Era uma vez, uma dor

Foragido das páginas dos livros do Festival Internacional de Literatura de Paraty, Napoleão Bonaparte caminha pelas ruas de pedras da velha cidade do litoral fluminense.

Em terras brasileiras, entre o mar e as montanhas, o general francês está a remoer palavras do sábio do Eclesiastes, seu grato consolo no exílio de Santa Helena. Cabeça baixa, mão esquerda na barriga. A direita ergue o texto bíblico:

- Tudo tem seu tempo. Tempo de guerra e tempo de paz. Houve uma pequena cidade em que havia poucos homens. Veio um grande rei, sitiou-a e levantou contra ela grandes baluartes. Encontrou-se nela um homem pobre, porém sábio, que a livrou com sua sabedoria. Então, melhor a sabedoria do que a força.

Hoje, pisando o chão de Paraty, Napoleão acredita.

Levas de fugitivos acompanham o guerreiro derrotado em seu passeio. Desgarrados das prateleiras, ganham as ruas mil corações partidos de desventuradas histórias, heróis, vilões, poetas, cada qual com sua dor.

Beirais, gradis coloniais. O velho casario da cidadezinha histórica de 400 anos, antigo refúgio de piratas, espia a passeata dos fantasmas que um dia vestiram carne. Agora eles são apenas histórias e vagueiam no festival internacional da imaginação.

Nessa atmosfera de cultura, sob os holofotes da imprensa de todo o mundo, entre casas antigas, sol forte, move-se, de carne e osso, o paulistano Cláudio. De imperador, só o nome. Cláudio Bongiovani perambula pelas esquinas e vielas de Paraty a vender a revista Ocas, iniciais da Organização Civil de Ação Social, com sede no bairro do Brás, em São Paulo. Custa 3 reais. Um real para a Ocas, 2 reais para ele. Ótimo. É dom de Deus que possa o homem comer, beber e desfrutar o bem de todo o seu trabalho. Alegra-se o rei sábio da Bíblia.

É rotina do imperador Cláudio vender a Ocas em um ponto fixo na calçada movimentada do Masp, o Museu de Arte de São Paulo, na Avenida Paulista. Esta vez, esperançoso, se pôs a plantar sua revista de cultura também no meio intelectual da feira literária de Paraty. Certo, imperador. Semeia pela manhã a tua semente e à tarde não repouses a tua mão, porque não sabes qual prosperará, se esta, se aquela, ou se ambas igualmente, adverte o Eclesiastes.

Em suas escapadas ele vagueia até pela Europa, onde conhece algumas das 20 revistas semelhantes à Ocas, que dão oportunidade de mudança na vida das pessoas em situação de rua. A interação decorrente da compra e venda dessas publicações permite aos vendedores estabelecer contatos, ganhar algum dinheiro e dar novos passos de reintegração.

Achei!

Na rede de uma dúzia de computadores da Ocas onde busca inclusão digital, Cláudio achou mais uma feira literária onde vai poder vender suas revistas. É em Bauru. Vai lá correndo fazer seus negócios. Vendeu um monte, em Paraty. Ganhou bom dinheiro. Nada como trabalhar e poder pagar sua própria roupa, comida, tênis, agasalho. Hoje pode até pagar um pequeno aluguel, em uma das 300 caixas de fósforo dos 24 andares do Edifício Esplanada, na Várzea do Glicério.

No chão do seu sala-e-quarto, na colméia de favos todos iguais do prédio, uma esteira, uma escrivaninha velha, uma cadeira. Não mais o disputar lugar na calçada, no viaduto, na laje. Não mais os sobressaltos da chuva, do frio, da fome, do caminhar a esmo. Grudado na porta do lar-doce-lar, o letreiro de papel conta sua história em duas palavras: sobrevivente da rua.

Maravilha um teto, uma torneira, um chuveiro quente, uma esteira.

Livro de cabeceira, “Um”, de Richard Bach. Trata de uma viagem de alguém para dentro de si mesmo, 10 anos passados e 50 que virão. A mensagem: “Não há problemas que não lhe tragam nas mãos um presente”. Bach é autor esotérico de Fernão Capelo Gaivota, Ilusões, A Ponte Para o Sempre.

Nos desfiles da imaginação de suas feiras culturais, tempo de os grandes vultos dos paraísos perdidos e das divinas e humanas comédias se desgarrar dos livros para ganhar as ruas. Cláudio se entristece ao ver a realidade negar o que a imaginação promete . Onde o herói, o poeta, o guerreiro, o gênio, o santo, capazes de apagar a lembrança do automóvel, uma bola de fogo, a se despedaçar contra o caminhão na frustrada ultrapassagem de uma carreta, dizimando sua família?

Carbonizados Yuri, 3 anos, Yago, 5, sua mulher Maria, sobrinho, cunhado, sogra. Voltavam da feira do milho em Catanduva. No dia do adeus, caixões fechados. Mudo, acompanha o despejo dos restos mortais nas covas. Vira as costas, sai a andar sem direção, horas e horas, dias inteiros, semanas, meses, anos. Desde o ano de Nosso Senhor de 2001. E olha o tamanho deste mundo.

