A LONGA JORNADA E OS MOMENTOS DE DECISÃO

SONHOS

"Sonho que se sonha só
é só um sonho que se sonha só.
Mas, sonho que se sonha junto
é realidade"
(Raul Seixas, Prelúdio)

Lá por 1974 ou 1975 cheguei a uma encruzilhada decisiva e optei pelo caminho mais difícil, porque era o que minha consciência ditava.
Participara do movimento estudantil não apenas porque eu era jovem e a rebeldia estava no espírito da época; minha identificação foi bem mais profunda.
Desde as remotas leituras de Monteiro Lobato os objetivos das pessoas sob o capitalismo não me seduziam.
Ganhar dinheiro e me cercar do bom e do melhor em termos materiais não era o que eu buscava na vida. Queria algo maior, que ainda não conseguia discernir direito. Só sabia que não era aquele sucesso convencional pelo qual meus parentes, amigos e colegas tanto ansiavam.
E não porque já dispusesse dos objetos de desejo dos jovens da minha idade. Pelo contrário, em casa nunca houve fartura. Vivíamos com o dinheiro contadinho, não tínhamos luxo nenhum e fomos dos últimos a comprar TV.  Quem inicia a vida nessas circunstâncias, ou se torna obcecado por obter tudo que lhe faltou e ainda mais, ou habitua-se ao despojamento.

Lembrando a frase de um filme da época (Pierrot Le Fou, de Jean-Luc Godard), o marxismo "foi meu primeiro, meu único sonho". O projeto de construção de uma sociedade igualitária e livre me atingiu como um raio. Eu encontrara, finalmente, meu objetivo na vida!
Daí não haver hesitado em optar pela luta armada, quando o AI-5 pôs fim à temporada de manifestações pacíficas, deixando-nos apenas três opções: assumirmos o risco extremo, preservarmo-nos para melhores dias ou iludirmo-nos com ações irrelevantes (como a de deixar em sanitários públicos panfletos que os usuários tinham medo de ler).
Tratava-se de uma luta impossível de ser vencida, tamanha a desigualdade de efetivos e de recursos, além da desvantagem de não podermos utilizar os métodos que nos destruíam (a repressão ditatorial infringia insensivelmente as leis da guerra e os mais sagrados valores da civilização, mas para nós era inconcebível incidirmos na desumanidade contra a qual lutávamos).
A derrota foi das mais sofridas, até porque caí numa armadilha da História que durante muito tempo impediu-me de lutar como gostaria.
Mas, ao contrário de muitos que aceitaram arcar com culpas alheias e fazer o papel de bodes expiatórios porque a esquerda, na esteira de uma derrota terrível, optou por personalizar responsabilidades difusas, recusei a proposta de ser reabilitado como  penitente, pois isto implicaria abrir mão de lutar pelo reconhecimento da minha inocência quanto à principal acusação que me faziam. Decidi esperar o tempo que fosse necessário para tornar conhecida toda a verdade.
Nem de longe imaginava que seriam três décadas. Francamente, não sei o que teria decidido se soubesse o que me aguardava. Só sei que tal decisão acabou se evidenciando como a melhor, já que sobrevivi moralmente e acabei dando a volta por cima sem fazer concessões que me repugnavam.

A TRAVESSIA DO DESERTO
Mesmo assim, consegui uma grande vitória: foi minha a idéia e a iniciativa que transformaram em vitória a greve de fome dos quatro de Salvador, militantes desatinados aos quais a esquerda voltou as costas porque a prejudicavam eleitoralmente (já em 1986, aquilo que deveríamos encarar apenas como parte das nossas táticas pesava mais do que a solidariedade, um princípio fundamental...).
E, escrevendo um artigo em apoio ao Paulo de Tarso Venceslau, que o Jornal da Tarde publicou, orgulho-me de ter sido um dos poucos a reagir à descaracterização do PT, no mais dramático confronto entre os princípios e as conveniências até então travado em seu seio.
Naquele ano de 1998, o partido optou pela  laranja podre (o empresário lobbista Roberto Teixeira) em detrimento do revolucionário íntegro. Admitiu incidir nas mesmas práticas imorais das agremiações que criticávamos. Em nome da vil politicalha, desautorizou o parecer do seu próprio Conselho de Ética, que recomendara a expulsão tanto do  PT Venceslau (por vazar um assunto interno para a imprensa burguesa) quanto do Teixeira (por ser um indiscutível corruptor).
Curiosamente, o JT colocou abaixo do meu, na página de Opinião, um texto de apoio à decisão petista e de crítica às reportagens de Luiz Maklouf Carvalho. Seu autor: João Paulo Cunha. Se tivesse sido menos condescendente com as  ligações perigosas, não estaria na situação  em que se encontra hoje...
Eu interpretei o episódio como um ovo da serpente; e era. Desde então o PT não parou mais de atirar os princípios no lixo, a ponto de mancomunar-se com os banqueiros e o grande capital para que lhe fosse permitido assumir a Presidência do Brasil --melhor seria dizer a  gerência dos negócios capitalistas no País, já que se comprometeu a não alterar as linhas mestras da política econômica implantada por FHC.
Pouco mais pude fazer no período de ostracismo. Atuava no circuíto alternativo, espalhava livros e textos que tinham repercussão mínima, lançava alertas que ninguém escutava (como o de que a esquerda deveria combater a falsa terceirização --a contratação, como prestadores de serviços, de trabalhadores que nada tinham de autônomos, sendo, na verdade, funcionários-- como uma praga, pois feriria de morte o sindicalismo).
Em 2004/05, contudo, tive de enfrentar diversas crises simultâneas e, em circunstâncias dramáticas, lutar por minha anistia que a União protelava indefinidamente e se tornara minha última possibilidade de salvação.
Como se o destino quisesse me compensar pelo enorme azar que eu tivera em 1970, os acasos começaram a me favorecer:

