O pensamento é muito rápido. Muito mais que estes computadores que as crianças manejam com tanta habilidade - Pensava o experiente Nicanor, 67 anos, sentado em sua varanda, clicando em suas paredes memoriais, longe, muito longe do real que habita. Apenas “se segura”- pensa - por que “se viajar muito”, pode não voltar, ri consigo.
Quase não nota, quando é catucado pela neta...
Coisas de criança
— Puxa, vô, sabe da Lúcia? Ô, vô!!! Aquela que o pai dela trabalha na Prefeitura.
— Sim, minha filha, o que tem ela? – respondeu feliz o Nicanor, quase que agradecendo a menina por o ter feito voltar ao real. Nicanor sabia que a conversa seria esticada e isto fazia bem a ele que gostava das longas conversas que estavam se acabando..
— Ela faz aniversário juntinho comigo e com aquela menininha que o pai também trabalha na prefeitura. Só que o pai da Lúcia é Secretário do Prefeito e o pai da outra – a Marta, que tem cabelos assim, oh, como falei –, trabalha no caminhão do lixo. Sabe o que ela me disse na Praça da Matriz, vô?
— Não. Conte aí – disse o Nicanor buscando posição mais confortável na velha cadeira que, pelo uso e tempo, capenga de um lado para o outro...
— É que o pai dela, quer continuar a menina...
— Dela, quem? Conta direito.
— Ô, vô! Da Lúcia! A que o pai é Secretário do Prefeito, um homem gordão, careca e que anda com um outro altão, bigodudo e amulatado..
Deixa eu contar.
— O pai dela perguntou o que ela queria de aniversário. Ou uma festa ou 5 mil reais para ela gastar como quisesse. Ela preferiu a festa. Ela disse, na pracinha, que ele gastou mais de 150 mil. Tanta gente que ela nem podia ficar com as amiguinhas. Ela disse que o pai dela e outros Secretários da Prefeitura, todos, estão comprando terrenos, construindo, e que contratam um montão de seguranças para evitar os ladrões. Ela disse que a irmã do Prefeito comprou uma mansão também, de mais de um milhão, de um vereador. Pagou assim, oh: pum!
Nicanor achou graça do relato da netinha, enquanto admirava sua beleza, seu espantoso crescimento físico e intelectual. E se perguntava pela forma que acabaria assumindo a narrativa, aquele estilo que enriquecia a cada dia, entremeado de opiniões curtas, decididas, definitivas, com dúvidas e considerações filosóficas. “Mas que tempo ruim”, pensava ele. “Nossas crianças crescem em meio a uma guerra suja, imunda. Talvez por isso mesmo crescem assim. Crescem para construir uma outra sociedade e livrar o povo dessa coisa podre que consome a todos. Por isso, crescem dessa jeito, rápido... Falam dessa maneira, conspirando.”
— Ah, o que não vem por aí – deixou escapar Nicanor.
— O que, vô? Vem o quê? Bom, sabe o que essa menina falou?, contunuou a netinha: Que os amigos do pai dela e toda a família do Prefeito estão preocupados com uns doutores do ministério da polícia...
— Ministério Público, Clara. É ministério Público.
— ... mas deixa eu contar, vô! Então, o pai dela disse que estão investigando muito a vida deles aqui na cidade. Os vereadores e todos os secretários estão todos ricos em menos de 5 anos. Dizem que querem prender eles, igual aquele menino que roubou um tênis do Adolfo, lá do Bar, e a policia levou para a delegacia. Mas ela também acha que não vai dar em nada. Uma colega disse para a Lúcia que os amigos do pai dela vão apanhar igual o menino do tênis. Aí ela respondeu que eles têm advogados e muitos amigos nos altos escalões da lei. Mais, vô, a professora disse outro dia que a justiça é cega. É igual para todos, né?. Eles vão levar uma baita de uma surra, não vão?
A menina fixou seus olhos nos do avô, como que lendo seu pensamento:
— É, está bem, o senhor acha que não vai acontecer nada... Eu também. Os olhos destes lindos personagens de minha história, viajam por entre as dezenas de árvores, de pássaros que voam, passam despercebidos por duas lindas borboletas amarelas e, quase chegam às nuvens que anunciam chuva para o mês de Maio que começa.