A vida precisa ser vivida. Perambula em círculos por São Paulo. Sol, chuva, vento, calor, frio, fome, solidão. Entre a floresta de torres de concreto a alcançar o céu da terceira maior cidade do mundo, vence a Paulista, sobe e desce a Consolação, a Brigadeiro. Palmilha a comprida São João, habita praças, cruzamentos. O tempo todo zonzo, trombando nas esquinas de gente apressada. Finda a manhã, demora a tarde, pede um dinheiro qualquer para qualquer um, compra duas, três doses de cachaça, bebe num trago, apaga. No outro dia acorda sem noção, sem rumo, não pára em lugar nenhum, não tem condição de ficar parado em lugar nenhum. É um vagante. Enraizou-se por um pouco num lugar só, em um tempo qualquer, naquele viaduto atrás do Masp. Viaduto São Carlos do Pinhal. É onde tem um tempo mais de localização numa só calçada. Mas esteve, sensação de torpor, em lugares por aí que nem sabe onde foi. Sabe que no outro dia é o acordar sem norte.

- Você não tem nada, não tem vida, não tem idéia, não tem suporte. Você não tem nada, então você anda. Quando o cara não tem nada, anda, tanto faz ir para frente como para trás, é a mesma coisa, é andar. Desligar de tudo.

Quando se aproxima de alguma pessoa, não sente que é amiga. Raro alguém sem ar de tentar se proteger, evitar. Sempre vê as pessoas com medo.

- É uma auto-exclusão. É nessa hora que o cara está excluído dele mesmo. Tem medo das outras pessoas. Chegar a esse ponto, ter medo das pessoas. Tanto que hoje eu falo de alma cheia que esse projeto da Ocas, a grande alavanca desse projeto, está justamente aí, colocar as pessoas que são olhadas como um nada bem de frente às pessoas a quem a revista é oferecida. Essa é a melhor parte do projeto. O financeiro ajuda, o psicológico é sensacional, mas a estrutura que o projeto dá para que o cara, que é tido como um nada, chegue diante das pessoas e sinta a vida e a dignidade oferecendo um produto cultural, isso é a inserção na sociedade do cara. Reinserir o sujeito na vida.

Fim de semana, coração de Cláudio dispara. A cor volta ao seu rosto pálido. A expressão de espanto, sempre a marcar o morador de rua, agora é colorida. Cláudio vai ver a filha. Emoção maior, um abraço, um papo com sua Raiza, de 16 anos. A vida está de volta. A menina mora e cresce em estatura e sabedoria na cidade de Anápolis, com um tio. Quer fazer Física. Faz Inglês. Estar com ela. Olhar nos olhos de seu bebê. Isso é aquecer o coração.

Até agora não surgiu outra mulher que pudesse refazer sua vida, ter um relacionamento seguro. Não apareceu essa pessoa. Interesse por alguém tem acontecido, superficial. Ainda tem uma marca muito grande. Foram 15 anos de casamento. Tem o vazio da grande perda a acompanhá-lo até o túmulo.

-Ter relações com as pessoas e o fato de ser reconhecido em alguns lugares que eu vou, isso também me anima. As palavras que as pessoas me falam , também ajuda muito. É aí que esquenta o coração, o fato de você, na situação complicada de tristeza, ver alguém, mesmo sem compartilhar com a sua dor, te impulsionar a sair dela, te animar.

Dialogar para ressuscitar, lição de humanidade que a vida passa para Cláudio.
-Muita coisa, muita coisa mesmo eu devo a duas psicólogas, a Rosângela e a Dália. E à psicoterapeuta Maria Alice. Essa mulher é a mãe da Ocas. Ela se predispõe a deixar tudo o que tem, até o ganha-pão, para ir voluntariamente dar espaço para que as pessoas falem, gritem, xinguem, se tornem gente. Ela foi uma estrutura muito forte para mim, e é. Todo mundo sabe que a Maria Alice é o centro nervoso da Ocas. É ela que estrutura a pessoa para encarar essa realidade que não é fácil. O cara vem auto-discriminado, vai no estado mais deplorável, vazio, aí ele vai criar vínculo, vai ter coletividade, vai formar grupo, vai viver com gente e torna-se pessoa.
Cláudio fala de Maria Alice Wassimon, do Getep, Grupo de Estudos e Trabalhos Psicodramáticos. Perto da estação Vila Madalena do Metrô, a instituição atua no relacionamento humano há 32 anos, utilizando-se do psicodrama, sociodrama, trabalho corporal e jogos dramáticos como facilitadores da aprendizagem e do desenvolvimento pessoal e profissional.

Cutucada de Maria Alice: fiquem sabendo, qualquer pessoa só não é moradora de rua apenas por um triz.

Sobre essa dor, Cláudio, o que dizer?