  • tomei conhecimento de um relatório secreto militar que me permitiu reposicionar acontecimentos antigos, comprovando que eu havia sido muito injustiçado;
  • a partir desta reviravolta, na qual pesou muito o apoio que recebi do historiador Jacob Gorender, meu processo de anistia desencalhou e chegou a bom desfecho; e
  • pude finalmente apresentar ao público o meu lado nas questões polêmicas dos anos de chumbo, com o lançamento do livro Náufrago da Utopia.

OÁSIS OU MIRAGEM?
Durante três décadas e meia, duas grandes metas me haviam mantido de pé: tornar conhecida a verdade a meu respeito, para, em seguida, contribuir de forma efetiva para a gestação de uma nova esquerda, capaz de recolocar a revolução anticapitalista na ordem do dia. 
A repercussão que meus artigos começaram a obter na web atingiu o auge no Caso Battisti, fazendo-me acreditar que estava próximo de realizar o último objetivo. Até deixei de priorizar o segundo livro, teórico, no qual pretendia discorrer sobre as propostas e posturas da nova esquerda; fui distribuindo minhas teses  pelos artigos diários.

Se pelo menos um dos cineastas que cogitaram levar o Náufrago às telas tivesse conseguido viabilizar financeiramente o projeto, as coisas poderiam ser diferentes. Era o momento que eu esperava para lançar o  pacote teórico com alguma chance de obter repercussão.
Finalmente, constatei em 2012 que não bastava continuar seguindo o mesmo rumo. Já chegara tão longe quanto possível na internet e não era suficiente (a sensação de impotência que a barbárie impune do Pinheirinho me deu foi terrível!). A grande imprensa está fechada e lacrada para mim. E, como no final de 1968, não admito desistir porque a dificuldade ficou maior.
A primeira tentativa de furar o bloqueio foi a minha anticandidatura à Comissão da Verdade, no sentido de acrescentar um componente combativo a um colegiado provavelmente amorfo. [E também porque não me passava pela goela o fato de a presidente Dilma Rousseff haver cedido à chantagem da bancada evangélica, que condicionou seu apoio ao projeto à não participação de veteranos da resistência, colocando-nos no mesmo plano dos algozes!]
Entre a parte da esquerda que diz sempre  amém! a tudo que vem do Olimpo... quer dizer, do Planalto, e a outra parte que diz sempre  estou fora!, não sobrou ninguém para defender minha indicação. 
A aceitação do veto evangélico veio ao encontro da propaganda enganosa que as viúvas da ditadura espalham desde sempre: já que não têm como negar as atrocidades perpetradas pelo regime militar, saem pela tangente de que os dois lados teriam se igualado nos excessos. 
Ou seja, foi  simplesmente infame a esquerda não ter batido pé quanto à presença de pelo menos um ex-resistente na Comissão, que não precisaria ser eu (aliás, várias vezes sugeri o nome do companheiro Ivan Seixas como alternativa, pois o fundamental era o princípio, não a pessoa).
A segunda tentativa é a que estou fazendo agora, de me eleger vereador paulistano para tornar bem mais contundente a atuação da esquerda na Câmara.
Está na hora de voltarmos a ter atuação e mantermos postura EMINENTEMENTE IDEOLÓGICAS no Legislativo e no Executivo. Está na hora de proclamarmos, em alto e bom som, que somos REVOLUCIONÁRIOS e nos orgulhamos disto. E de, mesmo integrando bancadas minoritárias, descobrirmos formas de atrapalhar os poderosos e de escancarar suas maracutaias para o cidadão comum.
Não sei se será desta vez ou em uma das próximas que conseguirei fazer a transição do  sonho que se sonha só para o sonho que se sonha junto.
Só sei não descansarei até conseguir, ou até morrer. O que chegar antes.

Do blogue Diário de campanha do Lungaretti

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