Nicanor e Clara ficaram, por segundos que pareciam anos, distantes. Nem viram nem puderam notar no cântico triste de uma Cambaxirra que permeia a soleira da varanda. Ela procura pelo seu ninho que o vendaval atirou para longe com os três ovos que dariam segmento a sua luta pela Sobrevivência da Espécie.
II
— Por que tem gente rica, vô? Rico serve para quê? Só têm carro importado. Rico é doente, vô? Por isso é que as casas deles têm tanta privada? Toda hora mulher de rico vai ao médico. Eles não gostam de pobre, não gostam de ninguém. Só da gente deles. Olham para os outros com cara de nojo.
— Isto é outra coisa que eu queria que o senhor me dissesse: é verdade que rico não entra no céu? Vô, eu acho que entra, sim. E quem fica do lado de fora é a gente. Só se não existe céu.
— Não posso dizer isso não, né vô?
— Mas vô, eu acho que não existe céu, não
— Vô, por que o senhor e o pai daquela menina pretinha – se lembra sim, vô, aquela, aquela, da casa que o senhor me levou daquela vez, tava com goteira na sala... –, por que não podem comprar casa nem carro novo? O senhor, vô, trabalha o dia todo, fica sem dormir. Lendo, escrevendo e não compra automóvel por quê?
— Por que rico não trabalha, vô? Eles só ficam com cara de preocupados. É feio falar mal dos outros, mas eu não gosto de rico, vô. Eu não gosto.
O Vento que assanhava os cabelos de Clara, teimava em evitar que o Sol permanecesse esverdeado na face do velho. Entreolhava a curiosidade de sua linda neta. Menina que já não acreditava nas verdades mentirosas do sistema que a rodeava. Suas amigas também não acreditavam. Desmentiam os mitos para desvendar a realidade, porque toda a verdade oficial não passa de um mito, cruel, horrendo.
Nicanor tenta desviar a conversa. Olha o Gato Malhado que corta o canteiro de Onze Horas e caminha por para as Margaridas. Como dizer a este anjo que o pai de sua amiga nunca trabalhou na Prefeitura? Como dizer que ele rouba na Prefeitura e sua ostentação é fruto de uma impunidade secular. Que este safado sabe que, enquanto as impunidades e os desvios de dinheiro no Poder Central do Brasil, são timidamente expostas ao conhecimento do Povo, dificilmente ele será apanhado. Nicanor sabe que, quem trabalha na prefeitura, é o pai da menina que o pai anda pendurado no carro do lixo, sem proteção higiênica, sem meios para reclamar, vítima de uma terceirização cruel, sem Sindicato honesto para ele apelar.
Abraça sua neta. Olha um horizonte que parece sumir em sua face já quase enrugada pelos anos. Como que querendo sussurrar para si mesmo, fala e é ouvido:
— Isso vai mudar um dia, minha linda Clara. O dia em o homem tomar ciência de que uma nova democracia tem que existir no mundo. Que estes que roubam precisam ir para a cadeia. È triste a gente ver e ouvir que Juizes vendem sentenças, que vereadores se enriquecem com o dinheiro das prefeituras e que deputados levam dinheiro para votar contra o povo que o elegeu. Aquele menino, que roubou o Tenys, foi espancado e uma pobre mãe, lembra, que lhe falei que li no jornal, presa pela policia, espancada por seguranças por ter roubado um pote de margarinha?. Pois bem, penso que quando esta nova democracia chegar eles dois poderão ser chamados para julgar os grandes ladrões. Já pensou, Clara, o Careca de Prefeitura e o Bigodudo altão sendo julgados pelo menino e pela mulher que expropiou a margarina?
Se eu tiver vivo até lá e, acho que você vai estar, vamos dar uma idéia? Que todos sejam julgados na medida de cada. Delito: - o menos delituoso julgará o mais delituoso... Coisas de Crianças...