- Acredito que essa é que tem de ser a expurgação. Tenho que expurgar essa dor aí. A luta principal de tudo isso é o fato de a gente acreditar que é capaz. Em qualquer situação a gente sempre é capaz. O difícil mesmo, o peso, é a dor da perda. É que a gente não tem o preparo para ficar sem. A gente não está preparado para perder nada. Essa recuperação tem que ser feita na base do paulatino, do tranqüilo, com serenidade, confiança, acreditando sempre na própria capacidade. Pois se a gente não fosse capaz acho que não estaria aqui. Então, se foi dada essa missão, eu sei que vou ter força para cumprir. Fere? Fere, dói, machuca, tortura.

Cláudio apaga a luz em seu favo. Encolhe-se na esteira. Noite fria, rajadas de chuva espancam a janela. O pensamento dá as costas para o seu conforto e ele sai a andar.

Retoma a vida de fome e medo, na escuridão gelada das noites.

Num instante, o papai de Yuri e Yago e a paixão de Maria, chega a Catanduva. No cemitério sem Lua, longo tempo imóvel diante das sepulturas. Como no dia do enterro, outra vez o ímpeto de tirar mulher e filhos debaixo da terra. Nunca mais voltou para a sua casa, em Minas. Saudosa casa em Ituiutaba, projetada por sua Maria, fechada até hoje. O peito apertado, anda sem rumo pela cidade. Alcança o centro velho, olha cada canto da rodoviária, também projetada por ela. De sua esteira, em imaginação, aspira o ar adocicado das noites da cidade mineira, sempre cheias de estrelas. Estrelas grandes, brilhantes, que parecem ir até o chão. Um muro de estrelas de um lado das montanhas, um muro de estrelas do outro.

A mesma mão encolhida sobre a esteira em São Paulo gira a fechadura da casa em Ituiutaba. Mal respira. De volta ao lar vazio. Na sala, nas poltronas, em tudo, quanta poeira. Passos vagarosos, alcança a cozinha. Louça por lavar. Faz que acende o fogão para ferver o leite. Na copa, a algazarra.Todos juntos para o café. Maria, cabeça baixa, ri, equilibra a xícara. No quintal, as crianças brincam nas árvores. Jaboticaba, goiaba, limão. Nas tardes quentes, carinhas espertas na janela a esperá-lo depois do serviço. Roupas pelo chão no banheiro. No quarto, os vestidos, com o cheiro dela. Escova de cabelo, batom, perfume. A cama. Colcha desarrumada. No baú rústico, o certificado de conclusão do seu curso de Química da Universidade Federal de Minas Gerais. Não volta lá para buscar o diploma. Não volta.

Madrugada. Cláudio sai do seu novo lar no Glicério para ir à Universidade de São Paulo. Vai para o segundo semestre do curso de Licenciatura em Química. Na sala de aula, no ônibus, duas horas para ir, duas para voltar, acompanha-o a velha dor, o cravo para sempre espetado no coração. Mergulha no fundo do mar, e ela vai com nele. Dar aulas. Outras pessoas em sua vida para se preocupar, o melhor caminho, talvez.

De repente, o impulso de abandonar tudo e andar, se desligar do mundo. Retomar a fuga que um dia o levou a dias e noites intermináveis, a olhar a polícia por um novo ângulo, a cruzar e descruzar São Paulo. Sempre um debandar sem fim, que o leva a comer mal, sentir-se fraco, doente, a não pensar com clareza, a chorar de dor nos ossos e na alma, a perder a confiança nas pessoas. O que é, se não uma fuga, esse andar sem fim, o vagar pela Áustria, para palestra? Pela Suécia, no campeonato mundial de futebol de moradores de rua? Portugal, pela rede internacional de jornais de rua?

Aplica o teu coração ao ensino, aconselha o sábio do Velho Testamento, a apontar caminhos. As faculdades de Psicologia, Comunicação, Direito, que começou e largou. Mesmo o conselheiro de Napoleão tem suas dúvidas existenciais. Em sua linguagem de bruxo, o Eclesiastes quer saber: quem sabe o que é bom para o homem durante os poucos dias da sua vida de vaidade, os quais gasta como sombra?

- Pelo menos, a atribulação tem a compensação da força – geme Cláudio Bongiovani - a dor maior está em se prostrar diante de um obstáculo. A gente está sabendo que tem um meio de mostrar força para superar essas perdas. Superar perdas. Compensar perdas não existe.

- Mas quem falou que a gente perdeu? A gente tinha alguma coisa? Eu perdi meus filhos? O que eu tinha era a posse dos meus filhos. Foi muito tempo na rua para chegar a essa conclusão. Perder o quê? O sentimento de posse é perda. Então, se a gente tem posse de alguma coisa, sabe que vai perder.

- A gente não tem posse de nada. Não somos donos de nada. Somos donos do quê? Do que se faz de bem, do que se faz de bom. Aí, sim. É o que estou tentando.

* Jornalista e cronista, Apóllo Natali trabalhou durante décadas na Agência Estado e jornal O Estado de S. Paulo

 

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