiria.
Hoje, no peito de uma mulher guerreira, ainda persistem as lembranças
da vida sofrida. Mas bate muito mais forte a certeza da construção de
um mundo novo.